Max Weber e o destino do "despotismo oriental"

Max Weber e o destino do "despotismo oriental"

Sérgio da Mata

Max WEBER. Estudos políticos. Rússia 1905 e 1917. Rio de Janeiro, Azougue, 2005. 215 páginas.

Por volta de 1905 a atenção de Max Weber gravitava em torno dos colossos norte-americano e russo. A publicação da segunda parte da Ética protestante estava concluída, e no ano anterior ele viajara, na companhia de sua esposa Marianne e de Ernst Troeltsch, para a Exposição Universal em Saint Louis. Foi forte a impressão que teve dos Estados Unidos, como se pode ver nas longas cartas reproduzidas na biografia escrita por Marianne. Em 1906, ele publica no jornal protestante-liberal Christliche Welt um ensaio sobre "Igrejas e seitas na América do Norte" (Weber, 1973), no qual atribui à ética do puritanismo e das seitas o ethos liberal daquele país. Esta apreciação remete de forma explícita aos trabalhos de Georg Jellinek. Em 1895, Jellinek (2003) havia postulado que o fundamento do liberalismo político norte-americano fora o ideal de liberdade religiosa trazido pelos colonos protestantes.

Os estudos de Weber sobre a Rússia, publicados na mesma época, trabalham com uma problemática similar. Para ele, a Alemanha poderia e deveria aprender com as experiências que se desenrolavam a oeste e a leste. Pois nelas se encerrava, se assim podemos nos expressar, um dos grandes dilemas da modernidade. Tratava-se, quanto aos Estados Unidos, da seguinte questão: como não perder a liberdade a duras penas conquistada?1 E quanto à Rússia: como inventá-la?

O interesse de Weber pela Rússia vinha de longe. Ele estava bastante familiarizado com a literatura de Dostoiévski e Tolstói, bem como com os escritos do filósofo Vladimir Soloviev.2 Em 1912, chegaria a anunciar, em carta, o desejo de escrever um livro (o que nunca chegou a ocorrer) sobre a ética em Tolstói.

Foi provavelmente por meio de Theodor Kistiakovski, professor de filosofia do direito em Heidelberg, que Weber estreitou seus laços com inúmeros estudantes russos. Ele simpatizava com a plataforma dos kadets (constitucional-democratas) e abriu-lhes espaço no Archiv für Sozialwissenschaft. Quando o "domingo sangrento" precipita os acontecimentos na Rússia, Weber passa a acompanhar atentamente a imprensa daquele país, pois considerava demasiado hostil a cobertura dos jornais alemães (Mommsen, 1997).

Antes, porém, de abordarmos os textos propriamente ditos, algumas palavras sobre esta edição brasileira. O volume é precedido de um extenso ensaio introdutório do tradutor, Maurício Tragtenberg. Na sua apresentação, situa com maestria os ensaios no quadro mais amplo dos textos políticos e dos estudos sociológicos de Weber. Trata-se de um esforço que, por si só, merece um lugar à parte na história da recepção do pensamento weberiano no Brasil.

A tradução realizada por Tragtenberg, em meio à década de 1980, certamente não foi fruto de uma curiosidade informada por razões puramente teóricas. Num momento em que a sociedade civil brasileira pôde dar início a uma gradativa recomposição de seus espaços de participação política (mas que à época nenhum analista sensato se arriscava a considerar irreversível), não deixava de ser particularmente oportuno conhecer mais de perto a experiência russa de início de século XX - também ela marcada por aquilo que Jessé Souza chamou de "modernização seletiva". Uma modernização confrontada com a persistência de um sistema político não apenas autocrático, mas (no entendimento de Weber) anacrônico.

Contudo, parte significativa do empreendimento de Weber permanece ainda inédita em português, uma vez que se tomou por base a versão editada por Johannes Winckelmann.3 As diferenças em relação aos textos originais são enormes. Basta dizer que o primeiro dos estudos do volume ("A situação da democracia burguesa na Rússia") teve sua extensão praticamente reduzida à metade por Winckelmann. Das mais de noventa notas inseridas por Weber chegaram-nos apenas cinco, sendo apenas três delas da pena do próprio autor. Desnecessário dizer que, com isso, se perde muita coisa importante. Na primeira nota do original, o autor adverte que sequer reclama para si um conhecimento aprofundado da situação da Rússia. Ele pretende apenas oferecer um substituto temporário para um "relato político-social sério" da Revolução de 1905. Weber caracteriza seu artigo como "notas ao estilo de crônicas" (chronikartige Notizen). Uma verdadeira história dos acontecimentos só poderia ser escrita, afirma, depois de reunida grande quantidade de documentos escritos, aos quais o pesquisador ocidental ainda não tinha acesso.4

Limitemo-nos, em todo caso, ao texto tal como foi posto à disposição do leitor brasileiro. Em "A situação da democracia burguesa na Rússia", Weber discute o projeto de constituição elaborado por Piotr Struve, um ex-marxista convertido ao liberalismo e discípulo de Jellinek (Struve havia inclusive publicado no Archiv). Toda a discussão se dá em torno de uma tríade: a situação das forças políticas liberais, a crise do regime político czarista e as reivindicações do campesinato.

Eis uma consideração surpreendente para um autor que ainda se definia, em grande medida, como historiador: "com exceção da Igreja e das comunidades camponesas [...], não existe [na Rússia] mais nada de histórico" (p. 51). O regime czarista fazia lembrar a monarquia de Diocleciano. Essa propensão a julgar a-históricas as estruturas social e política da Rússia não era exatamente incomum na Alemanha. Engels havia manifestado opinião semelhante. Aquilo que os fundadores do materialismo histórico denominaram "despotismo oriental" era também objeto de preocupação para Weber - que, curiosamente, manteria sua opinião a respeito do suposto imobilismo russo. Em uma participação oral no primeiro congresso alemão de sociologia, Weber (1988, p. 468) afirma que o cristianismo russo mantivera basicamente as mesmas feições do cristianismo antigo.5 Portanto, era em "ambiente ainda arcaico" (p. 144) que se tentavam implantar reformas de cunho liberalizante.

 

Weber avalia as possibilidades dos reformistas a partir da confluência de distintas forças sociais e econômicas favoráveis: os zemstvos (conselhos comunais criados por Alexandre II), o desenvolvimento do capitalismo e a organização crescente dos partidos liberais. Ele se detém sobre a legislação eleitoral antes da convocação da Duma, em maio de 1906. E antevê a radicalização do processo político: diante da perspectiva de forte presença da representação camponesa e dos diversos segmentos da esquerda russa, Weber mantém-se pessimista, pois considera que a massa popular "ainda não possui formação política" (p. 62). Da visão mística de Soloviev sobre a "missão" do povo russo à ética heróica de Tolstói, do radicalismo da esquerda revolucionária à intransigência da burocracia czarista, tudo isso lhe parecia configurar um quadro em que o exercício de uma Realpolitik era virtualmente impossível.

Dada a fragilidade da incipiente burguesia russa, o campesinato tornara-se o fiel da balança. O "radicalismo furioso das massas" rurais (p. 77) alimentava-se do avanço do capitalismo no campo e mesmo da redistribuição de terras: "a execução do programa de reforma agrária dos democratas burgueses viria a dar [...] um enorme impulso ao espírito do comunismo agrário e do socialismo agrário entre os camponeses" (p. 79). Ademais, o forte sentimento antiburocrático do campesinato conduzia a Rússia a outro dilema. As massas rurais aparentemente dispunham-se a aceitar a parlamentarização, mas não o aumento do peso do aparato burocrático por ela acarretada. Mais ainda: nada poderia garantir que, de um momento para o outro, seu radicalismo político-social não se transformasse em reacionarismo.

Weber não acreditava que os marxistas pudessem encontrar uma solução para a questão agrária, e nada lhe sugeria que na Rússia de então houvesse "estadistas" à altura da crise (p. 99). A missão dos liberais consistiria em lutar contra o centralismo e difundir entre as massas o individualismo e a noção de direitos da pessoa.6 Por outro lado, tais valores tinham a ingrata tarefa de se impor a despeito do desenvolvimento econômico capitalista. Weber é cético com relação ao futuro da democracia. "Todos os barômetros da economia", afirma ele, "prevêem o aumento das restrições à liberdade" (p. 103). A grande questão que se colocava era, pois, a seguinte: "como é possível a persistência da democracia e da liberdade sob o domínio do alto capitalismo?" (p. 104).

O complexo de causas que explicariam a gênese histórica da nossa noção de liberdade teria se dado apenas uma vez na história. Tais condições, consideradas irrepetíveis por Weber, seriam as seguintes: a facilidade de difusão de (e a abertura para) novas idéias no contexto da expansão ultramarina dos séculos XV a XVII, as características próprias da estrutura econômico-social européia na época da aurora do capitalismo, o domínio da ciência sobre a vida e, enfim, determinadas concepções de valor originadas no mundo das representações religiosas. Ainda assim, Weber acreditava que valia a pena acompanhar de perto as experiências norte-americana e russa. Elas seriam as "últimas oportunidades para construir culturas livres, começando pelos alicerces" (p. 108).

Weber acertou em sua previsão de que a situação política russa tendia à radicalização. As pressões da Duma pela libertação dos presos políticos, pelo direito à sindicalização e pela reforma agrária levaram o Czar a dissolver o parlamento em julho de 1906. Em agosto, Weber publica "A transição da Rússia a um regime pseudoconstitucional", em que dá continuidade à "crônica" iniciada no artigo anterior. Uma nova variável passa a ser considerada: a interferência do capital financeiro no processo revolucionário. Três décadas antes, Engels (1962, p. 567) já havia observado que "as finanças [do Estado russo] estão arruinadas". Weber faz um diagnóstico idêntico, mostrando como tal situação levou a uma dependência crescente do Czar em face dos bancos estrangeiros, o que, em contrapartida, lhe permitia manter-se insensível às demandas da burguesia russa e dos que a representavam na Duma. Assim, a abertura política prometida pelo manifesto de 17 de outubro foi simplesmente jogada no lixo por Nicolau II. A "racionalização burocrática definitiva de todo o campo da política interna" (p. 130) serviria ainda menos à causa da liberdade. Diante de um "absolutismo burocraticamente racionalizado", mesmo a estratégia do terrorismo de setores da esquerda estava fadada ao fracasso (p. 136).

A questão-chave era, para Weber, o problema agrário. A reforma agrária, tal como vinha sendo reclamada pelos camponeses, seria simplesmente irrealizável. As "estatísticas" demonstravam que "não havia tantas terras assim" (p. 152). Somente um regime despótico, e que gozasse de finanças saudáveis, estaria em condições de eliminar as oposições à reforma agrária. Weber descarta a possibilidade de desapropriação forçada. O bom senso faltaria a todos, dos kadets à esquerda revolucionária. Julgar que os camponeses poderiam realizar esta reforma por si sós não passava de "auto-ilusão" (pp. 156-157). Em inúmeras passagens Weber revela sua crença de que somente uma liderança carismática - um "parvenu genial" (p. 157) - estaria em condições de restaurar a ordem, pacificar o ambiente político e constituir as bases a partir das quais poderia surgir uma "nova Rússia".

Em março de 1906, ficava claro que o governo estava encurralado. A "democracia ideológica" estava eliminada e Nicolau II, a quem Weber não poupa em momento algum, se rendera ao poder dos bancos. Somente dessa forma se explica, acredita Weber, que as forças da reação tenham evitado a invenção da liberdade na Rússia.

A Duma teve, aos seus olhos, um desempenho surpreendentemente positivo: "não existe nenhum parlamento do mundo que tenha realizado tanto em tão pouco tempo" (p. 175). Sua dissolução significava apenas o adiamento de uma verdadeira solução do dilema russo. Embora não dispusessem do "charme" das primeiras revoluções burguesas, ainda assim os acontecimentos de 1905 eram dignos de admiração. Afinal, "jamais se viu tamanha prontidão para o martírio" (p. 184). A comparação com outras revoluções revelava uma outra diferença que Weber acreditava ser fundamental (e o fato de ele insistir repetidas vezes nesse ponto é bastante revelador em si mesmo): a ausência de uma liderança carismática à altura das exigências históricas do momento. Na Rússia faltariam "líderes realmente grandes", "grandes personalidades" (pp. 181-182). É evidente que ele não os reconhece entre os líderes da esquerda, e muito menos entre os bolcheviques, o que pode ser atribuído tanto às suas posições políticas pessoais quanto - é a tese de Mommsen - à sua convicção de que a Alemanha vivia uma situação análoga neste particular.

 

O último ensaio do volume ("A transição da Rússia à pseudodemocracia") é, de longe, o menos inspirado. Aparentemente, a revolução de fevereiro de 1917 pegou nosso autor de surpresa. Como a maioria dos observadores, à exceção dos marxistas, uma solução de tipo não-burguês lhe parecia improvável. Ele chegou a admitir que haveria, entre os novos governantes, "chefes hábeis e pelo menos parcialmente desprendidos" (p. 190), mas o problema era que o governo provisório não dispunha de crédito no exterior - fragilidade que Weber considerava fatal.

O leitor se surpreende por não encontrar uma apreciação, por ligeira que seja, da situação do proletariado russo. Nem mesmo os soviets são mencionados. É ainda o campesinato o ator social em que Weber concentra sua atenção. Para ele, não havia paz à vista entre Rússia e Alemanha (àquela altura, não lhe escapava que seu país caminhava a passos largos para a derrota na guerra). Pois o interesse principal dos novos governantes russos consistia em manter os camponeses longe de casa. O campesinato também não deveria esperar muito dos operários. Na avaliação de Weber, a vitória dos primeiros poderia significar um atraso no desenvolvimento industrial russo. Ao fim e ao cabo, fevereiro de 1917 não seria uma revolução, mas o mero desligamento de um monarca incapaz (p. 207).

Em que pesem as fragilidades de sua crônica política, nos artigos de Weber não falta, como sempre, o lampejo da intuição genial. Para um homem que se inteirava do que ocorria na Rússia unicamente através da imprensa e de seus contatos pessoais, o resultado inegavelmente impressiona. Somos tentados a imaginar como Weber pensaria hoje o dilema russo, de vez que, exatos cem anos depois, este não parece completamente solucionado. Talvez seja oportuno acrescentar que, em várias outras partes do mundo, a necessidade de invenção da liberdade e de superação do "despotismo oriental" continua a reclamar observadores do mesmo quilate.

Bibliografia

BELKIN, Dmitrij. (2000), Die Rezeption V. S. Solovevs in Deutschland. Tese de doutorado. Eberhard-Karls-Universität zu Tübingen, datilo.

DOSTOIEVSKI, Fiódor. (1904), Journal dun écrivain. Paris, E. Fasquelle.

ENGELS, Friedrich. (1962), "Soziales aus Russland", in Marx-Engels Werke, Berlin, Dietz, vol. 18.

JELLINEK, Georg. (2003), La declaración de los derechos del hombre y del ciudadano. México, Universidad Autónoma de México.

MATA, Sérgio da (2005), "Max Weber e a ciência histórica". Teoria & Sociedade, (número especial): 150-171, maio.

MOMMSEN, Wolfgang. (1997), "Max Weber and the regeneration of Russia". Journal of Modern History, 69 (1): 1-17.

WEBER, Max. (1973), Soziologie. Universalgeschichtliche Analysen. Politik. Stuttgart, Kröner.

_________. (1988), Gesammelte Aufsätze zur Soziologie und Sozialpolitik. Tübingen, J. C. B. Mohr.

Notas

1 "O caráter democrático da América do Norte é dependente do caráter colonial de sua civilização, e, por conseguinte, demonstra a tendência de declinar juntamente com este último" (Weber, 1973, p. 395).

2 A recepção dos escritos de Soloviev na Alemanha e o contato de Weber com sua filosofia são analisados por Belkin (2000, p. 37-38).

3 Sem dúvida a edição mais acessível naquele momento. Tragtenberg evidentemente não teve como se basear no décimo volume da Max Weber Gesamtausgabe (MWG), todo ele dedicado aos escritos de Weber sobre a Rússia e publicado, em 1989, sob a coordenação do historiador Wolfgang Mommsen.

4 Sobre a forma como Weber encarava a pesquisa histórica, cf. Mata (2005).

5 "Das russische Christentum war und ist noch heute in seinen spezifischen Typen in hohem Ma_e antikes Christentum". Esta colocação foi feita em meio aos seus comentários sobre a conferência de Troeltsch "O direito natural estóico-cristão e o direito natural profano moderno".

6 Num trecho particularmente interessante de seu Diário de um escritor, Dostoiévski observa que uma das maiores dificuldades, nesse sentido, consistia na adesão meramente epidérmica a tais valores: "En public, un Russe sera un européen, un citoyen du monde, le chevalier défenseur des droits humaines; tant pis si dans son for intérieur il se sent un homme tout différent, trés fermement convaincu du contraire de ce quil a professé. Rentré chez lui il sécriera au besoin: Eh! au diable les opinions et même la liberté. Quon me fouette si lon veut, je men monque!" (1904, p. 111).

Sérgio da Mata é professor-adjunto do Departamento de História da UFOP e doutor em História pela Universidade de Colônia

Fonte: Revista Brasileira de Ciências Sociais


 

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