Planejamento Familiar no Brasil
Ana
Maria Costa
Este
artigo busca, a partir dos distintos atores e cenários,
recuperar a trajetória histórica do planejamento
familiar no Brasil,
marcada em grande parte pela ausência das mulheres
neste debate.
Delineia, ainda, aspectos da complexa conjuntura
política e econômica que,
por interesse, toma o controle demográfico como
estratégia, a partir das
políticas ou ausência destas _ que definiram, no
Brasil,
a concreta redução do crescimento populacional confirmado
pelos últimos dados censitários. Finalmente, aborda
as dificuldades na
implementação dos direitos de autonomia reprodutiva
conquistados
pela população brasileira a partir da promulgação
da Constituição de 1988,
e que vêm sendo implementados pelo Sistema Único
de Saúde,
através do Programa de Assistência Integral à Saúde
da Mulher.
UNITERMOS
_ Planejamento familiar, direito de autonomia reprodutiva,
saúde da mulher
Notas
introdutórias
No
Brasil de hoje, planejamento familiar é tema cotidiano,
haja vista a freqüente abordagem da imprensa acerca
de temas tais como mortalidade materna, aborto,
esterilização, reprodução assistida ou outros relacionados
à procriação. O Poder Legislativo também reconhece
a importância da matéria e por lá tramitam dezenas
de projetos de lei regulamentando ou ampliando permissivos
legais sobre o assunto.
Embora
avançadas em seus princípios, conteúdos e diretrizes,
as políticas públicas propostas pelo Executivo patinam
no processo de sua implementação. O Estado tem sistematicamente
recuado de suas obrigações _ definidas pela Constituição
_ como provedor de assistência à saúde dos brasileiros,
universal e equânime. Contribuem ainda para o agravamento
e a consolidação do estado atual, aspectos da cultura
médica marcados por um exagerado intervencionismo
sobre o corpo da mulher, os quais, aliados à desinformação
destas mulheres, comprometem de forma definitiva
o princípio da autonomia nas escolhas de cada indivíduo.
Médica,
Ex-coordenadora nacional do PAISM/MS; Integrante
do Núcleo de Saúde e Sexualidade de Brasília; Coordenadora
do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade
de Brasília - DF.A rigor, o conceito de planejamento
familiar não se restringiria apenas aos aspectos
procriativos, mas abrangeria o conjunto das necessidades
e aspirações de uma família, incluindo moradia,
alimentação, estudo, lazer, etc. No entanto, por
força do hábito, o conceito de planejamento familiar
está hoje circunscrito às questões da reprodução;
quando não, apenas àquelas ações de controle da
fecundidade, ou seja, anticoncepção.
No
plano internacional, a partir das Conferências de
População (Cairo _ 1994) e da Mulher (Beijin _ 1995)
surge o conceito de saúde reprodutiva, que
diz respeito a ações amplas no campo da reprodução,
envolvendo o homem e a mulher. Embora reconhecendo
o avanço que representa esta nova abordagem, no
caso brasileiro há que se ter cautela visto o consenso
estabelecido em torno da integralidade assistencial
à mulher, em todas as suas fases e necessidades
de saúde. Estes princípios estão contidos na política
de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM).
Tecendo
a história
Embora
difuso, o discurso do planejamento familiar, que
já se expressava nos primórdios do Brasil colonial,
perpassando do Império ao início da República, foi
marcado por uma dissimulada tendência ou um sentimento
natalista agregado à idéia do aperfeiçoamento e
da melhoria da raça brasileira (1).
No
período colonial, a Igreja foi a instituição que
sustentou, quase com exclusividade, o ideário social
que se pretendia: uma sociedade portuguesa e cristã.
O sucesso desse projeto envolveu tanto estratégias
no plano do discurso cotidiano normativo como decisões
onde as mulheres eram impedidas de assumir outro
papel que não aquele determinado pela vida familiar
(2). Situação exemplar expressa-se
na negação de licença para a construção de um mosteiro
de freiras na Bahia, em 1606, onde a Igreja pronuncia-se
"pelo muito que convém povoar aquele estado de gente
principal e honrada".
Desta
forma é que a Santa Madre promove a mentalidade
androcêntrica, já tão presente naqueles tempos,
incentivando as mulheres à obediência e servidão
aos homens, incluindo a procriação de tantos filhos
quantos Deus ou a natureza determinassem. A posse
através da herança fica garantida a partir do controle
sobre as descendências, consolidando e estabelecendo
a sociedade familiar.
De
forma particular e decisiva, a Igreja teve como
grande aliada a medicina. Médico e padre tinham
acesso à intimidade das mulheres, mesmo com objetivos
aparentemente distintos: um, voltado ao cuidado
com a alma; o outro, com o corpo. Mas em ambas as
práticas ressalta-se uma violenta intervenção nas
vidas privadas e, no caso da medicina, esta é reforçada
através da normatização prescritiva sobre o corpo
feminino.
Foi
resultado desta época a elaboração de uma imagem
regular da feminilidade, o que estava adequado aos
interesses da Igreja. Para esta, a sexualidade somente
deveria servir à procriação. Todas as marcas do
desejo carnal e de animalidade do ato sexual deveriam
ser "apagadas" pela concepção. As penas da vida
conjugal, assim como os sofrimentos decorrentes
do parto, eram vistos como oportunidades "purificadoras",
redentoras do pecado para a ressurreição. Deste
modo era lançada a maldição para as mulheres infecundas,
incapazes de reverter com a pureza da gravidez a
dimensão pecaminosa do coito.
No
que diz respeito à concepção, o conhecimento científico
é atribuído à Regnier de Graaf (1641-73), lembrado
nos folículos ovarianos de Graaf. Até então acreditava-se
na teoria desenvolvida ainda por Aristóteles, que
atribuía exclusivamente ao
espermatozóide a função reprodutiva, onde a função
da mulher seria apenas a de um receptáculo. De forma
sutil foi se conduzindo uma ideologia natalista
implícita na cultura ocidental, influenciada pelas
idéias positivistas e fundamentada nas descobertas
da biologia.
Esta
situação arrastou-se do Brasil Colônia ao início
da República. Na década de trinta, com a criação
do salário-família, do auxílio-natalidade e o desenvolvimentismo
pós-guerra, explicita-se por parte do Estado de
Getúlio uma tendência pró-natalista. Enquanto isso,
no cenário internacional são retomadas as teses
do Reverendo Thomas Robert Malthus (1766 _ 1834),
que alertava sobre os perigos da superpopulação
em decorrência do não correspondente crescimento
da produção de alimentos.
A
despeito do caráter moralista e repressor da sexualidade,
explícitos nas teses malthusianas, apenas o aspecto
da desproporcionalidade entre os dois eventos, crescimento
demográfico versus disponibilidade de alimentos,
é tomado como referência para a discussão do planejamento
familiar. Outra face que muitos preconizadores do
planejamento familiar ressaltam, é a da eugenia
ou do aperfeiçoamento da espécie humana, a partir
da seleção das raças.
Assim
é que, em 1952, Margaret Sanger criou, com sede
em Londres, o International Planned Parenthood Federation
(IPPF), que contava com apoio financeiro de diversas
instituições interessadas em planejamento familiar,
visando ao controle demográfico, portanto restritivo
às liberdades procriativas das mulheres ou dos casais.
O IPPF virá, nos anos sessenta, financiar entidades
e outras instituições que no Brasil realizaram o
planejamento familiar.
Justamente
neste período, por volta de 1964, localiza-se o
acirramento da polêmica entre as políticas de controle
demográfico e as anticontrolistas. O pensamento
e a doutrina controlista no Brasil surgem no rastro
da Revolução Cubana (1). Naquela época, os
Estados Unidos implementaram uma política de ajuda
aos países latino-americanos, na qual, como condição
para ser ajudado economicamente, o país deveria
adotar programas e estratégias voltadas à redução
do crescimento demográfico (3,4). Ressalte-se
que ainda hoje são encontradas, nos contratos e
convênios internacionais, cláusulas que explicitam
compromissos com o controle da população.
A
argumentação favorável ao controle demográfico sustentava
que o crescimento econômico e o próprio desenvolvimento
só seriam possíveis com intervenções dirigidas à
redução do ritmo do crescimento demográfico. Movimentos
sociais, partidos políticos clandestinos e outros
setores da sociedade progressista indignaram-se
com os princípios defendidos pelos controlistas,
fundamentados na denúncia do avanço imperialista
na extensão do território nacional, na baixa densidade
demográfica e na necessidade de sua ocupação como
estratégia de autonomia e soberania nacional.
A
este debate, que persistiu durante as décadas de
60 e 70, comparecia, naturalmente, a Igreja, com
o seu conjunto de razões e argumentos de ordem moral
e doutrinária, sempre vinculando sexo à procriação.
Essa posição será relativamente flexibilizada no
final dos anos 70, quando a Igreja passou a admitir
um certo controle da fecundidade, desde que o método
utilizado seja a abstinência periódica. Este método
foi pela própria Igreja denominado como método natural
e representou importante avanço na modificação das
herméticas orientações consagradas no Concílio de
Trento, realizado no século XVII.
Tendo
perdurado por longo tempo, este embate apresentou
diversas e curiosas nuances. Em meados dos anos
setenta, o Ministério da Saúde implementou o Programa
de Saúde Materno-Infantil, onde o planejamento familiar
figurava discretamente sob o nome de paternidade
responsável. Nessa mesma década, exatamente no ano
de 1977, foi elaborado o Programa de Prevenção da
Gravidez de Alto Risco (PPGAR), o qual recebeu uma
reação contrária dos movimentos sociais que entendiam
ser este programa de cunho controlista. Os chamados
critérios de identificação de risco adotados pelo
programa encaminhavam um controle de nascimentos
entre pobres, negros e outras populações "descartáveis".
Para
a elaboração do PPGAR, o Ministério da Saúde mobilizou
dezenas de professores de universidades brasileiras
envolvidos com a temática de saúde reprodutiva.
O recuo do Ministério da Saúde mediante as reações
da imprensa, partidos políticos, movimentos sociais
e da Igreja, culminando com o arquivamento e não-implementação
do programa, resultou em problemas políticos entre
esse grupo de médicos _ professores das cadeiras
de gineco-obstetrícia e o Ministério da Saúde. Essa
situação só se reverteria tempos depois, no processo
de negociação que possibilitou a política atual,
a ser comentada adiante.
A
fragilidade política com que o Ministério da Saúde,
à época, enfrentou esta situação permitiu a criação
de um vácuo institucional do Estado, favorecendo
o surgimento e o crescimento de outras instituições
de cunho controlista. Dentre estas, a Sociedade
Civil de Bem-Estar Familiar no Brasil (BENFAM) e
o Centro de Pesquisas de Assistência Integrada à
Mulher e à Criança (CPAIMC) foram as de maior relevância.
A
BENFAM foi criada em novembro de 1965 como uma entidade
privada sem fins lucrativos, com sede no Rio de
Janeiro mas com intervenções em quase todo o território
nacional. Financiada por capital internacional e
filiada ao IPPF tinha como estratégia o treinamento
de profissionais de saúde para a prática do planejamento
familiar e a prestação direta de assistência exclusiva
em ações contra-ceptivas, através de suas unidades
próprias ou conveniadas com prefeituras, sindicatos,
secretarias de saúde, universidades, etc.
No
caso do CPAIMC, o financiamento para as suas atividades
no Brasil provinha fundamentalmente das instituições
vinculadas ao sistema AID através da Family Planning
International Assistance (FPIA), Pathfinder Foundation
e outras. Sua estratégia, no entanto, foi mais agressiva
e eficaz na criação e consolidação de uma ideologia
contraceptiva intervencionista no meio médico. Para
tanto, financiou treinamentos de profissionais vinculados
ao ensino da medicina, da enfermagem e de outras
áreas afins, além de sustentar uma verdadeira rede
de médicos que atuavam na realização de esterilização
cirúrgica por laparoscopia, doando o equipamento
e subsidiando as suas atividades. O CPAIMC foi ainda
distribuidor de material contraceptivo para diversas
outras instituições congêneres, usando de sua prerrogativa
de isenção de impostos para importação, em virtude
de sua titulação como entidade de utilidade pública,
sem fins lucrativos. A ideologia do controle da
natalidade, largamente disseminada no chamado Terceiro
Mundo, teve, no caso especial do Brasil, sua origem
nos interesses dos Estados Unidos que vislumbram
ameaças econômicas e políticas na "explosão demográfica".
Isto ficou explicitado a partir da divulgação de
um documento oficial datado de 10 de dezembro de
1974, codificado como NSSM _ 200 e só divulgado
no Brasil em 1989 com o seguinte título: Implicações
do Crescimento da População Mundial para a Segurança
e os Interesses dos EUA. Este documento é assinado
por Henry Kissinger e direcionado aos governantes
dos países americanos. Nele, são discutidos aspectos
econômicos, políticos e ecológicos relacionados
e supostamente ameaçados pelo crescimento demográfico
alardeado.
Consta
do referido documento a seguinte citação: "O principal
fator que está influindo na necessidade de matérias-primas
não agrícolas é o nível de atividade industrial,
regional e mundial. Por exemplo, os Estados Unidos,
com 6% da população mundial, consomem aproximadamente
um terço dos recursos mundiais ..."; mais adiante
o mesmo documento cita: "Nas últimas décadas, os
EUA se tornaram cada vez mais dependentes da importação
dos países em desenvolvimento e é provável que esta
situação continue." Nesse documento são definidas
algumas estratégias que foram desenvolvidas em nosso
país, haja vista que, ao lado da Índia, Bangladesh,
Paquistão, Nigéria, México, Indonésia, Filipinas,
Tailândia, Egito, Turquia, Etiópia e Colômbia, o
Brasil figurava como prioridade.
Coincidentemente
no Brasil dos anos 70, marcados pelo endurecimento
da ditadura militar, reforça-se entre os militares
o discurso da segurança nacional ameaçada pelo grande
contingente de pobres e numerosas famílias, presas
fáceis para a propaganda de idéias subversivas (1).
Ressalte-se, ainda, o recrudescimento de idéias
eugênicas expressas, por exemplo, na declaração
do General Valdir Vasconcelos, em 1982, sobre a
condição de sub-raça de brasileiros que não atingiam
as mínimas condições físicas e de saúde exigidas
para o ingresso no serviço militar, indicando, segundo
ele, a premência de controlar nascimentos desta
subespécie.
A
súbita radicalização do discurso dos militares em
relação ao tema população, ocorrida nos anos setenta,
talvez tenha sido o toque necessário para o surgimento
de um novo ator no processo que, embora objeto específico
destas políticas, não tinha até então se pronunciado
sobre o assunto. Estes atores, na verdade atrizes,
são as mulheres.
As
mulheres brasileiras, a partir dos anos 60, processavam
a ruptura com o clássico e exclusivo papel social
que lhes era atribuído desde sempre: o de mãe e
"rainha do lar". Gradativamente, incrementavam o
seu comparecimento no mercado de trabalho, ampliando
dessa forma suas aspirações de cidadania. Controlar
a fecundidade, realizar em seu corpo a anticoncepção
passa a ser aspiração e desejo das mulheres. As
vivências mais plenas da sexualidade, que se processaram
neste tempo, reforçavam esta necessidade. No entanto,
os serviços públicos de saúde estavam despreparados
para esta demanda. Ironicamente, apenas aqueles
serviços conveniados com as instituições do tipo
BENFAM, CPAIMC, etc., ofereciam métodos anticoncepcionais.
Essa
conjuntura permitiu o surgimento de um novo discurso,
baseado nos princípios do direito à saúde e na autonomia
das mulheres e dos casais na definição do tamanho
de sua prole. Este consenso, amplamente discutido
pela sociedade civil, teve como respaldo o processo
avançado da Reforma Sanitária Brasileira, que definiu
saúde como direito do cidadão e o dever do Estado
em provê-la à sua população. Em 1983, então, o Ministério
da Saúde divulga o Programa de Assistência Integral
à Saúde da Mulher (PAISM), que seria desenvolvido
pela rede pública de assistência à saúde, ajustando-se
às necessidades epidemiológicas e requerimentos
de cada localidade, de cada população.
O
PAISM foi apresentado pelo então Ministro da Saúde,
Valdir Arcoverde, durante o seu depoimento à Comissão
Parlamentar de Inquérito que investigava os aspectos
do crescimento populacional. Este constituiu-se
em um conjunto de princípios e diretrizes programáticas
abrangentes, destinados às mulheres nas diversas
etapas e situações de sua vida, incluindo-se a fase
reprodutiva. Para essas mulheres, o PAISM preconiza
que os indivíduos sejam atendidos nas suas demandas
específicas de saúde reprodutiva, de forma a minimizar
riscos para a saúde decorrentes da procriação. Prevê,
ainda, além da abordagem para a anticoncepção, tratamento
para os casos de infertilidade, sempre contextualizados
no conceito da integralidade assistencial (5).
A
consagração do direito ao planejamento familiar
está explícita na Constituição Federal de 88, no
parágrafo 7 do art. 226. Ali estão estabelecidas
as diretrizes a serem obedecidas pelo legislador
ordinário, que não deve vincular direito e acesso
aos serviços de planejamento familiar às políticas
de controle demográfico. Entre estas diretrizes
figuram, claramente, a liberdade de decisão do casal
e a responsabilidade do Estado em prover recursos
educacionais e científicos para o exercício desse
direito.
No
entanto, apesar do consenso e dos avanços conquistados
em torno desta questão, a situação da saúde reprodutiva
das mulheres brasileiras ainda está longe de um
quadro considerado como aceitável. Ainda em 1986,
quando o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
(IBGE) divulgou os dados provenientes da Pesquisa
Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD), o país
tomou conhecimento de que 27% das mulheres em união,
que usavam algum tipo de controle de fecundidade,
estavam esterilizadas cirurgicamente. A mesma fonte
também informou que os métodos contraceptivos mais
utilizados pelas mulheres brasileiras eram, respectivamente,
a pílula e a esterilização. Para efeito comparativo,
na França 6%, na Inglaterra 7% e na Itália 4% das
mulheres, na mesma situação, estão esterilizadas
(4).
No
Brasil contemporâneo a taxa de mortalidade materna
ou seja, óbitos de mulheres em decorrência da gravidez,
do parto ou do puerpério, transita em torno de 150/100.000
nascidos vivos. Esta taxa é 25 vezes maior que a
do Canadá, por exemplo. O uso abusivo da cesariana,
além de interferir nesta mortandade feminina, está
diretamente relacionado ao desregramento das altas
incidências de esterilizações entre as mulheres.
Consolidou-se
de forma perversa uma cultura reprodutiva onde,
ainda muito jovens, as mulheres, por desinformação
e ausência de outras alternativas, incluem em seu
projeto de vida a cesariana e a esterilização. Por
esta opção pagam caro, pois além da mortalidade
referida herdam seqüelas quase sempre definitivas,
aumento da mortalidade perinatal e altas e inconcebíveis
taxas de arrependimento pós-laqueadura. Os estudos
dedicados ao arrependimen
to pós-laqueadura estabelecem uma relação direta
entre esta situação e a desinformação sobre a existência
e disponibilidade de outras alternativas contraceptivas,
bem como à reversibilidade do procedimento cirúrgico
(3,4).
Em
significativo percentual, as esterilizações são
realizadas no curso das cesarianas, freqüentemente
indicados com o objetivo da realização simultânea
da laqueadura. As altas taxas de cesariana que o
Brasil exibe estão entre as mais elevadas do mundo.
Em
relação às seqüelas da esterilização cirúrgica,
há muito tempo elas vêm sendo relatadas e, de certa
forma, "desvalorizadas" na sua abordagem. No entanto,
no presente, há evidências constatadas destas seqüelas.
Merecem ser discutidos com as mulheres problemas
como dores pélvicas, obesidade, alterações da libido,
alterações da função ovariana, dismenorréia, etc.
Freqüentemente, o relato destes sintomas tem sido
preconceituosa e negligentemente atribuído ao conjunto
dos "distúrbios neuro-vegetativos". Aliás, para
muitos profissionais da saúde, muito comuns às mulheres
...
Em
resposta à prática indiscriminada da esterilização,
o Congresso Nacional instalou, em 1991, uma Comissão
Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) destinada
a investigar a esterilização em massa das mulheres
brasileiras. Entre os consensos extraídos dessa
CPMI figura a necessidade de regulamentação da esterilização
cirúrgica e de todas as ações para o planejamento
familiar. O caso da esterilização traz o agravante
de constituir-se em crime de mutilação previsto
no Código Penal, apesar de amplamente praticado.
Tal regulamentação estenderia o acesso ao conjunto
das mulheres brasileiras e não apenas àquelas que
podem "pagar por fora", como é a prática atual.
Por outro lado, a regulamentação, ao dar visibilidade
à prática, permitirá um maior controle sobre o seu
uso abusivo (3).
Tendo
tramitado pelas duas casas do Congresso Nacional,
o projeto recebeu vetos presidenciais, surpreendendo
e indignando toda a sociedade brasileira. No momento,
há um movimento para reverter a situação do veto,
que, a princípio, deve ser realizado pelo Congresso
Nacional. Enquanto isso, as mulheres seguem negociando,
a altos preços, no livre mercado do controle da
fecundidade.
O
segundo método mais utilizado entre as brasileiras,
de acordo com o que foi apurado na CPMI, é a pílula
anovulatória. O uso da pílula se dá em um contexto
de alto risco à saúde das usuárias e quase 50% são
automedicadas ou têm a indicação no balcão da farmácia.
A recente elevação de incidência de doenças cardiovasculares
entre as mulheres já começa a ser relacionada ao
uso indevido de anovulatórios, o que exige medidas
radicais que possam minimizar esse e outros riscos
decorrentes desta situação.
Dez
anos se passaram, desde que o IBGE apresentou as
informações PNAD sobre a população. Desse período
para cá, infelizmente a situação da desassistência
à saúde agravou-se sensivelmente. O último censo
mostra que a população continua decrescendo. O Estado
não avança no processo de implementação do SUS,
comprometido com a evidente remessa da saúde ao
livre mercado. No entanto, os movimentos sociais
têm se fortalecido ao longo desse tempo.
No
Brasil, o movimento feminista pela saúde possui
grande visibilidade pública a partir de sua centena
de grupos distribuídos em todo o território nacional
e atua de forma impactante. Além da incansável luta
pelo direito ao aborto legalizado, gratuito e qualificado,
as mulheres têm tido um papel fundamental na implementação
de ações buscando o ideário da integralidade. Dos
Comitês de Morte Materna à luta pela implantação
dos serviços de atendimento ao aborto legal, as
mulheres têm imprimido a sua marca.
Os
comitês têm como função o estabelecimento de um
processo de monitoramento, vigilância e controle
das mortes maternas ocorridas na região ou município.
Para as mulheres constitui-se em eficaz estratégia
de visibilidade de um evento silenciado na cultura:
morrer de parto. A cada dia, o ônus da clandestinidade
do aborto agrava a situação da morte materna _ em
áreas metropolitanas já desponta como a primeira
causa de óbito ligada à gravidez.
Há
décadas, o aborto que decorre de um ato de violência
(estupro) em conjunto com as situações que envolvem
risco de vida da mãe são permitidos pela lei (Código
Penal). Porém, mulheres violentadas ainda têm que
perambular, pedir, se expor para conseguir o direito
que a lei lhes confere. A hipocrisia com que a sociedade
tem se posicionado em relação ao aborto fica patenteada
neste caso exemplar: de um lado, legaliza; de outro,
não oferece condições para que venha a ser feito.
No
início dos anos 90 começaram ser implantados os
serviços de atendimento ao aborto legal. Entre os
profissionais e os gestores dos serviços, há praticamente
um consenso sobre a necessidade de atender esta
demanda, segundo dados preliminares da pesquisa
sobre percepções dos atores sociais delegados da
X Conferência Nacional de Saúde _ NESP/UnB. No entanto,
os serviços que estão implantados surgem das reivindicações
e das lutas feministas. Não há nenhum serviço no
Brasil que tenha sido implantado por medida de decisão
do gestor de saúde ou secretário estadual ou municipal.
Finalmente,
não é admissível discutir planejamento familiar
sem pontuar a questão das tecnologias reprodutivas.
Neste particular, pelo menos dois aspectos devem
ser apontados: a socialização dos conhecimentos
sobre os verdadeiros riscos dos procedimentos, aliada
à propaganda enganosa dos resultados. Há uma premente
necessidade de que o Estado, através dos órgãos
dirigentes do SUS, defina mecanismos de vigilância
sobre projetos e serviços de reprodução assistida,
com normas claras e amplamente discutidas.
Os
pontos aqui levantados desta complexa questão deixam
claro que as mulheres têm sido personagens de uma
tragédia cotidiana e silenciosa, no que diz respeito
ao exercício de um direito constitucional, fundamental
_ o de procriar. É importante reparar que, nas questões
reprodutivas e procriativas, as mulheres têm tido
responsabilidades e compromissos muito mais onerosos
que os homens. Estes, regra geral, se desobrigam
dos seus compromissos paternos. Daí infere-se que
a plenitude do gozo da situação de direito em relação
aos direitos reprodutivos exige mudanças profundas,
desconstrução de culturas, realinhamento de princípios
éticos e de convívio entre homens e mulheres e destes
com o Estado.
Abstract
_ Familiar Planning In Brazil
This
article tries to recover the historical trajectory
of familiar planning in Brazil from different actors
and scenarios, mostly marked by the lack of women
in this debate. It also points out some issues of
the complex political, economic conjuncture taking
demographic control as a strategy, from policies
(or the lack of them) that have defined, in Brazil,
a concrete reduction of population growth, as shown
in the latest census data.
Finally,
the present article deals with the existing difficulties
for implementing the rights of reproductive autonomy,
conquered by the brazilian people since the promulgation
of the 1988 Constitution. These rights have been
implemented by the Unified Health System, through
the Overall Assistance to Woman Health Program.
Referências
Bibliográficas
- Fonseca
Sobrinho D. Estado e população: uma história
do planejamento familiar no Brasil. Rio de Janeiro:
CEDEPLAR/Rosa dos Tempos, 1991
- Del
Priori M. Ao Sul do corpo: condição feminina,
maternidades e mentalidades no Brasil Colônia.
Rio de Janeiro: José Olímpio/Edund, 1993.
- Brasil.
Congresso Nacional. Comissão Parlamentar Mista
de Inquérito destinada a examinar a "incidência
de esterilização em massa de mulheres no Brasil".
Relatório final. Brasília: Centro Gráfico do
Senado Federal, 1993.
- Costa
AM. PAISM: uma política de assistência integral
à saúde da mulher a ser resgatada. São Paulo:
Comissão de Cidadania e Reprodução, 1992.
- Brasil.
Ministério da Saúde. Assistência integral à
saúde da mulher: subsídios para uma ação programática.
Brasília: Centro de Documentação: 1983.
Endereço
para correspondência:
Núcleo
de Estudos de Saúde Pública da Universidade de Brasília
- CLN 406 Bloco A, sala 223
70847-510
Brasília - DF