Passado Soviético

Às voltas com o passado soviético

Moshe Lewin

RÚSSIA

A história da Rússia permite estudar uma variedade de sistemas autoritários. O que foi o sistema soviético após a morte de Stalin, em 1953? Foi socialismo? Não: para que o fosse, os bens econômicos seriam propriedade do socium, e não de uma burocracia.

O anticomunismo não resulta da pesquisa: é uma ideologia que se tenta passar por científica. Nos EUA, o macartismo apoiava-se no espantalho comunista.

Dois equívocos, que devem ser dissipados de saída, obscurecem constantemente qualquer reflexão sobre a União Soviética. O primeiro consiste em entender o anticomunismo como uma análise da URSS, e o segundo, em “stalinizar” a totalidade do fenômeno, que não teria passado de um “gulag” do princípio ao fim.

O anticomunismo não resulta da pesquisa: é uma ideologia que se tenta fazer passar por cientificidade. Não somente passa longe das realidades, mas, brandindo permanentemente a bandeira da democracia, consiste, de fato, em utilizar o regime ditatorial do inimigo para incentivar causas conservadoras. Nos Estados Unidos, por exemplo, o macartismo (atitude política radicalmente infensa ao comunismo, que se desenvolveu nos Estados Unidos, com a campanha desencadeada pelo Senador Joseph Raymond McCarthy, quando presidente do Senate’s Government Operations Committee e; qualquer atitude anticomunista radical.) apoiava-se no espantalho comunista. As manobras de alguns intelectuais alemães – expondo as atrocidades praticadas por Stalin para justificar Hitler – obedeciam à mesma iniciativa. E o fato de o Ocidente, ao defender os direitos humanos, ter sido tão indulgente para com alguns e tão severo para com outros, não contribui para uma justa compreensão do mundo soviético.

Mas, afinal, onde colocar o sistema soviético no grande álbum da história? A questão é ainda mais complicada porque esse sistema existiu – à exceção da guerra civil, onde não representava senão uma das forças militares – em duas ou três versões.

Variedade de sistemas autoritários

A história da Rússia é um laboratório notável, que permite estudar uma variedade de sistemas autoritários, com suas crises, até os nossos dias. O que foi o sistema soviético após a morte de Stalin, em 1953? Foi socialismo? Definitivamente, não! Para que fosse socialismo, os bens econômicos deveriam ter sido propriedade do socium, e não de uma burocracia. Além do que o socialismo sempre foi concebido como um aprofundamento da democracia política, e não como sua negação. O socialismo pressupõe a socialização da economia e a democratização do regime político, enquanto a URSS só conheceu a estatização da economia e uma burocratização da política.

O fato de o debate sobre o fenômeno soviético ter sido, durante muito tempo (e, às vezes, ainda nos dias de hoje), conduzido nesses termos, sugere as seguintes perguntas: se alguém, na presença de um hipopótamo, declarar tratar-se de uma girafa, merece que lhe seja confiado um curso de zoologia? As ciências sociais seriam menos exigentes que a zoologia?

Toda essa confusão decorre do fato de que a URSS não era capitalista, já que a propriedade dos bens econômicos da nação era do Estado e da alta burocracia. Isso levou a que o sistema soviético fosse classificado na mesma categoria desses regimes tradicionais em que a posse de um vasto patrimônio territorial representava poder sobre o Estado. Dessa forma foi construída a Moscóvia autocrática. Também ela dispunha de uma burocracia influente, mas era o soberano que detinha o poder absoluto. No caso soviético, a burocracia conseguira um poder incontestado, que não compartilhava com ninguém. Esse “absolutismo burocrático”, parente dos antigos “despotismos agrários”, era muito mais moderno do que o do czar, ou o de Stalin, embora pertencendo à mesma espécie.

Sistema herdado do czarismo

Apesar de recrutar seu pessoal nas classes subalternas, o Estado burocrático soviético foi o herdeiro direto de muitas das instituições do czarismo: situava-se, portanto, numa linha de continuidade da tradição czarista de construção do Estado. O próprio Lênin lamentava que algumas repartições do governo czarista tivessem subsistido, inteiras, sob o novo regime. Na realidade, o novo regime tinha que aprender tudo em todas as áreas e, por isso, foi obrigado a usar a experiência dos serviços administrativos, que continuaram a gerir segundo seus velhos métodos. Fora criado um novo Estado, mas seus funcionários continuavam sendo os do antigo regime, e Lênin perguntava-se como os faria trabalhar melhor.

A confusão decorre do fato de que a URSS não era capitalista, já que a propriedade dos bens econômicos da nação era do Estado e da alta burocracia
Além do que, toda vez que um novo serviço era criado, uma comissão especial era nomeada para fiscalizar sua organização. Normalmente, perguntava-se a um historiador do governo, ou a um funcionário experiente, que fosse estudado o funcionamento de um serviço semelhante sob o regime czarista. No caso de inexistir um precedente czarista, eram consultados os modelos ocidentais.

Stalin iria ainda mais longe, adotando, quase oficialmente, o modelo de Estado monarquista. A manutenção dessa tradição definia, por si, a própria essência do sistema: o absolutismo de uma hierarquia burocrática. A própria função, aparentemente “nova”, do secretário-geral, conservava vários traços da do czar. De maneira semelhante, as imponentes cerimônias dos regimes czarista e soviético eram reveladoras de uma cultura comum, privilegiando os ícones e a ostentação de uma imagem de força e de invencibilidade (para melhor exorcizar sua fragilidade interna).

Velho modelo de aparência moderna

Para designar o Estado forte, construído a partir do final da década de 20, o termo preferido nas últimas décadas do sistema seria o de “grande potência” (dzerjava), tomado do vocabulário czarista e muito utilizado pelos meios conservadores. Enquanto no tempo de Lênin dzerjavnik era um termo pejorativo, usado para designar os adeptos de um nacionalismo brutal, a palavra, passara a seduzir pela sua correlação com a própria essência do poder do czar, samodzerjets, o autocrata. É verdade que a foice e o martelo haviam substituído o globo de ouro e a cruz, mas isso não passava da relíquia de um passado revolucionário.

A propriedade estatal de todas as terras, confiada a um soberano absoluto, fora a característica de vários dos antigos regimes da Europa central e oriental. Na URSS, em nome do socialismo, ela abrangera toda a economia e vários outros setores. Apesar de uma aparência mais moderna, era o velho modelo de propriedade de todas as terras (principal recurso econômico, antigamente) que era preservado, e até reforçado.

O “absolutismo burocrático” pós-1953, parente dos antigos “despotismos agrários”, era muito mais moderno que o do czar, ou o de Stalin
No entanto, se o sistema era classificado na velha categoria das autocracias proprietárias de terras, não deixava de preencher uma tarefa histórica típica do século XX: a do “Estado desenvolvimentista”, que existiu e ainda existe em vários países, em particular no Oriente e no Oriente Médio, nas antigas monarquias rurais (China, Índia, Irã). Na construção do Estado staliniano, essa racionalidade histórica é parcialmente perceptível, ainda que sua transformação em “stalinismo” tenha representado uma perigosa distorção. Mas essa passagem para um modelo despótico não é uma patologia incurável, como o prova a eliminação do stalinismo na Rússia e do maoísmo na China. E, apesar das ciladas, a presença de um Estado capaz de dirigir o desenvolvimento econômico continua sendo uma necessidade histórica.

Absolutismo burocrático

Na década de 80, a URSS atingira um alto nível de desenvolvimento econômico e social, mas seu sistema estava atolado num pântano. O tipo de reformas pretendidas por Yuri Andropov poderia ter resultado no que mais necessitava: um Estado reformado e atuante, sempre em condições de conduzir o desenvolvimento, mas libertando-se de forma direta de um autoritarismo obsoleto e permitindo, gradativamente, a transformação do panorama social.

Entretanto, o recurso ao velho símbolo da dzerjava, manifestação de um elemento importante das camadas dirigentes, traduzia a perda de energia do aparelho, que só utilizava o poder político a serviço de seus interesses pessoais e questionava o Estado “desenvolvimentista”. Em vez de acrescentar o computador à foice e ao martelo, os dirigentes refugiaram-se num conservadorismo contrário às aspirações do povo, que não vivia no século XVIII, e sim no século XX: foi então que o atraso do Estado se mostrou fatal.

As imponentes cerimônias dos regimes czarista e soviético eram reveladoras de uma cultura comum, privilegiando a imagem de força e de invencibilidade
A fórmula “absolutismo burocrático”, que caracteriza bem o sistema soviético, foi tomada das análises da monarquia prussiana do século XVIII, cujo soberano, como chefe da burocracia, dependia, na realidade, dela. Da mesma forma, na URSS, os altos dirigentes do Partido, supostos soberanos do Estado, tinham perdido, na prática, o poder sobre seus burocratas. Os ex-ministros soviéticos, cujas Memórias refletem a nostalgia para com esse super-Estado, não compreenderam que o entusiasmo pelo termo dzerjava coincidia, precisamente, com o período em que o Estado deixara de cumprir suas anteriores tarefas. Não passava de um fantasma de si próprio, de um último suspiro de poder, antes de cair na vala comum de uma antiga família de regimes com a qual mantinha excessivos vínculos.

Stalinismo: prestígio no Ocidente

O que, paradoxalmente, faz do fenômeno soviético um capítulo típico da história russa é o papel desempenhado pela conjuntura internacional. Essa Rússia, com uma história muito acidentada, tendo constantemente que adotar relações de amizade ou hostilidade para com seus vizinhos, foi obrigada a estabelecer relações através de todos os canais possíveis. Inclusive, ideológicos: transmitindo suas idéias para o exterior ou opondo-as às concepções de sua invenção, os soberanos russos eram forçados a ficar de antenas permanentemente ligadas, tanto para com o mundo externo quanto para seu próprio país. O exterior também pesou bastante na história da União Soviética: o fenômeno leninista e a Rússia soviética da década de 20 têm um vínculo direto com a I Guerra Mundial; a II Guerra Mundial e a crise da década de 30 têm um impacto direto na URSS de Stalin.

A imagem que os povos e seus dirigentes faziam do outro lado era o produto de “espelhos deformadores”. Se o auge do stalinismo, na década de 30, gozava de um grande prestígio no Ocidente – apesar das perseguições que sofria o povo soviético –, isso se devia, em grande parte, às imagens negativas da crise ocidental. A Rússia dava a impressão de um poderoso impulso industrial e era fácil minimizar a miséria do país, imaginando que essa formidável dinâmica estivesse em vias de triunfar. Também por ocasião da vitória sobre a Alemanha, em 1945, Stalin e o stalinismo aproveitaram-se desse mesmo efeito de contraste, quando o país se encontrava novamente mergulhado numa imensa miséria que a devastação da guerra era insuficiente para explicar.

Guerra fria: irritação de Stalin

A passagem para um modelo despótico não é uma patologia incurável, como o prova a eliminação do stalinismo na Rússia e do maoísmo na China
Depois, veio a guerra fria. De acordo com as memórias de Berejkov, ela teria começado com a irritação de Stalin diante do atraso dos norte-americanos em desembarcar na Normandia e em abrir uma segunda frente: o ditador soviético pensava tratar-se de uma jogada política de Franklin D. Roosevelt para retardar o máximo possível sua entrada efetiva na guerra, para fazê-lo quando as duas grandes forças beligerantes estivessem exauridas. Em seguida, com o lançamento de duas bombas atômicas sobre o Japão, Moscou achou que se confirmava a idéia de que os Estados Unidos anunciavam – à União Soviética e ao mundo – que começava uma nova era nas relações internacionais (e não é de todo impensável que tenha sido esse, na época, o raciocínio norte-americano). De qualquer forma, esses acontecimentos guindaram a União Soviética ao status de superpotência e à corrida armamentista, que perpetuaria os aspectos mais abominavelmente conservadores de seu sistema estatal e diminuiria sua capacidade de se reformar.

Paralelamente, no espírito dos dirigentes soviéticos, a América do Norte tomava o lugar do “Ocidente de antigamente” (Inglaterra, França, Alemanha), que até então lhes havia servido de modelo. Sigilosamente, os Estados Unidos tornaram-se um instrumento de avaliação do desempenho soviético em todas as áreas.Dessa forma, alguns dirigentes conscientizaram-se do atraso crescente de seu país, embora outros se recusassem a ver essa realidade. Após a derrota soviética na corrida (inútil) à Lua, a incapacidade do país de realizar a sua revolução informática criou, provavelmente, um sentimento de desespero em certos círculos dirigentes, ainda que os conservadores não abrissem mão do seu imobilismo. Aliás, essa mesma obsessão pelos Estados Unidos levou alguns membros da antiga nomenklatura a mendigar favores dos norte-americanos quando, sob o manto de Boris Ieltsin, passaram a controlar o Kremlin.

Nostalgia do sistema soviético

Embora a foice e o martelo tivessem substituído o globo de ouro e a cruz do czar, isso não passava de relíquia de um passado revolucionário
É natural que pesquisadores que estudam a situação da Rússia na década de 90 tomem como ponto de partida dados referentes ao último período do sistema soviético. Mas isso se torna irônico quando certos sociólogos – conhecedores profundos desse passado, pois, na época, produziram trabalhos bastante críticos sobre o sistema – descrevem, nos dias de hoje, a finada URSS como uma espécie de Eldorado, já que o nível de vida da população russa e sua assistência social não pararam de se degradar desde o início da década de 90.

Consta também que a freqüência a teatros, concertos, circos e bibliotecas, assim como a leitura de livros literários e as assinaturas de publicações periódicas, se encontra em franca regressão. O aumento da carga horária do trabalho contribuiu para que o lazer seja mais passivo, quando, nos últimos tempos da era soviética, com o aumento do tempo livre, o lazer era mais dedicado à cultura. E, para aumentar sua renda – e mesmo para sobreviver – os russos também passaram a aumentar suas atividades agrícolas e de criação em seus próprios terrenos, diminuindo o tempo de sono e de lazer.

O aumento das liberdades e dos direitos, assim como a oferta de serviços caros, só beneficiou os russos mais ricos, mais qualificados e com mais espírito de iniciativa. À exceção de Moscou, a maioria das pessoas viram suas possibilidades de acesso à cultura diminuírem consideravelmente. Embora nossos sociólogos deplorem a lamentável qualidade dos programas de televisão, estes ainda são o principal lazer. Isso, sem falar do declínio da pesquisa científica, da freqüência de estabelecimentos escolares, dos serviços médicos e sociais e sem mencionar a queda dos indicadores de vitalidade demográfica – que são tantos que a própria sobrevivência da nação está em causa.

Busca de outros passados

Para desviar a atenção do estado lastimável em que se encontra o país, os novos detentores do poder lançaram-se numa ampla campanha de propaganda contra o finado sistema soviético, recorrendo a todo tipo de truque antes utilizado no Ocidente: não teria passado de um sistema monstruoso – do pecado original, em 1917, ao golpe de Estado fracassado de agosto de 1991. Do fiasco deste último teria nascido uma nova era de liberdade. O que significa que, além de lamentavelmente diminuída, a Rússia contemporânea ainda padece de uma “auto-depreciação” de sua identidade histórica. Não contentes em pilhar os bens econômicos do país, seus “reformadores” também renegam o seu passado, sob o signo da ignorância, e não da análise crítica.

A guerra fria guindou a União Soviética ao status de superpotência e à corrida armamentista, perpetuando os aspectos mais conservadores de seu sistema
Paralelamente, entregam-se a uma busca frenética por outros passados capazes de responder ao desejo da nação de inventar uma nova identidade. Em duas etapas: primeiro, reapropriando-se de tudo que era czarista e pré-revolucionário; em seguida, por oposição a tudo o que era soviético e pós-revolucionário, reabilitaram os Brancos da guerra civil. Essa paixão pelo que os bolcheviques detestavam demonstra debilidade intelectual. Ainda que alguns russos vissem as “elites” que tomaram o poder em 1991 como novos “invasores tártaros”, hostis aos interesses da nação. E que, para alguns de seus espíritos mais esclarecidos, a Rússia passaria a não ter outra perspectiva senão – como num pesadelo – despencar ao nível do Terceiro Mundo.

Continuidade entre o passado e o futuro

Apesar das desastrosas conseqüências do obscurantismo, podem-se ver aspectos positivos. Durante um a conferência realizada em Moscou, o filósofo Mejuev salientava que “um país não pode existir sem sua história (...). Todos os nossos reformadores, sejam eles comunistas, democratas, amantes da cultura eslava ou fascinados pelo Ocidente, cometem o erro crucial de não encontrar uma continuidade racional e moralmente justificada entre o passado e o futuro da Rússia (...). Uns negam o passado, outros vêem nele o único modelo, embora, para alguns deles, o futuro não deva passar de um amálgama de temas passados, enquanto para outros, deva ser a aceitação passiva de uma fórmula oposta, sem precedentes na história russa. Ora, o futuro deve ser pensado, antes de tudo, na sua relação com o passado, e particularmente daquele de que saímos recentemente”.

Em seguida, Mejuev passou a criticar o economista liberal Andrei Ilarianov, que considera o século XX como perdido, para a Rússia: para ele, a revolução socialista teria desviado o país de seu curso liberal, transformando o então gigante num camundongo. A única chance, portanto, seria a volta ao liberalismo. Mas é mais fácil bancar o sabichão depois dos fatos do que analisar o que se passou. Criticar a Rússia por não se ter tornado liberal no início do século XX equivale a um atestado de profunda ignorância da história russa e do liberalismo. O surgimento do liberalismo é o resultado de um longo processo histórico: Idade Média, Reforma, Renascimento e – muitas vezes – revoluções contra monarquias absolutistas.

"Capitalismo à russa"

Na verdade, houve três revoluções em 12 anos: a de 1905, derrotada; a de fevereiro de 1917; e a de outubro, vencida pelos revolucionários mais radicais
Para Mejuev, a chave para compreender a história russa no século XX não se encontra apenas na revolução bolchevique. Na verdade, houve três revoluções em 12 anos: a primeira, de 1905, foi derrotada; da segunda, em fevereiro de 1917, saíram vitoriosos os revolucionários moderados; e a de outubro, quando triunfaram os revolucionários mais radicais, foi a terceira fase do processo revolucionário. Nicolai Berdiaev sabia disso: os bolcheviques não foram os autores da revolução, mas os instrumentos de seu desenvolvimento. A adoção de critérios, principalmente morais, e a crítica da violência que ocorreu não serve para nada: isso é o que sempre ocorre numa guerra civil. Uma revolução não é uma ação moral e legal: é o exercício de uma força de coação. Não existe uma revolução “boa”: todas elas, até os dias de hoje, foram sangrentas.

“Condenar as revoluções”, prossegue Mejuev, “equivale a condenar quase toda a intelectualidade russa e toda a história russa, que constituíram o adubo desses acontecimentos revolucionários. As revoluções (...) sempre frustram as expectativas, mas abrem uma página realmente nova: o importante é pesquisar de que página se trata, sem confiar demais no que dizem tanto os vencedores quanto os vencidos (...). O nosso socialismo era, na verdade, um ‘capitalismo à russa’, em seu conteúdo tecnológico, e um anticapitalismo em sua forma.”

Passado: trampolim para progressos

Para Mejuev, é difícil para um país situado na periferia do mundo ocidental combinar modernização e democracia. Em algum momento, um terá que ceder ao outro. E os bolcheviques compreenderam isso, razão pela qual ganharam a guerra civil e a URSS saiu vitoriosa da II Guerra Mundial. Também a China o percebeu, quando optou por combinar uma modernização acelerada pela economia de mercado e a manutenção de um sistema político não-democrático. Para qualquer regime, seja ele qual for, a sabedoria não está em rejeitar o passado, como se se tratasse de um deserto onde nada pode brotar: ela está em ver nesse passado um trampolim para novos progressos, preservando o que ele comporta de grandeza real.

A Rússia dos dias de hoje, com sua nostalgia dos tempos pré-revolucionários, está bem mais distante do Ocidente que o estavam os bolcheviques. “Nossos liberais”, observa Mejuev, “não se podem vangloriar de nada, exceto de terem aniquilado todos esses sucessos, quando o futuro da Rússia se deveria construir sobre a preservação desses êxitos do passado e em seu desenvolvimento, baseado na manutenção de uma continuidade associada à definição de novas tarefas. Atualmente, o vínculo com o passado foi rompido, mas um dia será restabelecido. Não se trata de voltar ao passado revolucionário ou pós-revolucionário: perguntem-se o que lhes interessa guardar desse passado, o que deve ser procurado e conservado, e isso ajudará a enfrentar o futuro (...). Os que querem apagar o século XX – um século de grandes calamidades, é bem verdade – também devem dizer adeus a uma grande Rússia.” (Trad.: Jô Amado)

Fonte: http://diplo.uol.com.br/_Moshe-Lewin_

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A nova face de Stálin

Por Ruy Fausto

Estudos no Brasil e na Inglaterra derrubam mitos sobre a vida e a atuação política do ditador soviético.

A editora Nova Fronteira publica em português a primeira parte (1879-1939) da biografia de Stálin, por Dmitri Volkogonov ("Stálin - Triunfo e Tragédia"), em tradução feita a partir da versão inglesa [a segunda parte também está saindo pela mesma editora]. O autor (1928-1995), general do Exército soviético, filho de um técnico em agricultura que Stálin fuzilou, trabalhou no setor de propaganda do Exército (época em que "adquiriu a reputação de "linha dura'"), foi diretor do Instituto de História Militar do Exército e, mais tarde, assessor do [ex-presidente] Boris Ieltsin e presidente de uma comissão parlamentar que suspendeu o sigilo de milhões de documentos do Partido Comunista da União Soviética.

Dadas as suas funções, pelo menos parcialmente o autor não precisou esperar por essa medida. O livro, publicado em 1989, utiliza materiais a que os biógrafos anteriores não tinham acesso.
Da bibliografia mais recente sobre o tema, é preciso mencionar o livro de Simon Sebag Montefiore - "Stálin - The Court of the Red Tsar" (Stálin - A Corte do Czar Vermelho, ed. Phoenix, editado na Grã Bretanha em 2003). O livro de Montefiore contém uma espécie de análise etnográfica da "corte" de Stálin. Sob muitos aspectos, é o complemento indispensável ao trabalho de Volkogonov.

Gostos literários

Stálin, autodidata com gostos literários e artísticos os mais tradicionais era freqüentador assíduo dos teatros e grande leitor, principalmente de literatura e de história. O que não excluía, muito pelo contrário, uma grande hostilidade para com os "intelectuais". Lembremo-nos de que Hitler, que era igualmente um autodidata semiculto, tinha um ressentimento profundo em relação à intelligentsia.

Nos dois livros, mostra-se bem que a responsabilidade pelos crimes não é só de Stálin mas também da sua equipe de colaboradores. Os grandes co-responsáveis se chamam Molotóv, Vorochilóv - uma figura particularmente repugnante pelo amoralismo e a mediocridade, embora fosse fisicamente corajoso - e Kaganovitch.

Também Béria - um sádico de rara crueldade - e Zdanóv. Além de Malenkóv, os dois livros revelam quanta culpa no cartório tinha, igualmente, Kruschev, que, após a morte de Stálin, lançaria a luta contra "o culto da personalidade".

A história da emergência do grande terror stalinista é contada em registro mais político por Volkogonov e, mais "etnográfico", por Montefiore. É preciso ler os dois textos para ter uma idéia completa dessa novela de horror. Bem entendido, antes do grande terror - refiro-me à liquidação irracional e "compulsiva" de quadros do partido e da sociedade civil que se dá a partir de 1934 -, já tinha havido muita violência. E o genocídio dos camponeses ocorrido no início dos anos 30 ultrapassa de longe o número de vítimas imediatas do terror.

Grande terror

Porém a maneira pela qual Stálin liqüida os seus companheiros de partido durante o grande terror é, se ouso dizer, notável - um verdadeiro clássico da brutalidade e da abjeção. A história de Kamenev e Zinoviev, antigos companheiros de direção, é particularmente atroz - Kamenev e Zinoviev já tinham capitulado de um modo humilhante nos anos 20, mas só são processados nos anos 30. Stálin lhes informa que, se se dispuserem a confessar todos os "crimes" (trata-se das acusações mais estapafúrdias, de traição e conspiração), o Bureau Político - mas do Bureau político só aparecerão Stálin e mais dois- lhes garantirá a vida.

Como era de esperar, eles confessam tudo e são condenados à morte. No dia da execução, Zinoviev - Kamenev tem uma atitude mais firme - pede aos guardas, desesperada e inutilmente, para falar com Stálin. Semanas depois, num jantar comemorativo, um dos personagens da corte de Stálin, que fazia freqüentemente o papel de bufão, imita as últimas palavras de Zinoviev (o artista usa sotaque ídiche: Zinoviev - como o próprio bufão, que, mais tarde, também seria executado - era judeu). Stálin e os demais convivas riem a não poder mais.

Dentre os muitos problemas teóricos e históricos que a leitura de uma biografia de Stálin levanta, destaco três (só proponho algumas hipóteses, evidentemente). Um é o da natureza do regime stalinista. O segundo é o de por que a opinião mundial de esquerda se iludiu, em proporção impressionante, com a figura de Stálin e com a natureza do seu regime.

O terceiro problema, mais específico, é o das razões do terror. A primeira questão, que já discuti em outros lugares (permito-me remeter a um texto recente sobre Trótski que publiquei na revista "Lua Nova"), poderia ser resumida pelos dois termos que utilizei no título do presente artigo. Stálin foi em geral considerado pela crítica (de esquerda, em particular) como um burocrata. Mas ele aparece também - ou antes? - como um déspota (Castoriadis considerava uma tolice a afirmação de Trótski de que Stálin é a quintessência da burocracia; uma atitude crítica que vai na mesma direção, embora menos radical, se encontra, também, no historiador Moshe Lewin).

Na realidade, Stálin foi as duas coisas. E mais: a reunião desses dois "estilos" numa só pessoa é um sintoma da originalidade do "sistema stalinista" (observe-se que também no nazismo há despotismo - ou tirania, não discuto aqui a nuança - e burocracia. Porém, se Hitler foi um déspota, ele não foi, como Stálin, um burocrata).

Para a segunda questão, diria, que embora essa não seja a única razão, seria importante ressaltar que a doutrina hegemônica no interior da esquerda desde o final do século 19, o marxismo, estava mal preparada para pensar a emergência de um "tertius" entre o capitalismo e o socialismo (em última análise, porque apesar de todas as suas inovações, o marxismo dependia demais da filosofia do progresso) e mal preparada, em especial, para decifrar um "tertius" que se apresentava sob a forma de um despotismo. Como já disse em outro lugar, "despotismo" não é um verdadeiro conceito no discurso de Marx. Sobre a questão dos motivos do terror, tenho a impressão de que havia ali pelo menos dois elementos.

De um lado, como os dois autores observam, havia o aspecto que poderíamos chamar de "queima de arquivo". Stálin queria liqüidar aqueles que sabiam demais e que sabiam principalmente duas coisas: que o papel histórico de Stálin havia sido bastante secundário, e outra, mais grave, que no seu famoso "Testamento", Lênin tinha proposto o afastamento dele, Stálin, do Secretariado Geral, por ser excessivamente rude, pouco leal etc.

A liqüidação desses "arquivos" apareceu como uma necessidade a partir do 17º Congresso do Partido (1934), porque, para surpresa geral, na eleição para o Comitê Central, houve mais de 300 votos contra Stálin -com o agravante de que só houve três votos contra Kirov, o dirigente que seria assassinado pouco mais tarde, em circunstâncias misteriosas (que a votação tenha sido secreta e que a eleição de Stálin não estivesse ameaçada não protegeu os opositores. Stálin liqüidou em massa os participantes desse congresso). Havia assim um descontentamento surdo contra Stálin.

Mas, além disso, e sem falar na "inércia" de todo terror, para além do objetivo de eliminar testemunhas, Stálin deve ter visto o interesse que oferecia o terror. Provavelmente, ele se deu conta de que o despotismo não sobrevive sem um terror cíclico.

Ruy Fausto é filósofo, professor emérito da USP e leciona na Universidade de Paris 8. É autor de, entre outros livros, "Marx -Lógica e Política" (ed. 34) e "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (ed. Paz e Terra).

Stálin (volume 1, 1879-1939)

Fonte: MTL


 

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