Moshe
Lewin
RÚSSIA
A história da Rússia permite
estudar uma variedade de sistemas autoritários.
O que foi o sistema soviético após
a morte de Stalin, em 1953? Foi socialismo?
Não: para que o fosse, os bens econômicos
seriam propriedade do socium, e não
de uma burocracia.
O
anticomunismo não resulta da pesquisa:
é uma ideologia que se tenta passar
por científica. Nos EUA, o macartismo
apoiava-se no espantalho comunista.
Dois
equívocos, que devem ser dissipados
de saída, obscurecem constantemente
qualquer reflexão sobre a União
Soviética. O primeiro consiste em entender
o anticomunismo como uma análise da
URSS, e o segundo, em “stalinizar”
a totalidade do fenômeno, que não
teria passado de um “gulag” do
princípio ao fim.
O
anticomunismo não resulta da pesquisa:
é uma ideologia que se tenta fazer
passar por cientificidade. Não somente
passa longe das realidades, mas, brandindo
permanentemente a bandeira da democracia,
consiste, de fato, em utilizar o regime ditatorial
do inimigo para incentivar causas conservadoras.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o macartismo
(atitude política radicalmente
infensa ao comunismo, que se desenvolveu nos
Estados Unidos, com a campanha desencadeada
pelo Senador Joseph Raymond McCarthy, quando
presidente do Senate’s Government Operations
Committee e; qualquer atitude anticomunista
radical.) apoiava-se no espantalho
comunista. As manobras de alguns intelectuais
alemães – expondo as atrocidades
praticadas por Stalin para justificar Hitler
– obedeciam à mesma iniciativa.
E o fato de o Ocidente, ao defender os direitos
humanos, ter sido tão indulgente para
com alguns e tão severo para com outros,
não contribui para uma justa compreensão
do mundo soviético.
Mas,
afinal, onde colocar o sistema soviético
no grande álbum da história?
A questão é ainda mais complicada
porque esse sistema existiu – à
exceção da guerra civil, onde
não representava senão uma das
forças militares – em duas ou
três versões.
Variedade
de sistemas autoritários
A
história da Rússia é
um laboratório notável, que
permite estudar uma variedade de sistemas
autoritários, com suas crises, até
os nossos dias. O que foi o sistema soviético
após a morte de Stalin, em 1953? Foi
socialismo? Definitivamente, não! Para
que fosse socialismo, os bens econômicos
deveriam ter sido propriedade do socium, e
não de uma burocracia. Além
do que o socialismo sempre foi concebido como
um aprofundamento da democracia política,
e não como sua negação.
O socialismo pressupõe a socialização
da economia e a democratização
do regime político, enquanto a URSS
só conheceu a estatização
da economia e uma burocratização
da política.
O
fato de o debate sobre o fenômeno soviético
ter sido, durante muito tempo (e, às
vezes, ainda nos dias de hoje), conduzido
nesses termos, sugere as seguintes perguntas:
se alguém, na presença de um
hipopótamo, declarar tratar-se de uma
girafa, merece que lhe seja confiado um curso
de zoologia? As ciências sociais seriam
menos exigentes que a zoologia?
Toda
essa confusão decorre do fato de que
a URSS não era capitalista, já
que a propriedade dos bens econômicos
da nação era do Estado e da
alta burocracia. Isso levou a que o sistema
soviético fosse classificado na mesma
categoria desses regimes tradicionais em que
a posse de um vasto patrimônio territorial
representava poder sobre o Estado. Dessa forma
foi construída a Moscóvia autocrática.
Também ela dispunha de uma burocracia
influente, mas era o soberano que detinha
o poder absoluto. No caso soviético,
a burocracia conseguira um poder incontestado,
que não compartilhava com ninguém.
Esse “absolutismo burocrático”,
parente dos antigos “despotismos agrários”,
era muito mais moderno do que o do czar, ou
o de Stalin, embora pertencendo à mesma
espécie.
Sistema
herdado do czarismo
Apesar
de recrutar seu pessoal nas classes subalternas,
o Estado burocrático soviético
foi o herdeiro direto de muitas das instituições
do czarismo: situava-se, portanto, numa linha
de continuidade da tradição
czarista de construção do Estado.
O próprio Lênin lamentava que
algumas repartições do governo
czarista tivessem subsistido, inteiras, sob
o novo regime. Na realidade, o novo regime
tinha que aprender tudo em todas as áreas
e, por isso, foi obrigado a usar a experiência
dos serviços administrativos, que continuaram
a gerir segundo seus velhos métodos.
Fora criado um novo Estado, mas seus funcionários
continuavam sendo os do antigo regime, e Lênin
perguntava-se como os faria trabalhar melhor.
A
confusão decorre do fato de que a URSS
não era capitalista, já que
a propriedade dos bens econômicos da
nação era do Estado e da alta
burocracia
Além do que, toda vez que um novo serviço
era criado, uma comissão especial era
nomeada para fiscalizar sua organização.
Normalmente, perguntava-se a um historiador
do governo, ou a um funcionário experiente,
que fosse estudado o funcionamento de um serviço
semelhante sob o regime czarista. No caso
de inexistir um precedente czarista, eram
consultados os modelos ocidentais.
Stalin
iria ainda mais longe, adotando, quase oficialmente,
o modelo de Estado monarquista. A manutenção
dessa tradição definia, por
si, a própria essência do sistema:
o absolutismo de uma hierarquia burocrática.
A própria função, aparentemente
“nova”, do secretário-geral,
conservava vários traços da
do czar. De maneira semelhante, as imponentes
cerimônias dos regimes czarista e soviético
eram reveladoras de uma cultura comum, privilegiando
os ícones e a ostentação
de uma imagem de força e de invencibilidade
(para melhor exorcizar sua fragilidade interna).
Velho
modelo de aparência moderna
Para
designar o Estado forte, construído
a partir do final da década de 20,
o termo preferido nas últimas décadas
do sistema seria o de “grande potência”
(dzerjava), tomado do vocabulário czarista
e muito utilizado pelos meios conservadores.
Enquanto no tempo de Lênin dzerjavnik
era um termo pejorativo, usado para designar
os adeptos de um nacionalismo brutal, a palavra,
passara a seduzir pela sua correlação
com a própria essência do poder
do czar, samodzerjets, o autocrata. É
verdade que a foice e o martelo haviam substituído
o globo de ouro e a cruz, mas isso não
passava da relíquia de um passado revolucionário.
A
propriedade estatal de todas as terras, confiada
a um soberano absoluto, fora a característica
de vários dos antigos regimes da Europa
central e oriental. Na URSS, em nome do socialismo,
ela abrangera toda a economia e vários
outros setores. Apesar de uma aparência
mais moderna, era o velho modelo de propriedade
de todas as terras (principal recurso econômico,
antigamente) que era preservado, e até
reforçado.
O
“absolutismo burocrático”
pós-1953, parente dos antigos “despotismos
agrários”, era muito mais moderno
que o do czar, ou o de Stalin
No entanto, se o sistema era classificado
na velha categoria das autocracias proprietárias
de terras, não deixava de preencher
uma tarefa histórica típica
do século XX: a do “Estado desenvolvimentista”,
que existiu e ainda existe em vários
países, em particular no Oriente e
no Oriente Médio, nas antigas monarquias
rurais (China, Índia, Irã).
Na construção do Estado staliniano,
essa racionalidade histórica é
parcialmente perceptível, ainda que
sua transformação em “stalinismo”
tenha representado uma perigosa distorção.
Mas essa passagem para um modelo despótico
não é uma patologia incurável,
como o prova a eliminação do
stalinismo na Rússia e do maoísmo
na China. E, apesar das ciladas, a presença
de um Estado capaz de dirigir o desenvolvimento
econômico continua sendo uma necessidade
histórica.
Absolutismo
burocrático
Na
década de 80, a URSS atingira um alto
nível de desenvolvimento econômico
e social, mas seu sistema estava atolado num
pântano. O tipo de reformas pretendidas
por Yuri Andropov poderia ter resultado no
que mais necessitava: um Estado reformado
e atuante, sempre em condições
de conduzir o desenvolvimento, mas libertando-se
de forma direta de um autoritarismo obsoleto
e permitindo, gradativamente, a transformação
do panorama social.
Entretanto,
o recurso ao velho símbolo da dzerjava,
manifestação de um elemento
importante das camadas dirigentes, traduzia
a perda de energia do aparelho, que só
utilizava o poder político a serviço
de seus interesses pessoais e questionava
o Estado “desenvolvimentista”.
Em vez de acrescentar o computador à
foice e ao martelo, os dirigentes refugiaram-se
num conservadorismo contrário às
aspirações do povo, que não
vivia no século XVIII, e sim no século
XX: foi então que o atraso do Estado
se mostrou fatal.
As
imponentes cerimônias dos regimes czarista
e soviético eram reveladoras de uma
cultura comum, privilegiando a imagem de força
e de invencibilidade
A fórmula “absolutismo burocrático”,
que caracteriza bem o sistema soviético,
foi tomada das análises da monarquia
prussiana do século XVIII, cujo soberano,
como chefe da burocracia, dependia, na realidade,
dela. Da mesma forma, na URSS, os altos dirigentes
do Partido, supostos soberanos do Estado,
tinham perdido, na prática, o poder
sobre seus burocratas. Os ex-ministros soviéticos,
cujas Memórias refletem a nostalgia
para com esse super-Estado, não compreenderam
que o entusiasmo pelo termo dzerjava coincidia,
precisamente, com o período em que
o Estado deixara de cumprir suas anteriores
tarefas. Não passava de um fantasma
de si próprio, de um último
suspiro de poder, antes de cair na vala comum
de uma antiga família de regimes com
a qual mantinha excessivos vínculos.
Stalinismo:
prestígio no Ocidente
O
que, paradoxalmente, faz do fenômeno
soviético um capítulo típico
da história russa é o papel
desempenhado pela conjuntura internacional.
Essa Rússia, com uma história
muito acidentada, tendo constantemente que
adotar relações de amizade ou
hostilidade para com seus vizinhos, foi obrigada
a estabelecer relações através
de todos os canais possíveis. Inclusive,
ideológicos: transmitindo suas idéias
para o exterior ou opondo-as às concepções
de sua invenção, os soberanos
russos eram forçados a ficar de antenas
permanentemente ligadas, tanto para com o
mundo externo quanto para seu próprio
país. O exterior também pesou
bastante na história da União
Soviética: o fenômeno leninista
e a Rússia soviética da década
de 20 têm um vínculo direto com
a I Guerra Mundial; a II Guerra Mundial e
a crise da década de 30 têm um
impacto direto na URSS de Stalin.
A
imagem que os povos e seus dirigentes faziam
do outro lado era o produto de “espelhos
deformadores”. Se o auge do stalinismo,
na década de 30, gozava de um grande
prestígio no Ocidente – apesar
das perseguições que sofria
o povo soviético –, isso se devia,
em grande parte, às imagens negativas
da crise ocidental. A Rússia dava a
impressão de um poderoso impulso industrial
e era fácil minimizar a miséria
do país, imaginando que essa formidável
dinâmica estivesse em vias de triunfar.
Também por ocasião da vitória
sobre a Alemanha, em 1945, Stalin e o stalinismo
aproveitaram-se desse mesmo efeito de contraste,
quando o país se encontrava novamente
mergulhado numa imensa miséria que
a devastação da guerra era insuficiente
para explicar.
Guerra
fria: irritação de Stalin
A
passagem para um modelo despótico não
é uma patologia incurável, como
o prova a eliminação do stalinismo
na Rússia e do maoísmo na China
Depois, veio a guerra fria. De acordo com
as memórias de Berejkov, ela teria
começado com a irritação
de Stalin diante do atraso dos norte-americanos
em desembarcar na Normandia e em abrir uma
segunda frente: o ditador soviético
pensava tratar-se de uma jogada política
de Franklin D. Roosevelt para retardar o máximo
possível sua entrada efetiva na guerra,
para fazê-lo quando as duas grandes
forças beligerantes estivessem exauridas.
Em seguida, com o lançamento de duas
bombas atômicas sobre o Japão,
Moscou achou que se confirmava a idéia
de que os Estados Unidos anunciavam –
à União Soviética e ao
mundo – que começava uma nova
era nas relações internacionais
(e não é de todo impensável
que tenha sido esse, na época, o raciocínio
norte-americano). De qualquer forma, esses
acontecimentos guindaram a União Soviética
ao status de superpotência e à
corrida armamentista, que perpetuaria os aspectos
mais abominavelmente conservadores de seu
sistema estatal e diminuiria sua capacidade
de se reformar.
Paralelamente,
no espírito dos dirigentes soviéticos,
a América do Norte tomava o lugar do
“Ocidente de antigamente” (Inglaterra,
França, Alemanha), que até então
lhes havia servido de modelo. Sigilosamente,
os Estados Unidos tornaram-se um instrumento
de avaliação do desempenho soviético
em todas as áreas.Dessa forma, alguns
dirigentes conscientizaram-se do atraso crescente
de seu país, embora outros se recusassem
a ver essa realidade. Após a derrota
soviética na corrida (inútil)
à Lua, a incapacidade do país
de realizar a sua revolução
informática criou, provavelmente, um
sentimento de desespero em certos círculos
dirigentes, ainda que os conservadores não
abrissem mão do seu imobilismo. Aliás,
essa mesma obsessão pelos Estados Unidos
levou alguns membros da antiga nomenklatura
a mendigar favores dos norte-americanos quando,
sob o manto de Boris Ieltsin, passaram a controlar
o Kremlin.
Nostalgia
do sistema soviético
Embora
a foice e o martelo tivessem substituído
o globo de ouro e a cruz do czar, isso não
passava de relíquia de um passado revolucionário
É natural que pesquisadores que estudam
a situação da Rússia
na década de 90 tomem como ponto de
partida dados referentes ao último
período do sistema soviético.
Mas isso se torna irônico quando certos
sociólogos – conhecedores profundos
desse passado, pois, na época, produziram
trabalhos bastante críticos sobre o
sistema – descrevem, nos dias de hoje,
a finada URSS como uma espécie de Eldorado,
já que o nível de vida da população
russa e sua assistência social não
pararam de se degradar desde o início
da década de 90.
Consta
também que a freqüência
a teatros, concertos, circos e bibliotecas,
assim como a leitura de livros literários
e as assinaturas de publicações
periódicas, se encontra em franca regressão.
O aumento da carga horária do trabalho
contribuiu para que o lazer seja mais passivo,
quando, nos últimos tempos da era soviética,
com o aumento do tempo livre, o lazer era
mais dedicado à cultura. E, para aumentar
sua renda – e mesmo para sobreviver
– os russos também passaram a
aumentar suas atividades agrícolas
e de criação em seus próprios
terrenos, diminuindo o tempo de sono e de
lazer.
O
aumento das liberdades e dos direitos, assim
como a oferta de serviços caros, só
beneficiou os russos mais ricos, mais qualificados
e com mais espírito de iniciativa.
À exceção de Moscou,
a maioria das pessoas viram suas possibilidades
de acesso à cultura diminuírem
consideravelmente. Embora nossos sociólogos
deplorem a lamentável qualidade dos
programas de televisão, estes ainda
são o principal lazer. Isso, sem falar
do declínio da pesquisa científica,
da freqüência de estabelecimentos
escolares, dos serviços médicos
e sociais e sem mencionar a queda dos indicadores
de vitalidade demográfica – que
são tantos que a própria sobrevivência
da nação está em causa.
Busca
de outros passados
Para
desviar a atenção do estado
lastimável em que se encontra o país,
os novos detentores do poder lançaram-se
numa ampla campanha de propaganda contra o
finado sistema soviético, recorrendo
a todo tipo de truque antes utilizado no Ocidente:
não teria passado de um sistema monstruoso
– do pecado original, em 1917, ao golpe
de Estado fracassado de agosto de 1991. Do
fiasco deste último teria nascido uma
nova era de liberdade. O que significa que,
além de lamentavelmente diminuída,
a Rússia contemporânea ainda
padece de uma “auto-depreciação”
de sua identidade histórica. Não
contentes em pilhar os bens econômicos
do país, seus “reformadores”
também renegam o seu passado, sob o
signo da ignorância, e não da
análise crítica.
A
guerra fria guindou a União Soviética
ao status de superpotência e à
corrida armamentista, perpetuando os aspectos
mais conservadores de seu sistema
Paralelamente, entregam-se a uma busca frenética
por outros passados capazes de responder ao
desejo da nação de inventar
uma nova identidade. Em duas etapas: primeiro,
reapropriando-se de tudo que era czarista
e pré-revolucionário; em seguida,
por oposição a tudo o que era
soviético e pós-revolucionário,
reabilitaram os Brancos da guerra civil. Essa
paixão pelo que os bolcheviques detestavam
demonstra debilidade intelectual. Ainda que
alguns russos vissem as “elites”
que tomaram o poder em 1991 como novos “invasores
tártaros”, hostis aos interesses
da nação. E que, para alguns
de seus espíritos mais esclarecidos,
a Rússia passaria a não ter
outra perspectiva senão – como
num pesadelo – despencar ao nível
do Terceiro Mundo.
Continuidade
entre o passado e o futuro
Apesar
das desastrosas conseqüências do
obscurantismo, podem-se ver aspectos positivos.
Durante um a conferência realizada em
Moscou, o filósofo Mejuev salientava
que “um país não pode
existir sem sua história (...). Todos
os nossos reformadores, sejam eles comunistas,
democratas, amantes da cultura eslava ou fascinados
pelo Ocidente, cometem o erro crucial de não
encontrar uma continuidade racional e moralmente
justificada entre o passado e o futuro da
Rússia (...). Uns negam o passado,
outros vêem nele o único modelo,
embora, para alguns deles, o futuro não
deva passar de um amálgama de temas
passados, enquanto para outros, deva ser a
aceitação passiva de uma fórmula
oposta, sem precedentes na história
russa. Ora, o futuro deve ser pensado, antes
de tudo, na sua relação com
o passado, e particularmente daquele de que
saímos recentemente”.
Em
seguida, Mejuev passou a criticar o economista
liberal Andrei Ilarianov, que considera o
século XX como perdido, para a Rússia:
para ele, a revolução socialista
teria desviado o país de seu curso
liberal, transformando o então gigante
num camundongo. A única chance, portanto,
seria a volta ao liberalismo. Mas é
mais fácil bancar o sabichão
depois dos fatos do que analisar o que se
passou. Criticar a Rússia por não
se ter tornado liberal no início do
século XX equivale a um atestado de
profunda ignorância da história
russa e do liberalismo. O surgimento do liberalismo
é o resultado de um longo processo
histórico: Idade Média, Reforma,
Renascimento e – muitas vezes –
revoluções contra monarquias
absolutistas.
"Capitalismo
à russa"
Na
verdade, houve três revoluções
em 12 anos: a de 1905, derrotada; a de fevereiro
de 1917; e a de outubro, vencida pelos revolucionários
mais radicais
Para Mejuev, a chave para compreender a história
russa no século XX não se encontra
apenas na revolução bolchevique.
Na verdade, houve três revoluções
em 12 anos: a primeira, de 1905, foi derrotada;
da segunda, em fevereiro de 1917, saíram
vitoriosos os revolucionários moderados;
e a de outubro, quando triunfaram os revolucionários
mais radicais, foi a terceira fase do processo
revolucionário. Nicolai Berdiaev sabia
disso: os bolcheviques não foram os
autores da revolução, mas os
instrumentos de seu desenvolvimento. A adoção
de critérios, principalmente morais,
e a crítica da violência que
ocorreu não serve para nada: isso é
o que sempre ocorre numa guerra civil. Uma
revolução não é
uma ação moral e legal: é
o exercício de uma força de
coação. Não existe uma
revolução “boa”:
todas elas, até os dias de hoje, foram
sangrentas.
“Condenar
as revoluções”, prossegue
Mejuev, “equivale a condenar quase toda
a intelectualidade russa e toda a história
russa, que constituíram o adubo desses
acontecimentos revolucionários. As
revoluções (...) sempre frustram
as expectativas, mas abrem uma página
realmente nova: o importante é pesquisar
de que página se trata, sem confiar
demais no que dizem tanto os vencedores quanto
os vencidos (...). O nosso socialismo era,
na verdade, um ‘capitalismo à
russa’, em seu conteúdo tecnológico,
e um anticapitalismo em sua forma.”
Passado:
trampolim para progressos
Para
Mejuev, é difícil para um país
situado na periferia do mundo ocidental combinar
modernização e democracia. Em
algum momento, um terá que ceder ao
outro. E os bolcheviques compreenderam isso,
razão pela qual ganharam a guerra civil
e a URSS saiu vitoriosa da II Guerra Mundial.
Também a China o percebeu, quando optou
por combinar uma modernização
acelerada pela economia de mercado e a manutenção
de um sistema político não-democrático.
Para qualquer regime, seja ele qual for, a
sabedoria não está em rejeitar
o passado, como se se tratasse de um deserto
onde nada pode brotar: ela está em
ver nesse passado um trampolim para novos
progressos, preservando o que ele comporta
de grandeza real.
A
Rússia dos dias de hoje, com sua nostalgia
dos tempos pré-revolucionários,
está bem mais distante do Ocidente
que o estavam os bolcheviques. “Nossos
liberais”, observa Mejuev, “não
se podem vangloriar de nada, exceto de terem
aniquilado todos esses sucessos, quando o
futuro da Rússia se deveria construir
sobre a preservação desses êxitos
do passado e em seu desenvolvimento, baseado
na manutenção de uma continuidade
associada à definição
de novas tarefas. Atualmente, o vínculo
com o passado foi rompido, mas um dia será
restabelecido. Não se trata de voltar
ao passado revolucionário ou pós-revolucionário:
perguntem-se o que lhes interessa guardar
desse passado, o que deve ser procurado e
conservado, e isso ajudará a enfrentar
o futuro (...). Os que querem apagar o século
XX – um século de grandes calamidades,
é bem verdade – também
devem dizer adeus a uma grande Rússia.”
(Trad.: Jô Amado)
Fonte:
http://diplo.uol.com.br/_Moshe-Lewin_
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A nova
face de Stálin
Por
Ruy Fausto
Estudos
no Brasil e na Inglaterra derrubam mitos sobre
a vida e a atuação política
do ditador soviético.
A
editora Nova Fronteira publica em português
a primeira parte (1879-1939) da biografia
de Stálin, por Dmitri Volkogonov ("Stálin
- Triunfo e Tragédia"), em tradução
feita a partir da versão inglesa [a
segunda parte também está saindo
pela mesma editora]. O autor (1928-1995),
general do Exército soviético,
filho de um técnico em agricultura
que Stálin fuzilou, trabalhou no setor
de propaganda do Exército (época
em que "adquiriu a reputação
de "linha dura'"), foi diretor do
Instituto de História Militar do Exército
e, mais tarde, assessor do [ex-presidente]
Boris Ieltsin e presidente de uma comissão
parlamentar que suspendeu o sigilo de milhões
de documentos do Partido Comunista da União
Soviética.
Dadas
as suas funções, pelo menos
parcialmente o autor não precisou esperar
por essa medida. O livro, publicado em 1989,
utiliza materiais a que os biógrafos
anteriores não tinham acesso.
Da bibliografia mais recente sobre o tema,
é preciso mencionar o livro de Simon
Sebag Montefiore - "Stálin - The
Court of the Red Tsar" (Stálin
- A Corte do Czar Vermelho, ed. Phoenix, editado
na Grã Bretanha em 2003). O livro de
Montefiore contém uma espécie
de análise etnográfica da "corte"
de Stálin. Sob muitos aspectos, é
o complemento indispensável ao trabalho
de Volkogonov.
Gostos
literários
Stálin,
autodidata com gostos literários e
artísticos os mais tradicionais era
freqüentador assíduo dos teatros
e grande leitor, principalmente de literatura
e de história. O que não excluía,
muito pelo contrário, uma grande hostilidade
para com os "intelectuais". Lembremo-nos
de que Hitler, que era igualmente um autodidata
semiculto, tinha um ressentimento profundo
em relação à intelligentsia.
Nos
dois livros, mostra-se bem que a responsabilidade
pelos crimes não é só
de Stálin mas também da sua
equipe de colaboradores. Os grandes co-responsáveis
se chamam Molotóv, Vorochilóv
- uma figura particularmente repugnante pelo
amoralismo e a mediocridade, embora fosse
fisicamente corajoso - e Kaganovitch.
Também
Béria - um sádico de rara crueldade
- e Zdanóv. Além de Malenkóv,
os dois livros revelam quanta culpa no cartório
tinha, igualmente, Kruschev, que, após
a morte de Stálin, lançaria
a luta contra "o culto da personalidade".
A
história da emergência do grande
terror stalinista é contada em registro
mais político por Volkogonov e, mais
"etnográfico", por Montefiore.
É preciso ler os dois textos para ter
uma idéia completa dessa novela de
horror. Bem entendido, antes do grande terror
- refiro-me à liquidação
irracional e "compulsiva" de quadros
do partido e da sociedade civil que se dá
a partir de 1934 -, já tinha havido
muita violência. E o genocídio
dos camponeses ocorrido no início dos
anos 30 ultrapassa de longe o número
de vítimas imediatas do terror.
Grande
terror
Porém
a maneira pela qual Stálin liqüida
os seus companheiros de partido durante o
grande terror é, se ouso dizer, notável
- um verdadeiro clássico da brutalidade
e da abjeção. A história
de Kamenev e Zinoviev, antigos companheiros
de direção, é particularmente
atroz - Kamenev e Zinoviev já tinham
capitulado de um modo humilhante nos anos
20, mas só são processados nos
anos 30. Stálin lhes informa que, se
se dispuserem a confessar todos os "crimes"
(trata-se das acusações mais
estapafúrdias, de traição
e conspiração), o Bureau Político
- mas do Bureau político só
aparecerão Stálin e mais dois-
lhes garantirá a vida.
Como
era de esperar, eles confessam tudo e são
condenados à morte. No dia da execução,
Zinoviev - Kamenev tem uma atitude mais firme
- pede aos guardas, desesperada e inutilmente,
para falar com Stálin. Semanas depois,
num jantar comemorativo, um dos personagens
da corte de Stálin, que fazia freqüentemente
o papel de bufão, imita as últimas
palavras de Zinoviev (o artista usa sotaque
ídiche: Zinoviev - como o próprio
bufão, que, mais tarde, também
seria executado - era judeu). Stálin
e os demais convivas riem a não poder
mais.
Dentre
os muitos problemas teóricos e históricos
que a leitura de uma biografia de Stálin
levanta, destaco três (só proponho
algumas hipóteses, evidentemente).
Um é o da natureza do regime stalinista.
O segundo é o de por que a opinião
mundial de esquerda se iludiu, em proporção
impressionante, com a figura de Stálin
e com a natureza do seu regime.
O
terceiro problema, mais específico,
é o das razões do terror. A
primeira questão, que já discuti
em outros lugares (permito-me remeter a um
texto recente sobre Trótski que publiquei
na revista "Lua Nova"), poderia
ser resumida pelos dois termos que utilizei
no título do presente artigo. Stálin
foi em geral considerado pela crítica
(de esquerda, em particular) como um burocrata.
Mas ele aparece também - ou antes?
- como um déspota (Castoriadis considerava
uma tolice a afirmação de Trótski
de que Stálin é a quintessência
da burocracia; uma atitude crítica
que vai na mesma direção, embora
menos radical, se encontra, também,
no historiador Moshe Lewin).
Na
realidade, Stálin foi as duas coisas.
E mais: a reunião desses dois "estilos"
numa só pessoa é um sintoma
da originalidade do "sistema stalinista"
(observe-se que também no nazismo há
despotismo - ou tirania, não discuto
aqui a nuança - e burocracia. Porém,
se Hitler foi um déspota, ele não
foi, como Stálin, um burocrata).
Para
a segunda questão, diria, que embora
essa não seja a única razão,
seria importante ressaltar que a doutrina
hegemônica no interior da esquerda desde
o final do século 19, o marxismo, estava
mal preparada para pensar a emergência
de um "tertius" entre o capitalismo
e o socialismo (em última análise,
porque apesar de todas as suas inovações,
o marxismo dependia demais da filosofia do
progresso) e mal preparada, em especial, para
decifrar um "tertius" que se apresentava
sob a forma de um despotismo. Como já
disse em outro lugar, "despotismo"
não é um verdadeiro conceito
no discurso de Marx. Sobre a questão
dos motivos do terror, tenho a impressão
de que havia ali pelo menos dois elementos.
De
um lado, como os dois autores observam, havia
o aspecto que poderíamos chamar de
"queima de arquivo". Stálin
queria liqüidar aqueles que sabiam demais
e que sabiam principalmente duas coisas: que
o papel histórico de Stálin
havia sido bastante secundário, e outra,
mais grave, que no seu famoso "Testamento",
Lênin tinha proposto o afastamento dele,
Stálin, do Secretariado Geral, por
ser excessivamente rude, pouco leal etc.
A
liqüidação desses "arquivos"
apareceu como uma necessidade a partir do
17º Congresso do Partido (1934), porque,
para surpresa geral, na eleição
para o Comitê Central, houve mais de
300 votos contra Stálin -com o agravante
de que só houve três votos contra
Kirov, o dirigente que seria assassinado pouco
mais tarde, em circunstâncias misteriosas
(que a votação tenha sido secreta
e que a eleição de Stálin
não estivesse ameaçada não
protegeu os opositores. Stálin liqüidou
em massa os participantes desse congresso).
Havia assim um descontentamento surdo contra
Stálin.
Mas,
além disso, e sem falar na "inércia"
de todo terror, para além do objetivo
de eliminar testemunhas, Stálin deve
ter visto o interesse que oferecia o terror.
Provavelmente, ele se deu conta de que o despotismo
não sobrevive sem um terror cíclico.
Ruy
Fausto é filósofo, professor
emérito da USP e leciona na Universidade
de Paris 8. É autor de, entre outros
livros, "Marx -Lógica e Política"
(ed. 34) e "Dialética Marxista,
Dialética Hegeliana" (ed. Paz
e Terra).
Stálin
(volume 1, 1879-1939)
Fonte:
MTL