UNIVERSIDADE
FEDERAL DE SANTA CATARINA - E.L.A.
ESTUDOS
LATINO-AMERICANOS
CENTRO DE CIÊNCIAS DA EDUCAÇÃO
COLÉGIO DE APLICAÇÃO
DISCIPLINA: ESTUDOS LATINO-AMERICANOS
E.L.A.
PROFESSORA:
IVONETE DA SILVA SOUZA
texto
didático 3º - março 2004
RELAÇÕES
DE TRABALHO NA AMÉRICA COLONIAL ESPANHOLA
A mão-de-obra empregada na economia colonial
hispano-americana baseou-se em variadas formas
de trabalho compulsório, ficando o trabalho
livre e assalariado reduzido, salvo exceções,
a certos ramos do artesanato urbano, aos trabalhadores
especializados (técnicos do amálgama,
mestres do açúcar, etc.), ou às
funções intermediárias
de administrador ou feitor (mayordomo).
Á
escravidão indígena teve, no conjunto,
escassa importância, salvo no ciclo
antilhano, a inícios do século
XVI, e nas regiões de índios
bravos (chichimecas, araucanos, etc.),
reduzidos à escravidão quando
aprisionados em guerra. A escravização
dos rebeldes (guerra justa) era,
aliás, a única via de legitimação
da escravidão indígena, pois desde
cedo a Coroa e a Igreja trataram, com relativo
êxito, de combater tais práticas.
Mas o sucesso desta política deveu-se,
em grande medida, à existência
de sistemas tributários pré-coloniais
no México, na América Central
e nos Andes, que permitiam a extração
do sobretrabalho aldeão sem recurso à
escravidão. Quanto à escravidão
africana, esteve presente em várias regiões
da América espanhola durante todo o período
colonial, sendo inclusive predominante em regiões
como a costa peruana, partes da Colômbia,
Venezuela, Cuba, etc. Entretanto, durante todo
o período de sua existência do
tráfico africano, a América espanhola
recebeu apenas 1/15 dos escravos enviados para
as colônias.
As
relações essenciais da economia
colonial foram aquelas apoiadas nas comunidades
indígenas, tributárias dos grandes
impérios asteca e inca. Em primeiro lugar,
a encomienda, instituição espanhola
originada na Reconquista, e que sofreu adaptações
nas colônias. Regulamentada no inicio
do século XVI, a propósito da
colonização antilhana, a encomienda
só pôde existir efetivamente nas
regiões de populações sedentárias
do continente. Economicamente, a encomienda
pressupunha a repartição das aldeias
submetidas pelos vários conquistadores,
que passavam a explorar-lhes o sobretrabalho
sem, contudo, escravizar os índios. Os
encomendeiros podiam exigir tributos em gêneros
(encomienda de tributos) ou prestações
de trabalho (encomienda de servicios), mas não
tinham qualquer direito à terra dos índios
(salvo eventuais defraudações).
A rigor, não se tratava de uma relação
tradicional de servidão, mas de
um vínculo peculiar estabelecido entre
encomendeiros e aldeias. com a intermediação
das chefias comunitárias. A encomienda
reuniu, em sua estrutura, aspectos da tradição
senhorial ibérica com os costumes tributários
do passado pré-colonial mesoamericano
e andino.
Ao
longo do século XVI, a Coroa e a Igreja
se voltaram contra a encomienda, proibindo as
prestações de trabalho, restringindo
a hereditariedade do beneficio e recolocando
as aldeias sob o controle direto da administração
colonial. De todo modo, a encomienda tendeu
a desaparecer antes que findasse o século
XVI. No México, entre 1550 e 1560, a
maioria das aldeias passou ao controle régio,
o mesmo ocorrendo no Equador, Peru e Bolívia,
na década de 1570 e, ainda, na Colômbia,
nos anos l590.
O
declínio da encomienda foi acompanhado
pela redução das comunidades indígenas
em circunscrições chamadas corregimientos
de indios, localizados sempre próximos
às cidades e minas: Ali, os índios
deveriam trabalhar nos moldes tradicionais e
vender os excedentes agrícolas, a fim
de abastecer a população colonial
de mantimentos, e obter os meios para o pagamento
dos tributos. Deviam, contudo, continuar prestando
serviços nas empresas coloniais através
do repartimiento, que abrangia todos os homens
adultos das aldeias. Neste sistema, cada comunidade
deveria fornecer, periodicamente, uma quantidade
de trabalhadores para as atividades coloniais,
sendo cada turno de repartidos sorteado
pelas chefias aldeãs (isentas da tributação).
Cuidava-se para que o sorteio e o envio de trabalhadores
fossem adequados à disponibilidade da
aldeia, de modo a não alterar a subsistência
da comunidade o que foi inviável,
a médio prazo. Uma vez sorteados, os
índios eram conduzidos a um juiz
repartidor do corregimiento, e daí
encaminhados para os interessados em contratá-los.
Pelo trabalho no repartimiento, cujo tempo variava
de semanas a meses, os índios deveriam
receber um salário, parte do qual obrigatoriamente
em moeda (ou metal), a fim de que pudessem pagar
o tributo régio. Veja-se, desde logo,
a originalidade desta relação,
conhecida como mita no Peru, e cuatéquil
no México, que combinava práticas
pré-coloniais de recrutamento aldeão
com formas atípicas de assalariamento,
sendo impossível confundi-la com a servidão
medieval, a escravidão ou ao trabalho
livre.
A
prática do repartimiento foi, contudo,
variável de região a região,
muito embora tenha sido a principal relação
de trabalho na América espanhola até
meados do século XVII, sobretudo em função
da economia de mineradora. No caso de México,
o repartimiento nunca foi tão importante
como no Peru, e tendeu a esgotar-se em 1630/1650.
Ao contrário do Peru, onde as minas ficavam
próximas aos vales densamente povoados
do antigo império inca, o México
tinha as suas minas localizadas fora da região
central (coração do império
asteca), o que implicou o apelo a outras formas
de trabalho. Ainda assim, muitas comunidades
foram transferidas para Zacatecas e Guanajuato,
e o cuatéquil foi bastante utilizado,
mas o esgotamento das aldeias e as dificuldades
de reposição acabaram por inviabilizar
o sistema. Os mineiros tiveram, então,
que atrair trabalhadores com salários
relativamente altos, especialmente com o partido
direito de cada trabalhador receber uma
parte do mineral produzido o que levou
muitos índios a abandonarem suas aldeias
em direção ao norte mineiro. Mas
não se deve exagerar a mobilidade desta
mão-de-obra, pois desde cedo os mineradores
trataram de endividar os trabalhadores, manipulando
as suas contas no armazém da mina (tienda
de raya), a fim de retê-los na unidade
de produção. Deste modo, os trabalhadores
livres das minas mexicanas convertiam-se
em gafianes, naboríos e Iaboríos
relações bem próximas
à servidão pessoal e poucos
ficavam realmente como assalariados.
No
caso do Peru, a mita perdurou até inícios
do século XIX, mas também aqui
os mineradores trataram de reter a mão-de-obra
em face da crise demográfica. Além
de concederem o partido, costumavam oferecer
um salário mais alto para que os índios
permanecessem na mina ao invés de retornarem
às aldeias, de forma que o índio
trabalhava uma semana como mitayo, a 3 1/2 reales
por dia, e a semana seguinte como mingado, a
4 reales diários. O sistema levava, como
no México, ao endividamento do trabalhador
junto ao armazém local e à sua
retenção na unidade produtiva.
Também
na hacienda praticou-se, largamente, o sistema
de endividamento de trabalhadores, a fim de
retê-los na propriedade. A relação
é amplamente conhecida como peonaje,
na qual o trabalhador recebia como salário
um crédito na tienda de raya (onde retirava
alimentos, roupas, etc), além de um lote
mínimo de subsistência. Suas contas
eram manipuladas pelo hacendado de modo a tornar
insolvente a dívida do peão, que
ficava obrigado a pagá-la com trabalho.
Enfim, muitos índios se dirigiam voluntariamente
para as haciendas, sobretudo no século
XVII, a fim de escaparem do repartimiento, dispondo-se
a trabalhar gratuitamente para os fazendeiros
em troca de um exíguo lote de subsistência.
Entre outros exemplos, citemos os terrazgueros,
no México, os yanaconas, no Peru, os
inquilinos, no Chile, os agregados, na Cólômbia,
os huasipungueros, no Equador, etc.
Assim,
as relações de trabalho vigentes
na América espanhola apresentaram enorme
complexidade, combinando práticas tributárias
pré-coloniais, formas atípicas
e precárias de assalariamento e mecanismos
de sujeição pessoal de trabalhadores.
Em suma, foram construídas relações
sociais diversas, no espaço e no tempo,
mas que convergiam, em diferentes graus, no
sentido da servidão.
VAINFAS,
Ronaldo. Economia e Sociedade na América
Espanhola. Rio de Janeiro : Graal, 1984.
Transposição
didática: Ivonete da Silva Souza