Envelhecer
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Os vinhos envelhecem melhor ainda. Ficam ali nos limites de sua garrafa, na espessura de seu sabor, na adega do prazer. E vão envelhecendo e ganhando vida, envelhecendo e sendo amados, e, porque velhos, desejados. Os vinhos envelhecem densamente. E dão prazer.
O problema da velhice também se dá com certos instrumentos. Não me refiro aos que enferrujam pelos cantos, mas a um envelhecimento atuante como o da faca. Nela o corte diário dos dias a vai consumindo. E no entanto, ela continua afiadíssima, encaixando-se nas mãos da cozinheira como nenhuma outra faca nova.
Vai ver, a natureza deveria ter feito os homens envelhecerem diferente. Como as facas, digamos, por desgaste, sim, mas nunca desgastante. Seria uma suave solução: a gente devia ir se gastando, se gastando, se gastando até se evaporar. E aí iam perguntar: cadê fulano? E alguém diria: gastou-se foi vivendo, vivendo, e acabou. Acabou, é claro, sem nenhum gemido ou resmungo.
Isto seria muito diferente de ir envelhecendo por um processo de humilhações sucessivas, como essa coisa de ir deixando rins, pulmões, dentes e intestinos pelas mesas de cirurgia, numa mutiladora dispersão.
Acho que o que atrapalha alguns maus envelhecedores é a desmesurada projeção que fizeram de si mesmos. Se dimensionaram equivocadamente. Deveria ser proibido, por algum mecanismo biológico, colocarmos metas acima de nossas forças.
Seria a única solução de acabar com a fábula da raposa e as uvas. Assim a raposa não envelheceria resmungando por não ter devorado o que não lhe pertencia. Deveria, portanto, haver um relais, que desligasse nossos impulsos toda vez que quiséssemos saltar obstáculos para os quais não temos músculos.
Assim sofreríamos menos e não amargaríamos não ter tido certas mulheres, conquistado certos reinos, escrito certas obras primas.
A literatura tem lá seus personagens-símbolos a esse respeito: o Fausto e Dorian Gray. Apavorados com a velhice e a morte, venderam a alma ao diabo, e em troca pediram a juventude de volta. Não deu certo. O diabo não joga para perder. Dizem que a única vez que foi realmente derrotado foi naquela disputa com o próprio Deus a respeito de Jó. Mesmo assim, deu um trabalho danado.
Especialistas vão dizer que envelhece mal o indivíduo que não realizou suas pulsões eróticas assenciais; que deixou coagulada ou oculta uma grande parte de seus desejos. Isto é verdade. Parcial porém. Pois não se sabe por que estranhos caminhos de sublimação, há pessoas que, embora roxas de levar tanta pancada da vida, têm, contudo, um arco-íris na alma.
Bilac dizia que a gente deveria aprender a envelhecer com as velhas árvores. Walt Whitman tem um poema onde vai dizendo: " Penso que podia viver com os animais que são plácidos e bastam-se a si mesmos".
Ainda agora tirei os olhos do papel e olhei a natureza em torno. Nunca vi o sol se queixar no entardecer. Nem a lua chorar quando amanhece.