O
Conto
"...os
contos são verdadeiras obras de arte. São
uma grande arte que pertence ao patrimônio cultural
de toda a humanidade e representam a visão do
mundo, as relações entre o homem e a natureza
sob as formas estéticas mais acabadas; aquelas
que provocam precisamente o maravilhoso." Jean-Marie
Gillig.
Calcula-se
que o hábito de ouvir e de contar histórias
venha acompanhando a humanidade em sua trajetória
no espaço e no tempo. Em que momento o primeiro
agrupamento humano se sentou ao redor da fogueira para
ouvir as narrativas fantásticas ou didáticas
capazes de atrair a atenção e o gosto
dos presentes e de deixar, no rastro de magia em que
eram envolvidas, uma lição e/ou um momento
de prazer?
O
que se pode afirmar é que todos os povos, em
todas as épocas, cultivaram seus contos. Contos
anônimos, preservados pela tradição,
mantiveram valores e costumes, ajudaram a explicar a
história, iluminaram as noites dos tempos.
De
Sherazade (uma voz de mulher que conta mil e um contos
nas Mil e uma noites, fazendo, dessa forma, a compilação
dos contos mais conhecidos no final da Idade Média)
aos contistas contemporâneos, a narrativa curta
tem sido observada com especial interesse.
A
fórmula de compilação e narração
de contos até então mantidos no ideário
popular adotada nas Mil e uma noites foi largamente
adotada e repetida por muitos autores nos anos subseqüentes
(Veja-se, por exemplo, o Decamerão, de Bocaccio).
Aos
poucos, novas modalidades de contos foram surgindo,
diferenciando-se dos contos infantis e dos contos populares,
regidos agora por uma nova maneira de narrar, de acordo
com a época, os movimentos artísticos
que essa época produziu e o estilo individual
do autor/narrador.
Luzia
de Maria, no volume O que é conto, da coleção
Primeiros Passos, introduz seu leitor na discussão
das várias modalidades de conto, começando
por distinguir “o conto como forma simples, expressão
do maravilhoso, linguagem que fala de prodígios
fantásticos, oralmente transmitido de gerações
a gerações e o conto adquirindo uma formulação
artística, literária, escorregando do
domínio coletivo da linguagem para o universo
do estilo individual de um certo escritor”. [1]
E
surgiram os contos de humor, os contos fantásticos,
os contos de mistério e terror, os contos realistas,
os contos psicológicos, os contos sombrios, os
contos cômicos, os contos religiosos, os contos
minimalistas, os contos estruturados de acordo com as
técnicas da narrativa.
Ricardo
Piglia assegura que o segredo de um conto bem escrito
é que, na realidade, todo conto conta duas histórias:
uma em primeiro plano e outra que se constrói
em segredo. A arte do contista estaria em entrelaçar
ambas e, só ao final, pelo elemento surpresa,
revelar a história que se construiu abaixo da
superfície em que a primeira se desenrola. As
duas histórias encontram-se nos pontos de cruzamento
que vão dando corpo a ambas, embora o que pareça
supérfluo numa seja elemento imprescindível
na armação da outra.
A
história visível e a história secreta,
segundo ele, recebem diferentes tratamentos no conto
clássico e no conto moderno. No primeiro, uma
história é contada anunciando a outra;
nos contos modernos, as duas histórias aparecem
como se fossem uma só.
Na
forma reduzida do conto, a intensidade da busca: “O
conto se constrói para fazer aparecer artificialmente
algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada
de uma experiência única que nos permita
ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade
secreta.” [2]
As
qualidades que lhe são apontadas são a
concisão e a brevidade, ou seja, é estruturado
com uma linguagem
densa, com o máximo de economia de palavras.
Sua dimensão se dá no sentido da profundidade.
O
conto de feição clássica se organiza
numa cadeia de acontecimentos que centralizam o poder
de atração, apresentando, conseqüentemente,
ação, personagens, diálogos. Caracteriza-se
como narração de um episódio, uma
única ação, com começo,
meio e fim, concentrado num mesmo espaço físico,
num tempo reduzido. Destaca-se por sua unidade de tempo
e de ação.
O
conto contemporâneo, reflexo da nova narrativa
que se foi construindo nas últimas décadas,
substituiu a estrutura clássica pela construção
de um texto curto, com o objetivo de conduzir o leitor
para além do dito, para a descoberta de um sentido
do não-dito. A ação se torna ainda
mais reduzida, surgem monólogos, a exploração
de um tempo interior, psicológico, a linguagem
pode, muitas vezes chocar pela rudeza, pela denúncia
do que não se quer ver. Desaparece a construção
dramática tradicional que exigia um desenvolvimento,
um clímax e um desenlace. Em contrapartida, cobra
a participação do leitor, para que os
aspectos constitutivos da narrativa possam por ele ser
encontrados e apreciados. Exige uma leitura que descortine
não só o que é contado, mas, principalmente,
a forma como o fato é contado, a forma como o
texto se realiza.
Como
Fazer um Conto
Teses sobre o conto (por
Ricardo Piglia )
1.
Num de seus cadernos de notas Tchekov registrou este
episódio: "Um homem, em Monte Carlo, vai
ao cassino, ganha um milhão, volta para casa,
se suicida". A forma clássica do conto está
condensada no núcleo dessa narração
futura e não escrita.
Contra o previsível e convencional (jogar-perder-suicidar-se)
a intriga se estabelece como um paradoxo. A anedota
tende a desvincular a história do jogo e a história
do suicídio. Essa excisão é a chave
para definir o caráter duplo da forma do conto.
2.
Primeira tese: um conto sempre conta duas histórias.
O
conto clássico (Poe, Quiroga) narra em primeiro
plano a história 1 (o relato do jogo) e constrói
em segredo a história 2 (o relato do suicídio).
A arte do contista consiste em saber cifrar a história
2 nos interstícios da história 1. Uma
história visível esconde uma história
secreta, narrada de um modo elíptico e fragmentário.
O
efeito de surpresa se produz quando o final da história
secreta aparece na superfície.
3.
Cada uma das duas histórias é contada
de maneira diferente. Trabalhar com duas histórias
significa trabalhar com dois sistemas diversos de causalidade.
Os mesmos acontecimentos entram simultaneamente em duas
lógicas narrativas antagônicas. Os elementos
essenciais de um conto têm dupla função
e são utilizados de maneira diferente em cada
uma das duas histórias.
Os
pontos de cruzamento são a base da construção.
4.
No início de "La Muerte y la Brújula",
um lojista resolve publicar um livro. Esse livro está
ali porque é imprescindível na armação
da história secreta. Como fazer com que um gângster
como Red Scharlach fique a par das complexas tradições
judias e seja capaz de armar a Lönrot uma cilada
mística e filosófica? Borges lhe consegue
esse livro para que se instrua. Ao mesmo tempo usa a
história 1 para dissimular essa função:
o livro parece estar ali por contiguidade com o assassinato
de Yarmolinsky e responde a uma causalidade irônica.
"Um desses lojistas que descobriram que qualquer
homem se resigna a comprar qualquer livro publicou uma
edição popular da "Historia Secreta
de los Hasidim". O que é supérfluo
numa história, é básico na outra.
O livro do lojista é um exemplo (como o volume
das "Mil e Uma Noites" em "El Sur";
como a cicatriz em "La Forma de la Espada")
da matéria ambígua que faz funcionar a
microscópica máquina narrativa que é
um conto.
5.
O conto é uma narrativa que encerra uma história
secreta. Não se trata de um sentido oculto que
depende da interpretação: o enigma não
é senão uma história que se conta
de modo enigmático. A estratégia da narrativa
está posta a serviço dessa narrativa cifrada.
Como contar uma história enquanto se está
contando outra? Essa pergunta sintetiza os problemas
técnicos do conto.
Segunda tese: a história secreta é a chave
da forma do conto e suas variantes.
6.
A versão moderna do conto que vem de Tchekov,
Katherine Mansfield, Sherwood Anderson, o Joyce de "Dublinenses",
abandona o final surpreendente e a estrutura fechada;
trabalha a tensão entre as duas histórias
sem nunca resolvê-las. A história secreta
conta-se de um modo cada vez mais elusivo. O conto clássico
à Poe contava uma história anunciando
que havia outra; o conto moderno conta duas histórias
como se fossem uma só.
A
teoria do iceberg de Hemingway é a primeira síntese
desse processo de transformação: o mais
importante nunca se conta. A história secreta
se constrói com o não dito, com o subentendido
e a alusão.
7.
"O Grande Rio dos Dois Corações",
um dos textos fundamentais de Hemingway, cifra a tal
ponto a história 2 (os efeitos da guerra em Nick
Adams) que o conto parece a descrição
trivial de uma excursão de pesca. Hemingway utiliza
toda sua perícia na narração hermética
da história secreta. Usa com tal maestria a arte
da elipse que consegue com que se note a ausência
da outra história.
O que Hemingway faria com o episódio de Tchekov?
Narrar com detalhes precisos a partida e o ambiente
onde se desenrola o jogo e técnica utilizada
pelo jogador para apostar e o tipo de bebida que toma.
Não dizer nunca que esse homem vai se suicidar,
mas escrever o conto se o leitor já soubesse
disso.
8.
Kafka conta com clareza e simplicidade a história
secreta e narra sigilosamente a história visível
até transformá-la em algo enigmático
e obscuro. Essa inversão funda o "kafkiano".
A história do suicídio no argumento de
Tchekov seria narrada por Kafka em primeiro plano e
com toda naturalidade. O terrível estaria centrado
na partida, narrada de um modo elíptico e ameaçador.
9.
Para Borges a história 1 é um gênero
e a história 2 sempre a mesma. Para atenuar ou
dissimular a monotonia essencial dessa história
secreta, Borges recorre às variantes narrativas
que os gêneros lhe oferecem. Todos os contos de
Borges são construídos com esse procedimento.
A história visível, o jogo no caso de
Tchekov, seria contada por Borges segundo os estereótipos
(levemente parodiados) de uma tradição
ou de um gênero. Uma partida num armazém,
na planície entrerriana, contada por um velho
soldado da cavalaria de Urquiza, amigo de Hilario Ascasubi.
A narração do suicídio seria uma
história construída com a duplicidade
e a condensação da vida de um homem numa
cena ou ato único que define seu destino.
10.
A variante fundamental que Borges introduziu na história
do conto consistiu em fazer da construção
cifrada da história 2 o tema principal.
Borges narra as manobras de alguém que constrói
perversamente uma trama secreta com os materiais de
uma história visível. Em "La Muerte
y la Brújula", a história 2 é
uma construção deliberada de Scharlach.
O mesmo ocorre com Acevedo Bandeira em "El Muerto";
com Nolan em "Tema del Traidor y del Héroe";
com Emma Zunz.
Borges
(como Poe, como Kafka) sabia transformar em argumento
os problemas da forma de narrar.
11.
O conto se constrói para fazer aparecer artificialmente
algo que estava oculto. Reproduz a busca sempre renovada
de uma experiência única que nos permita
ver, sob a superfície opaca da vida, uma verdade
secreta. "A visão instantânea que
nos faz descobrir o desconhecido, não numa longínqua
terra incógnita, mas no próprio coração
do imediato", dizia Rimbaud.
Essa
iluminação profana se transformou na forma
do conto.
1-
REIS, Luzia de Maria R. O que é o conto. São
Paulo: Brasiliense. 1987, p.10.
2. PIGLIA, Ricardo. Teses sobre o conto. Caderno Mais,
Folha de São Paulo, 30 de dezembro de 2001, p.
24.
Ricardo
Piglia é escritor argentino, autor de, entre
outros, "Respiração Artificial"
(Iluminuras) e "Dinheiro Queimado (Companhia das
Letras). O texto acima foi publicado originalmente em
"O Laboratório do Escritor" (Iluminuras).
Tradução
de Josely Vianna Baptista
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Fonte:
http://www.cce.ufsc.br/~nupill/ensino/o_conto.htm
Fonte: http://www.portrasdasletras.com.br/pdtl2/sub.php?op=literatura/docs/comofazer
Sobe
http://www.miniweb.com.br