A
prática docente na era da globalização
Gilberto
Teixeira , Prof.Doutor (FEA/USP)
Maria Cândida Moraes, ao analisar
em seu livro O paradigma educacional
emergente (Campinas, Papyrus, 1997)
os desafios da Educação
no mundo globalizado, propõe
o paradigma construtivista, interacionista,
sociocultural e transcendente como
ponto de partida para se repensar
a Educação. Este paradigma,
cujos princípios acham-se essencialmente
ligados às teorias da Quântica
e da Relatividade, concebe o sujeito
e o objeto como organismos vivos e
interativos, considerando a necessidade
de diálogo do indivíduo
consigo próprio e com o outro,
na busca da comunhão com o
Universo (p.25). Estes valores definem
as necessidades do homem de hoje,
inserido num mundo calcado na desigualdade
social e ameaçado de destruição
pelo avanço tecnológico,
num contexto em que as formas de Poder
se afirmam enquanto capacidade de
se estabelecer relações,
em que os valores de troca se definem,
em última análise, como
informação, conhecimento
e criatividade (p.46).
Diante do exposto, o novo paradigma
pretende formar um indivíduo
menos egoísta, resgatando o
ser humano como um todo, visando assim
humanizar as relações
sociais. É dentro desse espírito,
que Maria Cândida afirma que
o mundo globalizado ou a era das relações,
requer
"uma
nova ecologia cognitiva, traduzida
na criação de novos
ambientes de aprendizagem que privilegiem
a circulação de informações,
a construção do conhecimento
pelo aprendiz, o desenvolvimento da
compreensão e, se possível,
o alcance da sabedoria objetivada
pela evolução da consciência
individual e coletiva." (p.27)
Neste contexto, o professor como transmissor
de conhecimento desaparece para dar
lugar à figura do mediador.
A negação da imagem
do professor como mero repassador
de informações, já
presente em Dewey, em Anísio
Teixeira e em Paulo Freire, é
retomada no paradigma emergente, que
parte do princípio de que na
era da internet, o professor não
é a única e nem a mais
importante fonte do conhecimento.
O indivíduo é bombardeado
de informações a todo
momento e através de diversas
fontes. Cabe ao docente, mais do que
transmitir o saber, articular experiências
em que o aluno reflita sobre suas
relações com o mundo
e o conhecimento, assumindo o papel
ativo no processo ensino-aprendizagem,
que, por sua vez, deverá abordar
o indivíduo como um todo e
não apenas como um talento
a ser desenvolvido. O desafio está
portanto na incorporação
de novas tecnologias a novos processos
de aprendizagem que oportunizem ao
discente atividades que exijam não
apenas o seu investimento intelectual,
mas também emocional, sensitivo,
intuitivo, estético, etc, tentando
não simplesmente desenvolver
habilidades (Dewey/Anísio Teixeira),
mas o indivíduo em sua totalidade.
De acordo com o novo paradigma, a
própria noção
de conhecimento deve ser revista.
O conhecimento não é
algo acabado nem definitivo. Conforme
as leis da Física Quântica,
mesmo os objetos são relativos,
posto que inclui o olhar do observador
(a quarta dimensão do objeto).
Assim, a realidade quântica
jamais será observada duas
vezes da mesma forma. Isso torna os
conceitos relativos, e a realidade
será sempre um modo particular
de percepção do mundo
e das coisas, não havendo verdades
perenes, mas verdades relacionais
e portanto transitórias.
Se não há verdades absolutas
a serem comunicadas, também
não há um mundo externo
ao indivíduo a ser comunicado.
Toda percepção, todo
conceito, toda observação
leva em conta o olhar do observador,
de modo que a própria realidade
se relativiza, no sentido de que será
uma vivência única para
cada indivíduo. Isto considerado,
ao invés de centrar nos conceitos,
o novo paradigma sugere que a escola
privilegie as relações,
dando maior importância não
ao resultado, mas ao processo, não
à funcionalidade do aprendizado,
mas à auto-realização,
à auto-estima.
Essa nova prática exige ambientes
que extrapolem o espaço da
sala de aula, ocupando de modo mais
assíduo não apenas os
laboratórios e os espaços
sociais da escola, como também
os disponíveis na Comunidade,
realizando atividades colaborativas
em que as experiências sejam
vivenciadas individualmente e em grupo,
atividades que privilegiem a dinâmica
de projetos, que invistam o aluno
de responsabilidades reais ante o
seu aprendizado e o mundo que o cerca,
atividades que sejam avaliadas, mais
do que por uma avaliação
de conteúdos, pela auto-realização
que elas proporcionem. Neste contexto,
o aulismo passa a ser coisa do passado,
abrindo caminho para a pedagogia do
"estar no mundo". A sala
de aula deixa de ser o templo da transmissão
e da repetição do saber
para sediar importantes momentos de
socialização do aprendizado
individual e de experiências
em grupo, do diálogo e do confronto
entre essas experiências e a
teoria, da formulação
de problemas e da busca de soluções.
O que se propõe é uma
escola em que o aluno se veja participante
de uma Comunidade, em que ele perceba
sua futura profissão como instrumento
de presença no mundo. É
importante ressaltar que a Escola
Nova e a Tecnicista já propunham
esses objetivos. O sucesso tecnológico
dos Estados Unidos deve muito à
pedagogia liberal-progressista de
Dewey. Entretanto, como nos explica
Danah Zohar, em Sociedade quântica
(São Paulo, Best Seller, 2000,
p. 155), o indivíduo liberal
"desenvolve qualidades que o
separam dos outros, na busca de metas
individuais. Evita compromissos com
os outros. Sempre se pergunta que
vantagem leva, vê-se como partícula,
fixada à identidade, não
será membro efetivo de nenhuma
comunidade". A escola da era
da globlização deverá
corrigir essas distorções
e formar cidadãos que possam
exercer, na sua Comunidade, uma presença
humanizadora, uma presença
que implique não em competitividade,
mas em vivência coletiva, em
crescimento com o outro. Neste sentido,
são bastante esclarecedoras
as palavras de MORAES, para quem
"uma
educação para a era
relacional pressupõe o alcance
de um novo patamar na história
da evolução da humanidade
no sentido de corrigir os inúmeros
desequilíbrios existentes,
as injustiças e as desigualdades
sociais, com base na compreensão
de que estamos numa jornada individual
e coletiva, o que requer o desenvolvimento
de uma consciência ecológica,
relacional, pluralista, interdisciplinar,
sistêmica, que traga maior abertura,
uma nova visão da realidade
a ser transformada, baseada na consciência
da inter-relação e da
interdependência essenciais
que existem entre todos os fenômenos
da natureza. Uma educação
que favoreça a busca de diferentes
alternativas que ajudem as pessoas
a aprender a viver e a conviver, a
criar um mundo de paz, harmonia, solidariedade,
fraternidade e compaixão".
(op. cit, p. 27)
Como se observa, o novo paradigma
delineia uma utopia que envolve não
apenas o indivíduo, mas o grupo,
aqui entendido não apenas como
a Comunidade, o grupo étnico,
a nação, mas o globo.
Em termos de estratégias de
ensino, o novo paradigma sugere, de
um lado, a diminuição
da importância das aulas expositivas
(dissertativas, diria Paulo Freire)
e, de outro, a intensiva imersão
do futuro profissional na Comunidade.
No primeiro caso, é necessário
repensar o uso de materiais didáticos
que, embora agradáveis e visualmente
atrativos, podem estar apenas reforçando
a escola tradicional, alertando o
docente para a necessidade de se escolher
o material didático do ponto
de vista do seu efeito no aprendiz:
evidentemente recursos que exijam
do aluno uma situação
passiva, de "receptor",
diante de um conteúdo a ser
apreendido não podem ser considerados
desejáveis no contexto ensino-aprendizagem
que privilegie a construção
do saber. Os professores devem estar
alertas em relação à
utilização dos recursos
de mídia e hipermídia
nas escolas, lembrando que o uso das
tecnologias modernas de informática
não podem desencadear por si
só uma nova postura diante
do processo ensino-aprendizagem. Transcrevendo
as palavras de Moraes, "Programas
visualmente agradáveis, bonitos
e até criativos podem continuar
representando o paradigma instrucionista
ao colocar no recurso tecnológico
uma série de informações
a ser repassada ao aluno"(op.cit,
p.16), reafirmando e expandindo a
velha pedagogia do repasse de conhecimentos.
No segundo caso, urge que a escola
promova o desenvolvimento das várias
faculdades (e não apenas a
intelectual) do aluno, de modo que
em sua ação futura,
como profissional, não veja
o outro (o paciente, o cliente, o
aluno, etc) como apenas um "receptor"
de um determinado conhecimento, mas
como uma pessoa completa, com necessidades,
com problemas, etc. É preciso
que o indivíduo perceba o outro
não como seu inimigo, como
um competidor, mas sobretudo como
extensão de si mesmo, pois,
como escreve Danah Zohar, em Sociedade
quântica (São Paulo,
Best Seller, 2000, p. 254), nos termos
da nossa natureza quântica há
uma necessidade mútua entre
o meu eu e os outros, dos quais preciso
para ser plenamente eu. Quanto mais
liberdade e direitos eu tiro do outro
mais limitados serão meus direitos
e minha liberdade.
A prática pedagógica
na era das relações
deve considerar, finalmente, que a
Educação visa, em última
análise, a felicidade do indivíduo,
contextualizando essa premissa à
realidade de país de Terceiro
Mundo. Isso significa pensar um projeto
pedagógico que contribua de
modo efetivo para o crescimento econômico
e a divisão igualitária
dos bens entre todos os brasileiros.
Evidentemente não vivemos mais
a dualidade ideológica que
inspirou a pedagogia do oprimido,
de Paulo Freire. Entretanto o mundo
continua dividido entre os que detêm
o conhecimento e os que não
o detêm. É preciso ressaltar
que a mundialização,
como chamam os franceses, é
a globalização de uma
fala única, que socializa não
a riqueza, mas a dor, a exploração
e a fome.Há um gigantesco processo
de segregação e nunca
presenciamos tanta fome, tanta exploração,
tanta exclusão.
Dentro desses termos, um projeto de
Educação centrado no
conhecimento, na criatividade e na
capacidade de reconstrução
do saber, sem entretanto um projeto
social que lhe dê sentido, não
fará mais do que manter o status
quo, formando habilidades e competências
para a manutenção do
projeto neo-liberal americano, perpetuando
a sua hegemonia sobre os países
menos desenvolvidos. Dessa forma,
entendemos que, num país de
terceiro mundo como o nosso, o novo
paradigma só terá sentido
se compreendido como um projeto de
resistência, que preserve culturas
e economias. Não estamos falando
aqui em negação da realidade
capitalista, mas em afirmação
da resistência no sentido de
que é necessário construir
uma realidade interna que possibilite
ao País dialogar, econômica
e culturalmente, com as nações
desenvolvidas. Sem essa visão
clara, nossa pedagogia cairá
no vazio ou, pior ainda, concorrerá
para a redução do País
a mero importador de produtos e de
tecnologias estrangeiras, perpetuando
a desigualdade e a cultura de dependência.
Diante desse quadro, Paulo Freire
tem muito a nos ensinar. É
preciso resgatar no brasileiro a auto-estima,
o amor pela sua cultura e torná-lo
consciente de sua responsabilidade
em relação ao destino
de nosso País. Isso significa,
como diria Marx, desmistificar o mundo.
Como percebe Freire em Pedagogia do
oprimido (Rio de Janeiro, Paz e terra,
1981, p. 36), o oprimido é
um ser dual. Como "hospedeiro"
do opressor, ele traz em si o desejo
de ser livre, mas também o
ideal do opressor. Isso implica na
sua desvalia e na supervalorização
dos valores do dominante, o primeiro
dos mitos a serem dessacralizados.
Traduzindo isso para a realidade brasileira,
observamos que o Brasil tem uma concepção
mítica de si mesmo. Idealizamos
um Primeiro Mundo idílico,
fantasmando um Brasil que deve ser,
por oposição, medíocre,
terceiro-mundista. O sistema educacional
e a mídia contribuem para a
criação ou o aumento
desses desvios óticos. O primeiro,
por omissão, o segundo por
mediocridade, os dois cristalizam
a separação entre o
excelente que não somos e o
execrável que somos e, evidentemente,
a irreversibilidade dessa concepção
maniqueísta do mundo.
A baixa auto-estima cada vez mais
evidente instaura uma aguda crise
de identidade, caracterizada por um
"vitimismo" generalizado
e por uma diminuição
da autoconfiança, enfraquecendo
o sentimento de nação.
Resta a cultura da sobrevivência,
que, no caso do Brasil, se traduz
na máxima de Gerson, estimulando
a irresponsabilidade em relação
a tudo que não esteja ligado
ao eu e às vantagens pessoais:
o grupo, o país, o Estado,
a nação.
Diante dessa realidade, o novo paradigma
de nada nos adiantará se não
formos capazes de traduzi-lo em currículos
engajados socialmente com o futuro
do País, o que significa planejar
uma Educação que possa
resgatar no brasileiro não
apenas seu amor próprio, como
também o sentimento de responsabilidade
social.Entretanto essa não
é uma tarefa simples, pois,
como lembra Maria Cândida Moraes,
a nova educação exige
que o indivíduo faça
"a
incorporação do novo
em suas próprias visões
e concepções, o que
é difícil para a maioria
das pessoas, pois estamos acostumados
(e fomos educados para agir assim)
a não inovar, não discordar,
a manter o status quo, rpetindo o
velho e o conhecido, para, se possível,
não transformar, não
incomodar. Aquele que inova incomoda.
Aquele que incomoda tende a ser eliminado
do contexto." (op. cit, p. 132)
Uma Educação que vise
mudar comportamentos é revolucionária,
requer mudanças profundas no
modo de pensar e agir das pessoas.
Paulo Freire, ao discorrer sobre a
educação libertária
dos oprimidos, também alerta
para as dificuldades de se mudarem
comportamentos arraigados. Para ele,
tanto o opressor quanto o oprimido
têm medo da liberdade. Ao problematizar-lhes
uma situação concreta,
começam a ser colocados em
frente à sua realidade dual,
o que os incomoda e os leva a lutar
contra a liberdade. A partir de suas
experiências como educador (não
o que instrui, mas o que coordena
o processo de aprendizagem), Freire
faz a seguinte observação
sobre a resistência dos educandos
:
"Desnudar-se
de seus mitos e renunciar a eles,
no momento, é uma violência
contra si mesmos, praticada por eles
próprios. Afirmá-los
é revelar-se. A única
saída, como mecanismo de defesa
também, é transferir
ao coordenador o que é a sua
prática normal: conduzir, conquistar,
invadir, como manifestações
de sua antidialogicidade." (op.
cit., p. 182-3)
Enfrentar essa realidade no contexto
escolar tem significado para alguns
uma luta hercúlea e infrutífera
contra currículos, diretores,
coordenadores, colegas e, muitas vezes,
os próprios alunos. Se essa
é uma tarefa que está
longe de ser simples, por outro lado
também não é
impossível. É preciso
entretanto que ela seja planejada
em termos de escola, numa discussão
ampla que envolva todos, do Diretor
ao aluno.
Agora que está em moda repensar
os currículos, construir os
projetos pedagógicos, não
é esperar demais que os docentes,
em seus mais diversos níveis,
parem para refletir sobre os impactos
dos valores do mundo globalizado nas
mais diversas áreas do conhecimento
e que, a partir dessa reflexão,
tentem conceber uma prática
em que o aprendiz, como totalidade,
esteja no centro do processo ensino-aprendizado
e em que o projeto pedagógico
delineie (ou pelo menos insinue) um
projeto de País, que possa
ser aplicado a um bairro, a uma cidade
ou a uma região.
Fonte:
Ser Professor Universitário