Fronteiras
da economia popular e da economia
informal*
Lia Tiriba **
Não
sendo a demanda de trabalho assalariado
idêntica ao crescimento
do capital, ao invés de
apenas um, existem muitos mundo(s)
do trabalho. Nas cidades do capital
(Lefebvre, 1999) é possível
perceber que, ao levar as últimas
conseqüências a precarização
da vida, o modelo neoliberal de
acumulação obriga
as pessoas a (re)criar antigas
e novas formas de trabalho. Frente
a crise estrutural do emprego,
além daqueles que buscam
o caminho da associatividade,
organizando cooperativas e grupos
de produção, nos
deparamos com uma infinidade de
pessoas que, apresentando-se individualmente
(?) no mercado, fazem do espaço
da rua o seu local de trabalho:
são homens-estátua,
malabaristas, comedores de fogo,
distribuidores de panfletos, catadores
de latinhas, vendedores de pamonha,
doces e salgados. Sem falar da
grande quantidade de vendedores
de durepox, canetas, despertadores,
escovas de dente da Xuxa e mil
e uma coisas fabricadas no Paraguai
e em outros campos de concentração
econômica (Nuñes,2003).
De
acordo com o senso comum dos que
transitam pela cidade, estes especialistas
em “tecnologias de sobrevivência”
são considerados –
indiscriminadamente - trabalhadores
informais. Mas, qual a diferença
entre o vendedor de prestobarba
e o vendedor de ervas medicinais?
Qual a racionalidade econômica
da atividade da trabalhadora que
(ao invés de bauduco) vende
biscoitos caseiros, com a ajuda
dos familiares? Afinal, a que
setor(es) da economia pertence
esta camada social que, segundo
Marx (1984:208), não compondo
o “exército ativo”
e tampouco o “peso morto
do exército industrial
de reserva”, mas proporcionando
ao capital “um reservatório
inesgotável de força
de trabalho”, representa
a “categoria estagnada”
da superpopulação
relativamente excedente? Economia
popular e economia informal são
“farinha do mesmo saco“?
Os
conceitos de economia formal e
economia informal não são
suficientes para explicar a complexidade
das relações sociais,
o conceito de economia popular
nos ajuda a diferenciar a racionalidade
das formas de fazer a economia.
De acordo com o conceito de economia
popular, “tendo os trabalhadores
a posse e/ou a propriedade individual
ou associativa dos meios de produção,
ao invés do emprego da
força de trabalho alheio,
o princípio é a
utilização da própria
força de trabalho para
garantir não apenas a subsistência
imediata como também para
produzir um excedente que possa
ser trocado, no mercado da pequena
produção mercantil,
por outros valores de uso. Não
se caracterizando pelo investimento
de capital, mas pelo investimento
em força de trabalho, o
trabalho se constitui no principal
fator de produção,
constituindo-se como a gênese
e, ao mesmo tempo, resultado do
conjunto dos demais fatores do
processo de produção
de bens e serviços.”
(Icaza e Tiriba, 2003: 104). Neste
setor participam, por exemplo,
os trabalhadores das cooperativas
populares e empresas autogestionárias,
como também as crianças-malabaristas
que fazem um verdadeiro espetáculo
no sinal de trânsito.
O
fato do trabalhador ser oriundo
dos setores populares, não
confere à sua atividade
o status de pertencer à
economia popular. Compartilhando
da mesma lógica da economia
solidária, a economia popular
nega o emprego da força
de trabalho como uma mercadoria.
Assim, ao contrário de
ambas, “da economia informal
fazem parte as atividades de produção
e distribuição de
bens e serviços promovidas
pelos empresários, ou seja,
por aqueles que buscam o enriquecimento
próprio, mediado pela exploração
da força de trabalho daqueles
que não são os proprietários
dos meios de produção”(Ibid:105).
Apesar do discurso das autoridades
públicas quanto à
necessidade de “moralização
do mercado” e “ordenação
do espaço público”,
as atividades da economia informal
têm servido como mais um
instrumento para escoar as mercadorias
produzidas nas empresas de capital,
formal ou informalmente estabelecidas.
Nossa
recente pesquisa[1] revela que,
assim como aqueles que se inserem
na economia informal, a grande
maioria dos atores da economia
popular já desenvolveu
algum tipo de trabalho assalariado.
Mesmo na condição
de empregados, já viveram,
de alguma maneira, a “informalidade”;
não tiveram nenhum tipo
de registro e conseqüentemente,
nenhum tipo de direito trabalhista
ou social - o que nos reafirma
que os critérios de legalidade
ou ilegalidade do empreendimento
não servem como critério
da classificá-lo neste
ou naquele setor da economia.
Além do mais, “se
a economia informal tem como uma
de suas características
a ‘ausência de vínculo
empregatício’, isto
não significa que, necessariamente
que o trabalhador não tenha
patrão”(Ibd: 105).
Na verdade, sendo tênue
a fronteira entre economia formal
e economia informal, não
é possível mais
esconder que a informalidade sempre
foi um “bem necessário”
à flexibilização
das relações entre
capital e trabalho – processo
que, embora agudizado com as políticas
neoliberais, acompanha toda a
história do capitalismo.
“Caminhão roubado”
ou emprego roubado ??!! Afinal,
quem ganha com tantos durepox
e tostines nas calçada?
Vendendo
sonho de valsa ou vassoura fabricada
em grupo de produção
comunitária, as atividades
dos trabalhadores de rua não
vêm sendo reconhecidas pelo
poder público. Ao mesmo
tempo em os ambulantes são
perseguidos pela fiscalização,
a própria burocracia dificulta
que possam conseguir o “direito
ao trabalho”. A título
de ilustração (o
que parece uma brincadeira!),
o regulamento do exercício
do comércio e atividades
profissionais ambulantes do Código
de Posturas de Angra dos Reis
(datado de 1976, e ainda em vigor)
determina, por exemplo, o modelo
da cadeira do Engraxate e seu
respectivo uniforme; que as Baianas
devem acondicionar as mercadorias
em caixas envidraçadas,
apoiadas por cavaletes; que vendedores
de Angu devem usar avental e gorro
branco; que os tabuleiros dos
incapacitados físicos não
podem ultrapassar a dimensão
de 0,90m x 0,60m; que as malas
dos ambulantes tem que ter 0,70m.
X 0,45., com 0,30m. de altura.
Assim, depois de um longo tempo
de trabalho nas ruas (que chega
a mais de 20 anos), a imensa maioria
aguarda sua licença de
trabalho.
Tem
sido lugar comum dizer que os
trabalhadores se apresentam “individual”
ou “associativamente”
no mercado – o que precisa
ser redimensionado. Ora, se todo
trabalho é trabalho social,
não é verdade que
o “trabalhador individual”
exerça sozinho uma atividade.
Sendo o trabalho uma atividade
humana cujo processo envolve a
relação com outros
homens, é possível
perceber que por detrás
dos, geralmente denominados “trabalhadores
por conta própria”
existe um determinado número
de pessoas a eles associado Nesta
perspectiva, também teríamos
que considerar aqueles que estamos
nomeando de Oikotrabalhadores:
como protagonistas ou atores-coadjuvantes
da economia popular, são
pessoas que, unidas por laços
sociais de parentesco ou amizade,
promovem e estimulam redes de
solidariedade, em diferentes níveis
e estilos. Sendo a melhoria da
qualidade de vida o principal
objetivo, das atividades da economia
popular também fazem parte
os mutirões para a construção
de casas populares, para a limpeza
do valão, a ajuda dos amigos
para o conserto do telhado do
vizinho; a organização
de creches comunitárias,
etc. Neste horizonte, os sujeitos
da economia popular são
todos aqueles que, diretamente
ou indiretamente participam do
processo de reprodução
ampliada da vida.
Economia popular é “coisa
de pobre”? A chamada “informalidade”
tem facilitado a inserção
dos pobres na dinâmica da
economia global. No caso da economia
popular, não sendo algo
que “atrapalha” o
modelo de desenvolvimento econômico
(atualmente hegemômico),
a mesma também tem servido
“como alívio aos
pobres”. Com a crise estrutural
do emprego, proliferam as estratégias
de trabalho e de sobrevivência,
no entanto, embora se torne, agora,
mais evidente, a economia popular
não é filha do desemprego
e, tampouco da pobreza. Como “uma
forma de produzir e distribuir
bens e serviços que têm
como horizonte a satisfação
de valores de uso, a valorização
do trabalho e a valorização
do homem, o conceito de economia
popular nos remete ao significado
etimológico da palavra
‘economia’, a qual
se origina do grego Oikos (casa)
e nemo (eu distribuo, eu administro).
Assim como Oikonomia diz respeito
ao ‘cuidado da casa’
(entendida como morada do ser),
a economia popular é a
forma pela qual, historicamente,
os homens e mulheres que não
vivem da exploração
da força de trabalho alheio,
vêm tentando garantir o
seu estar no mundo, tanto na unidade
doméstica como no espaço
mais amplo que envolve o bairro,
a cidade, o país e o universo
(aí incluído o Planeta
Terra, como nossa Casa Comum).”
(Icaza e Tiriba, 2003:103)
Sendo
a forma pela qual, historicamente,
os setores populares tentam assegurar
– a seu modo - a reprodução
ampliada da vida, as estratégias
de trabalho e de sobrevivência
atravessam diferentes formações
econômicas, plasmando-se
(de forma hegemônica ou
subalterna) em um determinado
modo de produção
e/ou modelo de desenvolvimento
econômico). Apresentando-se
em diferentes tempos históricos,
a economia popular não
é um fenômeno que
se manifesta apenas no interior
da sociedade capitalista, estando
presente nas sociedades dos caçadores-coletores,
na sociedades escravistas, socialistas,
etc. Embora a economia popular
não se configure, necessariamente
como “economia dos pobres”,
é no contexto do modelo
neoliberal de acumulação
de capital que ela tem se apresentado,
fortemente, como tal. Neste sentido,
além considerar as redes
de convivência e as múltiplas
relações que os
seres humanos estabelecem com
o mundo, não podemos esquecer
que com a globalização
da economia (e também da
pobreza), “vale qualquer
coisa sobreviver”, o que
leva os trabalhadores a desenvolver
atividades de diferentes naturezas.
Como lembra Canclini (1998: 20),
“os migrantes atravessam
a cidade em muitas direções
e instalam, precisamente nos cruzamentos,
suas barracas de doces regionais
e rádios de contrabando,
ervas medicinais e videocassetes”
Referências
bibliográficas
CANCLINI,
Nestor G.: Culturas híbridas.
São Paulo: Edusp, 1998.
ICAZA,
Ana e TIRIBA, Lia: “Economia
popular”. In Cattani, A.:
A outra economia. Porto Alegre:
Editora Voraz, 2003:101-109.
LEFEBVRE,
Henri: A cidade do capital. Rio
de Janeiro: DP&A, 1.999.
MARX,
Karl : O capital. Crítica
da economia política.Vol.
1, Livro 1. São Paulo.Abril
Cultural, 1984.
NUÑEZ,
Orlando: Plantaciones, enclaves,
maquilas y clusters ¿Factores
de desarrollo o campos de concentración
económicos?. Manágua,
2003 (mimeo)
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*
Publicado no Jornal dos Economistas,
nú. 173, dezembro de 2003.
Texto extraído do original
publicado na Revista Proposta/FASE,
núm. 97, julho/ago de 2003:38:49.
**
Professora da Faculdade de Educação
da Universidade Federal Fluminense-UFF.
Autora do livro Economia popular
e cultura do trabalho: pedagogia(s)
da produção associada
(Unijui, 2001) e de vários
artigos sobre mundo do trabalho
e formação humana.
(tiriba@msm.com.br)
[1]
“Educação
e mundos do trabalho: retratos
da economia popular em Angra dos
Reis”, Universidade Federal
Fluminense - UFF, 2003 (CNPq/Faperj).
Fonte:
Universidade Federal Fluminense