Imagens
   

Susana Olivera Dias
Bióloga e Divulgador Científico

Existem imagens que associamos com a velhice. Para o antropólogo Gilberto Velho é interessante compreender como os sistemas simbólicos operam em nossa sociedade e quais redes de significado permitem a comunicação entre diferentes grupos. Nesse sentido, esta matéria busca pensar os códigos e a simbologia relativos à velhice, partindo do pressuposto de que estes elementos seriam o meio pelo qual essas imagens se processam, sendo não apenas usadas, mas transformadas, reinventadas.

A velhice – porta aberta para a questão do tempo

Nascer, crescer, desenvolver, reproduzir, envelhecer e morrer”, esta é uma imagem possível para o transcorrer da vida humana. Nesta perspectiva, a velhice aparece como a última imagem que criamos do ser humano. A última antes da morte. Seria, portanto, um limite, um limiar, antes-do-fim. A velhice aparece como uma janela aberta para a questão do tempo.

É também uma imagem marcada por uma noção de “tempo biológico” em que etapas da vida evoluem linearmente e aparecem como algo “natural”. Esta noção de tempo indica a existência de uma programação genética que resulta num certo tempo de vida para nossas células e organismos. “Relógios biológicos” marcariam nosso tempo de vida, um tempo linear e compreendido como um fluxo progressivo e sem retorno. É comum dizermos que “gostaríamos de ter mais tempo”, que “o tempo está curto”, que “precisamos correr para dar tempo”. A busca por prolongar, ampliar, dilatar, o tempo de vida, por romper esse limite, parece sempre ter ocupado os sonhos e desejos humanos e mostram-se nas produções literárias, artísticas, cinematográficas e científicas.

 

Relacionada, freqüentemente, ao aparecimento de características como os cabelos brancos, as rugas, a perda da capacidade reprodutiva, o esquecimento, a velhice é marcada pela diminuição da velocidade dos ritmos biológicos e o comprometimento do funcionamento das funções do organismo. Ser jovem, manter-se jovem, está relacionado com a possibilidade de conservação, de manutenção, no decorrer do tempo, das propriedades e funções orgânicas, mas também de uma imagem estética criada pela negação das marcas da velhice. A imagem da velhice é resultante, muitas vezes, da rejeição de algo não desejado. O indesejável deixa de ser apenas a morte e passa a ser o próprio estado de velhice, de envelhecimento.

O Velho e o Menino - Contadores de Histórias

Os filmes Asas do Desejo, de Wim Wenders e Abril Despedaçado, inspirado no livro homônimo do escritor albanês Ismail Kadaré e adaptado para o cinema por Walter Salles, Sérgio Machado e Karim Aïnouz, são interessantes para pensarmos em outra imagem geralmente criada para a velhice: a de repositório do conhecimento, da cultura e da história da humanidade.

Num primeiro olhar, em Asas do desejo, parecem existir apenas dois grupos de personagens que vivem em escalas temporais diferenciadas: os anjos num tempo eterno, duradouro; e os seres humanos em seu tempo social, cultural. Porém, mesmo dentro do grupo dos seres humanos, parecem existir temporalidades distintas que resultam em visões diferenciadas de mundo.

Há uma cena em que um velho entra na biblioteca. Ele vê a si mesmo como um contador de histórias, mas é perturbado pelo pensamento de que o único circulo de pessoas que o ouvia se dispersou, se rompeu e não há comunicação entre eles. O velho se queixa de que até a linguagem, os sentidos das palavras e frases parecem ter desaparecido, tornando-se incoerentes. O filme parece colocar a dificuldade da comunicação entre pessoas que vivem em tempos diferentes.

O velho, forçado a viver o imediato, usa a biblioteca para tentar resgatar um sentido próprio da história de Berlim, não na perspectiva de reis e líderes, mas como um hino da paz. Cercado por globos terrestres, gira um deles, pensando que o mundo está virando pó. Embora sinta-se como um poeta ignorado e ridicularizado, no limite da terra-sem-ninguém, ele não pode desistir porque assim a humanidade perderia o seu contador de histórias, perdendo assim a sua infância.

O velho volta, quase ao final do filme, voltando também a monocromia do tempo permanente, e se arrasta na direção do Muro de Berlim dizendo: “Quem vai procurar por mim, seu contador de histórias? Eles precisam de mim mais do que nunca.”. Talvez uma tentativa de ressuscitar algo do espírito de comunicação humana, de união e de um vir-a-ser de uma paisagem monocromática e amorfa de sentimentos. O velho na biblioteca. A biblioteca e velho. Sugerem a associação com imagens que comumente fazemos da velhice: como guardiães de uma história, de uma memória coletiva. Será possível colocar em prática o projeto do vir-a-ser sem história? A voz persistente do velho, sua posição marginalizada, parece questionar isso.

Em Abril Despedaçado, o Menino, como é chamado, começa contando uma história que se desenrola na tela durante todo o filme. Ao ganhar um livro de uma viajante o Menino conta histórias dentro da história central do filme produzindo uma sensação de dilatação no tempo de vida do irmão Tonho, ameaçado de morte pelo código de vingança da região. No início e no fim do filme o Menino comenta sobre o fato de existirem outras histórias para contar, porém ele as havia esquecido. A infância aparece em Abril Despedaçado também como tempo de contar histórias e de esquecer, marcas geralmente associadas à velhice.

O enigma da velhice
A velhice é algo que nossos saberes e práticas já capturaram, algo que podemos nomear, intervir, acolher. Inúmeras pessoas trabalham para diminuir o desconhecimento sobre os idosos. Mas, não obstante, e ao mesmo tempo, a velhice é um outro. Algo que, para além da segurança de nossos saberes, desafia o poder de nossas práticas e abre um questionamento do edifício bem construído de nossas instituições de acolhimento. O autor, Jorge Larrosa, coloca que: “Uma imagem do outro é uma contradição. Mas, talvez nos reste uma imagem do encontro com o outro”. Nesse sentido, a imagem da velhice deixaria de ser uma imagem da velhice, tornando-se uma imagem a partir do encontro com a velhice. Pensar nas imagens que produzimos sobre a velhice como imagens múltiplas e em transito, sem lugar fixo, que atravessam a infância, a juventude e a velhice. Quem sabe, seria interessante pensarmos em reinventar a velhice, talvez, escapando da criação de imagens a partir de comparações e equivalências.

Fonte: Idade Ativa

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