Especial
O
paradoxo da água
Setenta
por cento da superfície
do planeta é coberta
por água – mas só
1% de todo esse enorme
reservatório é próprio
para o consumo do
homem. O desafio é
evitar a poluição,
o desperdício e distribuir
melhor esses recursos
hídricos
João Gabriel de Lima
Antonio
Scorza/AFP
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100
toneladas
de peixes
mortos pela
poluição na
Lagoa Rodrigo
de Freitas,
no Rio de
Janeiro, em
2000: o problema
não é a quantidade
de água, mas
a qualidade
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Uma
das visões mais espetaculares
do século passado
foi a primeira imagem
da Terra feita do
espaço, na década
de 60: uma gigantesca
massa azul, com 70%
de sua superfície
coberta por água.
Neste início de século,
uma preocupação recorrente
– e justificada –
é a de que a água,
tão abundante, se
torne paradoxalmente
cada vez mais escassa
para uso humano. Em
março deste ano, o
secretário-geral da
Organização das Nações
Unidas, Kofi Annan,
decretou os anos que
vão de 2005 a 2015
como a Década da Água.
O objetivo é que nesse
prazo se reduza à
metade o número de
pessoas sem acesso
a água encanada, cifra
que ultrapassa 2 bilhões
de pessoas. Mantidos
os atuais níveis de
consumo, estima-se
que em 2050 dois quartos
da humanidade viverão
em regiões premidas
pela falta crônica
de recursos hídricos
de qualidade. É um
dado gravíssimo quando
se leva em consideração
que 60% das doenças
conhecidas estão relacionadas
de alguma forma com
a escassez de água.
Como isso é possível
em um planeta com
tantos recursos hídricos?
O problema pode ser
equacionado em dois
termos: má distribuição
e má gestão. O primeiro
se deve à própria
natureza, o segundo
é culpa do homem.
A água é realmente
a substância mais
comum na Terra. No
entanto, 97% dela
está nos mares, sendo
assim imprópria para
o uso agrícola e industrial
e para o consumo humano.
Outros 2% estão nas
calotas polares, em
forma de gelo ou neve.
Resta, assim, apenas
1% de água doce, aquela
disponível nos rios,
lagos e lençóis freáticos.
Essa água é extremamente
mal distribuída. Países
como o Canadá e a
Finlândia têm muito
mais do que precisam,
enquanto o Oriente
Médio praticamente
nada tem.
O
Brasil, dono da maior
reserva hídrica do
mundo – 13,7% da disponibilidade
de água doce do planeta
–, expressa internamente
esse paradoxo. Dois
terços da água estão
concentrados na região
com menor densidade
populacional, a Amazônia.
Isso significa que
um brasileiro de Roraima
tem 1 000 vezes mais
água à disposição
do que um conterrâneo
que vive no interior
de Pernambuco. A água
é pesada e difícil
de transportar. Levá-la
de um lugar a outro
tem sido o grande
desafio dos seres
humanos desde o tempo
dos romanos, que construíam
aquedutos por toda
parte. O segundo problema
relativo à água é
a má gestão – e, nessa
área, há outro paradoxo.
Mesmo sendo essencial
para a economia, a
água sempre foi dada
de graça. Até recentemente,
nem os industriais
nem os agricultores,
para não falar dos
consumidores domésticos,
pagavam pela água,
apenas pelo serviço
de distribuição. É
claro que, aplicando-se
à risca o princípio
econômico segundo
o qual não existe
almoço grátis, esse
raciocínio não se
sustenta. No fundo,
toda a sociedade paga
quando o governo subsidia
empresas estatais
para que tratem a
água que um empresário
vai usar em sua fábrica,
ou quando constrói
uma barragem para
que um rio seja colocado
à disposição dos lavradores
para a irrigação.
Quando não se paga
pelo que se consome,
o resultado inevitável
é o desperdício. Por
isso, quando se fala
em solucionar os problemas
da água no mundo,
uma palavra surge
como um mantra: precificação.
Significa que o governo,
que é o dono em última
análise dos mananciais
naturais de um país,
deve cobrar pelos
recursos hídricos
consumidos por seus
cidadãos, revertendo
o dinheiro para a
cobertura dos custos
de tratamento da água
e preservação dos
ecossistemas ligados
a ela.
Isso
já ocorre em países
como França e Alemanha,
considerados exemplares
na gestão de água.
No procedimento mais
utilizado, o empresário
ou o agricultor paga
duas vezes: pela água
em si e pela licença
para jogar os resíduos
nos rios. Com isso,
ele é incentivado
a gastar pouco e a
tratar ele próprio
a água antes de devolvê-la
à natureza. "Cobrar
pela água é muito
mais eficaz do que
estabelecer milhares
de leis de preservação,
quando se sabe que
o Estado não vai ter
como contratar gente
para fiscalizar e
cobrar multas", diz
Benedito Braga, diretor
da Agência Nacional
de Águas, criada em
1997. A agência iniciou
recentemente um projeto
piloto de cobrança
da água no Rio Paraíba
do Sul, compartilhado
pelos estados de São
Paulo, Rio de Janeiro
e Minas Gerais. No
ano passado, foram
arrecadados lá cerca
de 6 milhões de reais,
os quais serão reinvestidos
em estações de tratamento
em doze cidades.
AFP
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No futuro, os consumidores
domésticos também
terão de repartir
a conta da água com
empresários e agricultores,
ainda que respondam
por apenas 10% do
gasto de água doce
no mundo. Afinal,
são os esgotos não
tratados os principais
responsáveis pela
poluição dos rios,
principalmente os
das grandes metrópoles.
O problema só será
resolvido quando se
começar a cobrar pela
água em si, não apenas
por seu abastecimento.
Embora a idéia da
precificação seja
praticamente unânime,
existem os que argumentam
que ela tornaria a
água mais cara para
quem mais precisa
dela: a população
mais pobre. Existem
várias maneiras de
evitar que isso ocorra.
Na África do Sul foi
estabelecido um consumo
máximo por pessoa
– apenas acima disso
se cobra pela água.
A verdade é que o
que sai caro, para
a população pobre,
é não ter água. Nos
países onde a carência
é dramática, são as
mulheres as encarregadas
de ir até o rio mais
próximo com um vaso
na cabeça – e, como
ele freqüentemente
fica a quilômetros
de distância, às vezes
se perde o dia inteiro
nessa empreitada.
Há
pelo menos três mitos
sobre a questão da
água, magnificados
pela grita dos ambientalistas
radicais mas que não
condizem com a realidade.
O primeiro reza que
a água do planeta
estaria acabando.
Não é verdade. A água
é um recurso infinitamente
renovável, já que,
em seu ciclo, ela
cai das nuvens em
forma de chuva, fertiliza
a terra, vai para
o mar pelos rios e
evapora de volta às
nuvens, novamente
como água doce. O
segundo diz que o
consumo doméstico
desmedido estaria
acabando com a água
do planeta. Trata-se
de outro exagero.
Apenas um décimo da
água potável disponível
é gasto para que os
homens cozinhem, lavem
roupa e façam a higiene
pessoal, enquanto
70% são alocados para
a irrigação agrícola
– esta, sim, a grande
vilã do desperdício.
O terceiro mito, derivado
desse, é o de que
os recursos hídricos
vão acabar porque,
quanto mais o mundo
se desenvolve, mais
ele precisa de alimentos
e, conseqüentemente,
de água. Também não
é exato. A modernização
das técnicas agrícolas
vem fazendo com que
caia o consumo de
água. De acordo com
uma estimativa do
Pacific Institute,
um dos mais respeitados
centros de estudos
mundiais sobre o assunto,
o consumo total de
água nos Estados Unidos
era de 600 quilômetros
cúbicos por ano na
década de 80. Hoje
está em menos de 500.
A queda se deve também
à economia na indústria
e no consumo doméstico.
Nas fábricas, nos
anos 30, gastavam-se
em média 200 toneladas
de água para obter
1 tonelada de aço.
Hoje, usando-se os
métodos modernos,
esse consumo caiu
para 3 toneladas.
Nas casas, por exemplo,
a quantidade média
de água utilizada
nas descargas dos
banheiros caiu para
um quarto do que era
há vinte anos. O verdadeiro
dilema é conseguir
que, com uma população
mundial em constante
crescimento, os recursos
sejam mais bem distribuídos
e que sua qualidade
seja mantida. A história
ensina que o ser humano
administra melhor
aquilo que é tratado
como bem econômico.
A água, que está na
base de todas as cadeias
produtivas, faz jus
a esse tratamento.
Uso
irresponsável
da natureza
A
natureza
é uma
grande
prestadora
de serviços
para
a humanidade.
E é
ela
quem
dá os
elementos
básicos
para
a vida
humana
e o
desenvolvimento
econômico.
A água
é o
mais
fundamental
desses
serviços,
que
incluem
também
os alimentos,
as fontes
de energia
e os
materiais
usados
na fabricação
de todos
os objetos
que
nos
rodeiam.
Nas
últimas
semanas,
VEJA
mostrou,
em reportagens
especiais,
que
esses
serviços
têm
um custo
– altíssimo,
dependendo
da maneira
como
os utilizamos.
A reportagem
"A cegueira
das
civilizações"
(7 de
setembro)
discutiu
o risco
de a
humanidade
estar
repetindo
o erro
de sociedades
do passado
que
entraram
em colapso
porque
não
evitaram
a destruição
ambiental
causada
por
elas
próprias.
Em "Seis
provas
do aquecimento
global"
(21
de setembro),
VEJA
demonstrou
que
a mudança
climática
da Terra,
acelerada
pelo
homem,
é um
fenômeno
real
e que
seus
efeitos
não
podem
mais
ser
ignorados.
É hora
de rever
a forma
como
os recursos
naturais
são
explorados.
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