Agressões ao Planeta

Especial

As 7 pragas da Amazônia


Leonardo Coutinho

1 FOGO
As queimadas causam perdas de 121 milhões de dólares por ano. Considerada a emissão de carbono, os prejuízos chegam a 5 bilhões de dólares.

2 MADEIREIRAS
Há mais de 3 000 empresas cortando árvores. Para cada unidade retirada, os madeireiros danificam pelo menos outras quinze árvores.

3 ESTRADAS
Mais de 80% das queimadas acontecem perto das rodovias. A colonização se dá ao longo de 100 000 quilômetros de estradas clandestinas.

4 GARIMPOS
Além de poluírem os rios e devastarem reservas ambientais, os garimpeiros foram responsáveis pela chegada da aids às aldeias indígenas.

5 PASTAGENS
A soja avança sobre pastos antigos e capitaliza pecuaristas, que abrem novas áreas na mata. Cerca de 12% da Amazônia já virou pasto.

6 CORRUPÇÃO
Só a Operação Curupira, realizada em junho, prendeu 47 funcionários do Ibama envolvidos na exploração ilegal da floresta.

7 BUROCRACIA
De 539 milhões de reais em multas aplicadas em 2004, só 63 milhões de reais foram pagos e apenas 3 milhões de reais ficaram com o Ibama.



NESTA EDIÇÃO
O planeta à beira do desastre
O desperdício das águas
Os cenários apocalípticos
A poluição brasileira: ar, terra e água
A resposta dos vírus e bactérias à ação do homem
As 7 pragas da Amazônia
Pagando para ver o desastre
As florestas de proveta

EXCLUSIVO ON-LINE
Depoimentos de pesquisadores sobre a Amazônia

Nos últimos vinte anos, mais de sessenta satélites capazes de vigiar a Amazônia foram lançados ao espaço. Também entrou em operação o Sistema de Proteção da Amazônia, braço civil do Sivam, que utiliza equipamentos em órbita, aviões e 800 estações terrestres para monitorar a região e custou 1,4 bilhão de dólares. Outros 31 milhões de reais foram gastos na modernização de centros científicos, como o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), ambos com estrutura para analisar dados relativos à floresta. O resultado disso tudo é um paradoxo. Nunca se pôde ver tão de perto a destruição e jamais foi possível medi-la com tanta precisão – mas praticamente nada se fez para detê-la. A Floresta Amazônica tem hoje menos de 80% do tamanho original e passa por uma aceleração frenética da devastação. Neste ano, já se desmatou o equivalente a dez vezes a área da cidade de São Paulo. Em 2004, foi-se quase uma Bélgica. Só nos últimos quinze anos, 28,8 milhões de hectares foram desbastados – metade de tudo o que foi destruído desde 1500.

Os satélites mostram as fotos, mas não o filme do desmatamento em todas as suas etapas. Diferentemente do que se imagina, a floresta raramente é agredida do dia para a noite por hordas de madeireiros armados de machados, motosserras e tratores, abrindo clareiras instantâneas nas quais horas antes havia mata fechada. Pelo contrário, o prólogo do processo é lento e invisível para os equipamentos que monitoram a Amazônia. O saque à natureza começa de forma falsamente seletiva. Diante da ampla diversidade de espécies, com até 300 tipos de árvore por hectare, os coletores de madeira fazem grandes percursos entre um espécime e outro de madeira de lei. Uma planta comercialmente aproveitável, como o mogno, com até 40 metros de altura e 3,5 metros no diâmetro do tronco, pode estar a até centenas de metros de outra semelhante. No percurso, os madeireiros fatiam a floresta, abrem milhares de quilômetros de estradas e picadas no meio da mata. Para derrubar apenas um exemplar, destroem outros. O estrago produzido pela queda de uma árvore gigante, pelo trator que a arrasta e pelos caminhões que a carregam estropia 40% da vegetação do entorno. Ambientalmente, a degradação é muito maior, já que normalmente as mudas de novos exemplares da árvore derrubada, sempre próximas, são dizimadas nesse processo. São quinze árvores perdidas para cada uma cortada.

 

Paulo Santos/Interfoto
Manifestação de sem-terra: empurrados cada vez mais para o meio da mata, eles são os agentes de boa parte das queimadas na região

Calcula-se que as madeireiras ilegais tenham produzido no ano passado cerca de 8 milhões de metros cúbicos, com um lucro de pelo menos 1,8 bilhão de dólares. O último levantamento disponível sobre a quantidade de máquinas e equipamentos envolvidos na extração de madeira, realizado em 1998, identificou a existência de cerca de 8.478 caminhões e 5.006 tratores usados pelos madeireiros na Amazônia. As fábricas de motosserras – cuja venda é controlada como a de armamentos – nunca faturaram tanto nas lojas mais próximas à floresta. Segundo os registros do Ibama, o número de motosseras registradas em 2004 cresceu 11% em relação ao ano anterior. O setor de defensivos agrícolas também ganha. Desfolhantes – utilizados para eliminar ervas daninhas – estão na lista de opções dos desmatadores que pulverizam a mata para agilizar seu trabalho. Há incremento de negócios até com correntes de amarrar navios – usadas numa técnica de derrubada de mata, esticadas entre dois tratores.

A rede de estradas clandestinas criadas nessa atividade é de 100.000 quilômetros, conforme estudos do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia. Essas vias funcionam como artérias por onde penetram os germes que consumirão ainda mais a floresta. Os primeiros a utilizar esses caminhos são os posseiros, que desmatam para vender a madeira restante e para fazer pequenas roças. Em toda a Amazônia, há mais de 800.000 famílias vivendo desse modo. Seja invasora ou assentada por programas de reforma agrária e colonização, cada uma dessas famílias pode desmatar até 3 hectares por ano, para cultivo de subsistência. A fatia que cada uma tira anualmente da floresta é insignificante. A soma do que todas tiram – 470.000 hectares – é um problema. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, as pequenas propriedades respondem por 18% das taxas oficiais de desmatamento.

Por esses caminhos clandestinos também seguem os garimpeiros que estropiam as margens e o leito de rios com suas dragas em busca de ouro e pedras preciosas, deixando para trás crateras e rios contaminados por mercúrio. Um dos casos mais simbólicos da poluição em decorrência do garimpo é o do Rio Crepori, no oeste do Pará. A mancha de sedimentos que deságua nas águas cristalinas do Rio Tapajós pode ser percebida até 30 quilômetros rio abaixo. Estima-se que ela signifique a sedimentação no leito do Tapajós de 4 toneladas de mercúrio por ano. O metal pesado contamina peixes, que, ao ser consumidos, acabam provocando doenças neurológicas em seres humanos. Em áreas indígenas, os garimpeiros costumam atuar em conluio com os índios, como ocorre na mina de diamantes localizada na reserva dos cintas-largas, em Rondônia. Mas há, também, casos em que eles invadem as reservas indígenas e usam de violência para garantir a permanência. Esse modelo de ocupação é freqüentemente relatado em áreas dos ianomâmis.

 

Claudia Azevedo Ramos/Ipam
O correntão e sua obra: tratores só deixam em pé as castanheiras, cuja derrubada é proibida. Nessas condições, elas morrem sozinhas

Mais de 250 milhões de dólares foram investidos pelo Programa Piloto para Proteção das Florestas Tropicais do Brasil em medidas contra as queimadas e em convênios para estimular o chamado desenvolvimento sustentável – aquele que, teoricamente, dá meios de sobrevivência a famílias que exploram as riquezas florestais sem dano ao meio ambiente. Somente o programa de incentivo ao manejo de florestas, mantido pelo Ministério do Meio Ambiente, recebeu do governo alemão a doação de 45 milhões de reais. Em outro convênio internacional, o governo do Acre garantiu no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) o financiamento de 240 milhões de dólares para projetos de desenvolvimento sustentável. Outro tanto se investiu em projetos de certificação de origem implantados em várias frentes madeireiras, para estimular a atividade legal e combater a destruição da natureza. Apesar disso tudo, a indústria do desflorestamento continua a florescer – em parte porque esses programas todos, quando dão certo, significam a atração de mais gente para o interior da floresta. Já há 20 milhões de brasileiros vivendo na Amazônia.

Perdida no meio do mato, produzindo o insuficiente para si mesma, boa parte dessa população vive em condições miseráveis e se torna alvo da especulação fundiária e da ausência do controle do Estado na região. Contra ela agem bandoleiros patrocinados por grileiros, para tomar de assalto grandes porções de terra. Os chamados gatos recrutam, muitas vezes entre os próprios expulsos, a mão-de-obra para as propriedades piratas. Questões sobre delimitação das áreas são resolvidas por meio de pistolagem. Esse é o panorama atual em diversas regiões de avanço sobre a floresta, como nos casos de São Félix do Xingu – um município de área 55 vezes superior à da cidade de São Paulo – e do povoado de Castelo dos Sonhos, no Pará. As duas localidades estão, pelo segundo ano consecutivo, no topo da lista dos lugares onde mais se desmata na Amazônia e das regiões com mais registros de violência associados à disputa pela terra. São freqüentes, e produtivas, as incursões pela área do Grupo de Fiscalização Móvel do Ministério do Trabalho, em que se encontram facilmente colônias de trabalhadores escravos vivendo em barracas de lona e derrubando mata em troca de um salário insuficiente para pagar a comida e as ferramentas compradas dos fazendeiros. Somente nesse estágio o processo de desmatamento começa a ser visto pelos satélites e entra nas estatísticas oficiais. Esses números informam que 70% do corte de floresta ocorre para a formação de pastagens. Boa parte das grandes cidades amazônicas começou assim.

Outra técnica de desmatamento invisível se aproveita da densidade da mata. Nessa modalidade, geralmente um único grileiro conduz todas as etapas para extrair madeira e criar pastagens. O sistema consiste num corte escalonado de árvores. Primeiro, derrubam-se as que não cresceram o suficiente para alcançar a copa das vizinhas mais altas. À sombra, tratores retiram a vegetação rasteira e iniciam a plantação de capim. Um ano depois, com o pasto já formado, o gado é introduzido. As reses são mantidas sob as árvores por um ano. Ao fim desse prazo, queima-se o capim, cujas raízes não são atingidas pelo fogo. Isso revigora o pasto e serve também para destruir, com o calor, as árvores médias. O gado volta. Fica mais um ano. Só na segunda queimada a destruição aparece para os sistemas de monitoramento. Toda de uma vez. Os pecuaristas que utilizam esse processo agem em mais de uma área, mantendo cada uma num estágio diferente. Seus bois nunca estão nos locais descobertos pela fiscalização – sempre tarde demais.

Segundo o economista sênior do Banco Mundial Sérgio Margulis, autor de uma das pesquisas mais importantes sobre o impacto da pecuária no desmatamento, 12% da Amazônia Legal, ou 60 milhões de hectares, é utilizada em atividades de agropecuária. Três quartos disso são pastos – o que dá à criação de bois o troféu de campeã no desmatamento da Amazônia. Como as terras na região custam um décimo menos que no interior de São Paulo, por exemplo, e todos os outros custos também são baixos, a receita líquida de um pecuarista amazônico chega a ser o dobro da obtida no Sudeste. Para ajudar, a intensidade das chuvas e a temperatura favorecem o crescimento do pasto o ano inteiro. A questão é que, enquanto lucra, o pecuarista da Amazônia produz prejuízo para o país. Estima-se que, para cada hectare de floresta destruída, 100 dólares anuais são perdidos em custos ambientais e sociais. Esse índice é calculado com base na soma dos recursos naturais perdidos e dos benefícios que a região poderia obter com a exploração racional de madeira, essências naturais, ecoturismo e estocagem de carbono.

O estouro da boiada sobre a mata já se faz sentir nos santuários dos defensores do chamado desenvolvimento sustentável. Depois de concluírem que não é possível viver da extração de látex, os seringueiros da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Acre, estão optando pela criação de gado. Assim como em Xapuri, em todas as outras reservas extrativistas do Acre os seringueiros se renderam à lucratividade da pecuária. "O boi é a poupança de quem vive do extrativismo", diz Francisco Vicente de Melo, que cria gado na reserva Santa Quitéria. "Quando alguém fica doente, sem condições de trabalhar, é do gado que tira o sustento." Até a viúva de Chico Mendes, Ilzamar Gadelha Bezerra Mendes, já formou o seu rebanho. A pecuária cresceu 370% no Acre em dez anos e transformou o estado no melhor exemplo do avanço da atividade sobre a floresta. Comparado com o ritmo de expansão da pecuária em outras regiões, o da Amazônia é preocupantemente vigoroso. O número total de cabeças saltou de 26 milhões em 1990 para mais de 64 milhões em 2003.

Teoricamente, os pastos que bordejam a mata poderiam dar conta da multiplicação de cabeças, mas há um fenômeno econômico – a soja – empurrando-os para cima das florestas. Nos últimos quatro anos, 5 milhões de hectares de pastagens foram convertidos em lavouras de soja no país, de acordo com estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Ou seja, mais de 70% da expansão do cultivo ocorreu em áreas desmatadas e convertidas em pasto. Na Amazônia, o processo não é diferente. As oscilações no preço do gado levam vários produtores à falência. Pastos abandonados podem ter as qualidades químicas do solo corrigidas. Depois, são arados e passam a produzir grãos. Isso era impensável dez anos atrás, quando se acreditava que na região a agricultura extensiva era uma atividade inviável.

Vistos por esse ângulo, os sojicultores são heróis da economia e da recuperação de áreas degradadas. Mas há outra maneira de analisar a situação, segundo a maioria dos ambientalistas que atuam na Amazônia. Justamente por ter ultrapassado o cerrado, alcançando as arestas da floresta, a sojicultura virou também uma ameaça. Ao adquirirem terras de pecuaristas que estavam com seus negócios estagnados ou em decadência, os produtores de soja capitalizaram um setor cuja natureza da implantação consiste em transformar floresta em pasto. Com dinheiro no bolso, os criadores passaram a investir em propriedades menos valorizadas, distantes e, na maior parte dos casos, ainda com muita mata para derrubar.

Para assistir a tudo isso, o Brasil tem moderníssima tecnologia de monitoramento ambiental por satélite. Na sede do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), na cidade paulista de São José dos Campos, os cientistas produzem boletins diários com os números de queimadas registradas no país e emitem quinzenalmente relatórios sobre os desmatamentos mais recentes, apontando com precisão os locais onde ocorreram. Menos de oito horas são necessárias para que um dos aviões do Sivam decole da base aérea de Anápolis, em Goiás, e produza imagens em alta resolução de qualquer ponto da floresta. Em centenas de outros centros de pesquisas de universidades espalhados pelo país e no exterior, outras informações são processadas com base em dados obtidos por satélites.

Sucesso no céu, fracasso no chão. As ações de fiscalização e os investimentos na repressão a crimes ambientais estão longe de acompanhar a tecnologia que enxerga detalhes no meio da floresta. Dos 36 milhões de reais previstos para custear o trabalho dos fiscais neste ano, 25% foram congelados. O total liberado só foi suficiente para trabalhar até a primeira quinzena de agosto – justamente quando se iniciou a estação das queimadas. Para vigiar os 5 milhões de quilômetros quadrados de mata amazônica, existem 695 fiscais – 575 fixos e 120 emprestados de outras regiões. Se a área de floresta fosse dividida igualmente entre eles, cada um teria de cuidar de um território cinco vezes maior que o da cidade de São Paulo. "O esgotamento dos recursos no meio do ano demonstra a falta de prioridade do governo Lula para a questão ambiental", acusa o Greenpeace em nota que denuncia a falta de dinheiro para a fiscalização.

As multas ambientais poderiam significar mais recursos para a atividade. Mas são tratadas como anedota pelos infratores. Do total de multas emitidas pelos fiscais, 12% são canceladas por erro de preenchimento. Das restantes, 80% simplesmente não são pagas. E, das que resultam em recolhimento de dinheiro, a União toma 95% do valor arrecadado para aplicar em outras finalidades. De acordo com dados do Ibama, no ano passado as multas somaram 539 milhões de reais, dos quais apenas 63 milhões foram pagos. Desse montante, pouco mais de 3 milhões de reais foram repassados à instituição. Para piorar, uma multa, quando é paga, tramita por até três anos nas instâncias burocráticas do governo. De acordo com o diretor de proteção ambiental do Ibama, Flávio Montiel, o órgão estuda a proposição de uma lei que formalize e melhore a divisão da arrecadação com a União. "Mas esse vai ser um assunto difícil de resolver", admite Montiel.

Em outra ponta, a corrupção mina ainda mais o processo de fiscalização. No Pará, foi descoberta no ano passado uma quadrilha especializada em cancelar e encolher multas. Composto de funcionários mancomunados até com um procurador do órgão, o grupo foi responsável por uma fraude de 4 milhões de reais. A sindicância ainda não está concluída e o acusado de chefiar o bando foi transferido para a Previdência. Desde 2003, mais de sessenta servidores foram enquadrados por crimes de corrupção. Somente no caso mais recente, a Operação Curupira, realizada em junho, 47 foram presos. "Isso não quer dizer que a corrupção aumentou, e sim que nunca se investigou tanto como agora", justifica Montiel. Embora os fiscais honestos tenham conseguido apreender desde o ano passado mais de 375.000 metros cúbicos de madeira e fechado mais de 460 serrarias clandestinas, cerca de 80% da madeira que é vendida na região tem origem ilegal. Aí incluída aquela que desaparece misteriosamente dos pátios interditados pelo Ibama.

 


 

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