Textos sobre Envelhecimento
ISSN 1517-5928 versão impressa
Cuidados com idosos: percepção de idosos
e de profissionais de saúde sobre maus tratos no espaço familiar
*
José Marcos de Oliveira Cruz
Resumo A relevância das pesquisas com indivíduos
que envelhecem tem se revelado especialmente nas denúncias quanto
às situações vividas pelo idoso, direcionando políticas públicas voltadas
para a inclusão social. Este estudo investigou as representações a
respeito dos cuidados dispensados pela família para com a saúde do
idoso, bem como aquelas percebidas por profissionais da área da saúde,
quanto a este tipo de cuidados. Foram investigadas pessoas com idade
acima de sessenta anos atendidas em unidades de saúde da cidade de
Aracaju e profissionais de saúde que trabalhavam com esta clientela
por ocasião da investigação. A pesquisa identificou negligências e
descaso para com os idosos na família, na percepção de profissionais
e dos próprios idosos: abandono, falta de atenção e carinho, exploração
financeira, agressão verbal, além das omissões quanto aos cuidados
com a saúde. Os relatos mostraram, ainda, que o convívio desses idosos
com seus familiares é permeado de dificuldades, especialmente centradas
no isolamento, indicando que as condições básicas de vida social,
asseguradas por lei, são desrespeitadas.
Introdução O estudo das condições que cercam o idoso tem merecido especial atenção nos últimos anos. Cuidados na área de saúde são de responsabilidade não apenas das instâncias dessa área, mas envolvem um contingente de aspectos sociais na preservação da saúde coletiva como um todo. No envelhecimento, a responsabilidade pelos cuidados e com a prevenção de doenças recai de forma expressiva sobre as unidades de saúde mantidas pelos programas governamentais e sobre a família. Os fatores representacionais do descaso, a agressão, a depreciação ou ridicularização podem impedir cuidados adequados ao indivíduo que envelhece, tanto do ponto de vista do sujeito que envelhece, como de profissionais de saúde que os atendem. O presente estudo pretendeu levantar observações sobre situações de risco às quais estão submetidos os idosos, do ponto de vista de profissionais de saúde, bem como dos idosos usuários das unidades de saúde. Os "maus-tratos", neste estudo conceituados como descaso, desrespeito, depreciação, ridicularização, além da agressão direta ou indireta propriamente dita, foram analisados nas entrevistas obtidas. Aqui, o conceito de "maus-tratos" cometidos contra os idosos refere-se à definição apresentada pela organização inglesa Ação para o Abuso de Idosos e adotada pela Rede Internacional de Prevenção à Violência contra os Idosos (Inpea, apud Machado e col.,2002; OMS, 1998). A Organização Mundial de Saúde considera abuso ao idoso qualquer ato isolado ou repetido, ou a ausência de ação apropriada ocorrendo em qualquer relacionamento onde haja uma expectativa de confiança que cause dano ou incômodo a uma pessoa idosa. Esta definição inclui: abuso físico: provocação de dor ou lesão; coerção física; restrição física ou química; abuso psicológico/emocional: imposição de angústia mental; abuso financeiro/material: exploração imprópria ou ilegal e/ou uso de fundos ou recursos; abuso sexual: contato não consensual de qualquer tipo com pessoa idosa; negligência: a recusa ou falha em cumprir obrigação de qualquer cuidado incluindo/excluindo esforço consciente e intencional de infligir dor física ou emocional na pessoa idosa (Machado e col.,2002). Referencial teórico Ser velho, na sociedade ocidental, não confere ao indivíduo a devida respeitabilidade e nem o isenta de ser vítima de desprezo, depreciação e ridicularização (Both, 2001; Bergo,2002a e b). As possibilidades de vida plena durante o envelhecimento são cerceadas não somente pelas restrições biológicas, mas as representações sociais da velhice também afetam as relações de poder e de auto-estima dos indivíduos que ultrapassam os limites etários estabelecidos como etapa produtiva de vida. Essas características têm sido estudadas também em Sergipe (Bergo, 2001;2002c; 2002d;2002e e 2002f), por meio de levantamentos e análises sobre as oportunidades educacionais oferecidas a essa clientela, no sentido dos esforços estabelecidos para integrar e incluir o idoso no âmbito acadêmico, como forma de diminuir a exclusão social das pessoas que envelhecem e dar substancial contribuição para incremento da percepção de valor nas representações sociais da velhice. Mesmo considerando negligências e omissões quanto aos cuidados à saúde de idosos como condições de maus-tratos advindos tanto de seu ambiente familiar como social em geral, uma parcela importante deles têm assumido um papel preponderante na economia familiar como provedor principal dos recursos financeiros dos lares. Por outro lado, a questão das representações sociais relativas ao objeto de estudo em questão são resultantes do processo comunicativo entre grupos sociais e como conhecimento partilhado que resulta desse processo. Presume-se que emergem em grupos e sociedades em que as comunicações sociais constituam um fenômeno relevante (Monteiro, 1997). Além disso, implica a consideração de que a funcionalidade das representações na construção de identidades sociais é um processo contínuo de reconstrução de representações construídas nos diferentes grupos sociais e podem ser vistas como estruturas significantes, no sentido em que são funcionais na construção de identidades sociais (Monteiro, p.36). Nessa perspectiva teórica, o objetivo geral desta pesquisa foi investigar a representação social a respeito do tratamento familiar e social recebido pelos idosos, na cidade de Aracaju. Buscou, ainda, identificar quais são as negligências e omissões quanto aos cuidados com a saúde de pessoas idosas mais freqüentes no ambiente familiar, bem como as condições a eles associados, tanto na perspectiva do indivíduo estudado, como também por profissionais da área da saúde. Tem como meta verificar o descaso e negligências contra o idoso por parte da família, verificando quais são os componentes de abuso, abandono, restrições ou recusas quanto aos cuidados, identificados pelos próprios idosos e analisar junto aos profissionais da área de saúde, que atendem nos postos de saúde de Aracaju, as queixas mais comuns de maus-tratos praticados no âmbito familiar, contra os idosos. Metodologia Método Foram utilizados questionários semi-abertos, usando o gravador com consentimento. Os dados foram tratados por meio de análise qualitativa, além de terem sido quantificados e submetidos a critérios da análise de conteúdo com base na proposta de Bardin (1997). Sujeitos Foram pesquisados 12 idosos com idade acima de 60 anos, escolhidos de ambientes familiar que eram usuários de serviços de saúde e que não tinham incapacidade mental. Destes, 6 foram do sexo masculino e 6 do sexo feminino. Os profissionais de saúde foram 8, sendo 3 médicos, 4 enfermeiros e 1 assistente social. No geral, foram realizadas 20 entrevistas, sendo 12 com idosos e 8 com profissionais de saúde. Os entrevistados tiveram denominação específica. As idosas foram denominadas: IF1, IF2, IF3, IF4, IF5 e IF6. Os idosos : IM1, IM2, IM3, IM4, IM5 e IM6. Enquanto os profissionais de saúde foram designados : PS1, PS2, PS3, PS4, PS5, PS6, PS7, PS8. Instrumentos Foram construídos e validados em fase preliminar (teste piloto) do presente trabalho, dois questionários: um para os idosos e outro para os profissionais de saúde. Ambos os questionários continham questões abertas e semi-abertas, que foram respondidas e gravadas com consentimento do sujeito. Procedimentos A execução deste estudo se deu em quatro Unidades de Saúde, situadas em localidades diferentes, além de cumprir o requisito de atender e/ou manter grupo de idosos participantes de programas específicos. Com a anuência dos diretores das unidades, os participantes foram contatados e as entrevistas foram agendadas. Resultados O presente estudo revelou que os idosos entrevistados possuem um baixo índice de escolaridade, tendo cursado, na sua maioria, apenas as primeiras séries do ensino fundamental. São pessoas de baixa renda que vivem do benefício da aposentadoria, mesmo assim, na maioria das vezes, esta é a única ou a principal fonte de renda e sustentação da família da qual o idoso faz parte. Apresentam duas ou mais doenças crônicas tais como: hipertensão, diabete e problemas cardíacos, etc. A maioria tem entre 60 a 65 anos. Boa parte dos entrevistados tem moradia própria e seus parentes moram com eles. Uma parte destas pessoas ainda vive com seus companheiros(as), embora vários sejam separados ou viúvos. Tais dados são mostrados com mais detalhes na tabela 1.
Tabela 1 Perfil dos Idosos Entrevistados
Os profissionais de saúde entrevistados foram de três áreas: medicina, enfermagem e social. Estes profissionais já são formados há vários anos, tendo um tempo de atuação que varia de 4 a 20 anos, desenvolvendo trabalho nas mais diversas áreas da saúde. São profissionais que, na sua maioria, atuam em unidades de saúde, além de fazerem parte do Programa de Saúde na Família (PSF). A tabela 2 demonstra as características desses entrevistados.
Tabela 2 Profissionais de Saúde
Representação social dos idosos As representações sociais no âmbito das relações familiares, nos contatos sociais com amigos e vizinhos, bem como nos atendimentos prestados a eles nas unidades de saúde são: (a) quanto à família; (b) quanto à saúde (a) Quanto à família A partir das respostas dos idosos estudados, foi destacado, conforme apresentado na tabela 3, que uma parcela importante das respostas dos entrevistados informam que eles se sentem desprezados e sem atenção, que não fazem nenhum tipo de passeio com seus parentes, que têm convivência difícil, que se sentem abandonados ou esquecidos e que consideram o tratamento que recebe dos parentes como sendo ruim. Tabela 3 Percepção dos Idosos quanto aos Cuidados
Recebidos
IM6 relata sua sensação de abandono: "Eles não se reúnem comigo. Eu nunca me achei no meio deles. Não posso nem dizer como eu me sinto no meio deles" e sobre o tratamento recebido "muitas famílias estão tratando os idosos assim como uma coisa (...) muitos filhos passam os idosos para um asilo, paga outra pessoa que não quer ter trabalho com aquele idoso". Informam, ainda a intenção de seus parentes em querer interná-los em asilos: " já quiseram me botar. Eu fui que fiz, não eu não estou em condições ainda não. Estou assim inválido sem poder trabalhar, sem poder fazer nada na vida, mas ainda não estou caducando não, para vocês fazerem de mim o que quiser". Sensação de exclusão e abandono também foram relatadas por IM3 que enfatizou: "Minha família me abandonou". Por IF1 que de forma semelhante confirma estes sentimentos: "ninguém se comunica comigo em nada. Faz de conta que eu sou um lixo, um lixo assim que se joga fora e ponto". Neste mesmo sentido, IF5 falou: "... não me ajudam e faz de conta que eu não sou nem mãe". Por fim, IF4 retrata sua sensação de exclusão dizendo: " ... sou uma dessas que é excluída (...) todo dia eu digo ao menino, eu só fui mãe para botar no mundo e para educar, pronto, para nada mais". IF5 relatou: "Eu digo é porque eu sou velha e eles são novo. Eles não querem andar comigo porque eu sou velha, faz vergonha a eles". De forma parecida, IF2 disse: "a pessoa nunca liga o idoso, tem gente que não liga o idoso, porque dizem é velho, não sabe conversar", demonstrando um certo sentimento de rejeição e discriminação à condição do idoso, percebido por eles tanto no meio familiar como no social. As palavras da IF1 expressam essa representação: "a minha família acha que eu não sou nada, para eles eu sou sozinha no meio do mundo". O relato que se segue do IM3 mostra a forma mais extremada de abandono por parte da família e o desespero do idoso, "minha família me abandonou. Eu que lavo e passo a minha roupa, faço a minha comida, forro minha cama, tomo meu banho, costuro alguma roupa. (...) e tenho que andar devagar para não tomar "carão". Lá eu sou pior que um estranho (...) o que me deixa desgostoso. Tem dia que penso até em me enfocar, já pensei diversas vezes em me enfocar, já guardei até chumbinho para tomar, mas não tomei. Minha vida é meio triste. Já parei de fumar umas dez vezes, mas volto. Fico pensando que quando eu tiver sem poder me levantar quem é que vai fazer uma comida, um chá para mim? Quem vai lavar minha roupa? Vivo sozinho. Ninguém me ajuda, nem um filho". (b) Quanto à Saúde A Tabela 4 mostra a percepção dos idosos entrevistados a respeito de seu estado de saúde frente ao atendimento prestado nas unidades de saúde e aos cuidados dados pelos familiares, levando em conta que todos os idosos entrevistados têm alguma doença crônica.
Tabela 4 Como o Idoso Percebe seu
Estado de Saúde Frente ao
Vários idosos relatam um convívio conflituoso com seus parentes, o que contribui, segundo eles, para prolongar ou piorar seu estado de saúde, no sentido de que os conflitos vividos em casa "é que descontrolam a pressão arterial e os deixam mais nervosos e angustiados". Neste sentido, IM2 nos deu o seguinte depoimento: "Tem hora que a gente fica assim, um pouco contrariado (...) a gente se descontrola porque às vezes a pessoa recebe palavras que não é para escutar e a mente da gente já viu... me agito um pouco e a pressão sobe". Ainda neste sentido, o relato da IF2 ilustra bem o sentimento angústia que carrega: "a minha filha não ta com anda, a minha filha que me trata como se eu fosse uma à-toa. Com ela eu me sinto desgostosa (...) eu falo para ela: você podia entender que eu tomo essa insulina, não posso ter raiva, não posso ter contrariedade, mas você procura me contrariar". Os cuidados prestados na unidade de saúde aos idosos, são vistos como bons, embora não tenham um atendimento que os priorize. IM6 no seu relato disse que considera que o atendimento era bom: "Porque que não fosse isso, eu também não existia porque já tive várias vezes internado (...) o ano passado eu fiquei livre, graças a Deus, até hoje! Graças à medicina". Em outro relato IF5 disse: "todos os médicos toda vida me deu atenção. Qualquer coisa que eu tiver aqui, a agente de saúde vai lá (posto de saúde) e eles vem bater na minha porta". IF6 tem uma boa impressão dos atendimentos que recebe; com relação a isso ela disse: "aqui (no posto) eles tratam bem, dão aquela palestra bonita que eu gosto". Apesar da presente satisfação quanto ao atendimento prestados nos postos de saúde, tivemos relatos de alguns idosos de que, algumas vezes, foram tratados com desrespeito. Como pode ser observado na fala de IM6 que deu o seguinte depoimento: "estava internado, o médico vinha não me examinava nem nada e era para eu fazer o exame (...) Aí, eu lembrei a ele. Pra que eu fui lembrar! Aí, ele ficou bravo comigo". No relato de IF1: "... o Dr. I. (...) a gente chega lá ele não dá um bom dia, aí a gente logo repara (...) Ele é muito do ignorante. Ele me desculpe, mas é". IF4 reclamou do conflito de orientação dada pelos médicos, a respeito do medicamento: "a Doutora disse, a senhora vai parar os remédios dele (outro médico) e vai tomar os meus. Ai, eu digo doutora, e como é que fica? Doutora, o da senhora é de Diabetes, o dele é de pressão. Ai, eu voltei e contei, doutor, a doutora mandou parar o seu e tomar o dela. Ai, ele disse: a senhora vai parar o dela e tomar os meus. Ai, eu digo. É melhor dar as caixas ou jogar?. Eu não tomo de nenhum! Ou! Como é que vai ficar nisso?!" IM3 disse ter sido desrespeitado na fila de espera do atendimento no posto de saúde: "eu mesmo estava na fila desde 8h:30min., esperando a minha vez para ser atendido, quando chegou a minha vez foi necessário colocar uma moça na minha frente". Quanto aos cuidados familiares, percebem ser negligenciados e abandonados pelos mesmos: IF2 relata sobre da falta de alguém que possa lhe dar uma assistência para ser operada: "era para eu me operar, mas como eu posso me operar sem ter quem cuide de mim, quem fique comigo (...) não tenho ninguém para fazer um mingau nem nada" (...) não posso dizer que tenho apoio da minha família (...) Minha família é nada, me jogou no hospital; quando eu melhorei eu vim para cá". No relato de IF1: "me tratam com ignorância, só não vem em cima de me porque sou mulher e meto o cacete, lasco mesmo. Se eu fizesse molinha até apanhado eu tinha". Há caso também em que o idoso reconhece que ele não é só a vítima dos maus-tratos, mas percebe-se também como causador. O IM1 ao contar sua história de alcoolismo diz: "eu bebia muito, judiava muito, maltratei muito minha mulher e meus familiares, sendo assim, não podia ter um retorno bom"". Representações sociais dos profissionais de saúde frente à situação dos idosos (a) Quanto à família A tabela 5 mostra como os profissionais de saúde percebem o relacionamento do idoso como seus familiares.
Tabela 5 Como os Profissionais
de Saúde Percebem o Relacionamento
Para os profissionais de saúde, muitos idosos são maltratados, abandonados, descuidados em relação à saúde desses pacientes, bem como agredidos verbalmente pelos seus familiares. Neste sentido, o relato do PS4 fala da sua percepção a respeito de como a agressão ocorre no meio familiar: "a agressão eu acredito que não seja só a agressão física. Você agride muito mais com a ausência. Verbalmente (...) são os maus-tratos crônicos pela família, na ordem do banho, da alimentação, maus-tratos morais, dizendo liberdades com eles, dizendo que ele não faz nada". Reforçando esta idéia, o PS3 relatou como ocorre o abandono: "se dá desde esta parte física de você abandonar e não tratar o corpo dele, já que ele não pode se cuidar sozinho, como a parte psicológica". A estes tipos de negligências o PS6 vai chamar de "maus-tratos crônico, de convívio(...) Os maus-tratos que eu chamo crônico é o do convívio deles do dia-a-dia mesmo; como deixar de dar banho, dar almoço fora do horário". Ratificando este depoimento, PS4 supõem que os maus-trados e negligência tendem a aumentar, se "for acamado ou se tiver algum déficit, pior ainda. Aí são maltratados mesmo, já que não se têm cuidados higiênicos, nem com sua alimentação"; segundo este entrevistado, isto se dá porque "geralmente quando eles chegam nesta faixa etária são esquecidos pela família, são maltratados, se tornam um estorvo em casa, por tudo isso, sendo assim, quem tem dinheiro isola, bota num asilo ou numa instituição e quem não têm dinheiro, isola dentro de casa mesmo". A carência afetiva é outra questão levantada pelos profissionais entrevistados. Segundo eles, os idosos são percebidos como sendo pessoas carentes de atenção, carinho e afeto, além de serem tristes e se sentirem solitárias: "uma pessoa muito carente, e muito carente na parte dos seus sentimentos, das suas emoções (...) ele é um carente emocional acima de tudo" (PS6). Além das carências afetivas também a precária situação financeira é citada pelos profissionais de saúde, visto que esses pacientes idosos são pessoas de baixa renda, sendo, em muitos casos, a única pessoa com fonte de renda na família. PS3 nos mostra a seguinte situação: "são pessoas que sustentam a família, pois em muitos casos a aposentadoria é a única fonte de renda na família, sendo assim o idoso é explorado, o dinheiro que poderia ser usado para comprar alimento para ele é usado pra outras coisas". PS7 expressa a questão do abuso financeiro, em que o idoso não usufrui o seu dinheiro, pois segundo ele: "a família recebe e gasta em outra coisa, e ela fica na necessidade". De forma bem parecida o PS8 vai dizer que: "existe o aproveitamento. Os parentes que ficam cuidando dos idosos pra tomar conta da aposentadoria dele". Um dado que merece destaque é o fato dos profissionais de saúde perceberem os familiares, incluindo filhos e netos, como sendo os principais causadores de maus-tratos, abuso e abandono contra o idoso. PS3 verbalizou o seguinte: "são os familiares, com certeza, porque o próprio abandono já é uma agressão, porque todo o contato familiar, o vinculo de família que deve permanecer até os dias de vida". PS2 diz que: "são os ausentes geralmente a maior parte é de filhos (...) normalmente, o abandono familiar mexe muito com qualquer pessoa". Relatos diversos enfatizaram que os idosos são sobrecarregados nas atividades domésticas, pois são designados a realizar tarefas que vão desde os serviços do lar até os cuidados com netos. Com relação a esta questão, PS3 mostra: "as filhas precisam trabalhar e como não tem com quem deixar seus filhos encubem suas mães para assumir tal responsabilidade". Para ele, o idoso é: "obrigado a tomar conta destas crianças". PS5 diz que: "para lidar com o idoso tem que ter muita paciência tem que se dedicar, pois ele requer muita atenção(...) Nem todo mundo está preparado para dá esta atenção que ele precisa tanto. Principalmente os familiares que é quem convive direto com ele". (b) Quanto ao atendimento em saúde Os relatos dos oito profissionais da saúde informam que a população idosa assistida nas unidades de saúde apresenta patologias crônicas, tais como: diabetes, hipertensão, problemas cardíacos, reumatismos entre outras enfermidades que são mais comuns entre os idosos, requerendo acompanhamento, orientação e monitoramento constante por parte dos serviços de saúde, já que se trata de enfermidades que não têm cura, mas que podem e devem ser mantidas sobre controle. Mas, o relato de PS1 ilustra o tipo de atendimento que é destinado aos idosos nas unidades de saúde: "O tratamento que existe é aquele que o idoso chega na fila e tem preferência, com mais de 60 anos (...) não existe uma atenção priorizada para o idoso a não ser pelo já falado, independente a gente atende; agora dependendo das condições físicas a gente acelera o atendimento e prioriza o que ele precisa". Muitos dos profissionais de saúde relataram perceber os idosos como sendo pessoas poliqueixosas e somatizadoras. Pessoas que reclamam excessivamente de dores pelo corpo, ou ainda que desenvolvem doença por conta de problemas emocionais. Vejamos o que diz relato PS6 a este respeito: "uma queixa principal desta clientela são dores no corpo todo, que é como eles dizem: o reumatismo dos velhos, só que não é verdade, é a somatização dos sentimentos deles da tristeza, da angústia, a própria pressão alta é uma somatização de emoções presas, de raivas, de se sentir impotentes". Reforçando esta mesma idéia, mas enfocando a idéia da necessidade que o idoso teria de chamar a atenção, o PS4 vai dizer: "o idoso já costuma somatizar, pois às vezes ele quer chamar a atenção através de patologias". Sendo assim, o PS3 expressa que isto só acontece porque o idoso não tem com quem conversar, desta forma ele: "vem pra unidade é mais procurando alguém pra conversar do que doença às vezes procura apoio amigo pra conversa e a doença fica em segundo plano". O PS1 ratifica esta informação declarando que o idoso: "procura a gente pra conversar, quer ajuda, quer participar. Ia se sentindo isolado aí procura a unidade de saúde por toda essas coisas". Análise dos resultados Os relatos feitos pelos idosos indicam que eles vivenciam sentimentos de descaso frente aos cuidados e tratamento que seus familiares poderiam lhes prestar. Sentimentos negativos, como raiva e revolta com relação à família foram evidentes. Importante parcela das pessoas entrevistadas alegou ser ruim o tratamento que recebe de seus familiares; muitos afirmam que são desrespeitados, abandonados, isolados, enfim são esquecidos pela família. Declarações deste tipo ilustram bem o sentimento de revolta evidenciado nos discursos dos idosos com relação a seus parentes. Estes relatos nos fazem supor que a percepção do idoso é de que seus parentes não lhes dão atenção ou carinho. Chegam a perceber algumas atitudes de descaso como conseqüência de seus atos anteriores, como o caso da bebida, reivindicando para si uma culpabilidade duvidosa, no sentido de isentar os familiares de maiores responsabilidades sobre os maus-tratos. Para eles, seus parentes os percebem como sendo pessoas sem muito valor, sem importância para as realizações sociais e familiares. Isso por sua vez, os fazem se sentir rejeitados. Mostraram que os idosos estão demonstrando um elevado índice de reprovação para a forma como a sua família e sociedade os tratam, conscientes da condição que estão vivenciando, embora não se tenha observado qualquer esforço para se organizar, em seus grupos de idosos ou de saúde que freqüentam, e construir caminhos para melhorar tais condições adversas impostas. Relatos diversos evidenciam situação de impotência do idoso e a condição de negligência à qual eles estão sujeitos. Nas entrevistas com doentes crônicos, ficou constatado que sua necessidade de cuidado e atenção especial com dietas especificas, bem como medicação no momento certo. Entretanto, há relatos de idosos mostrando que são entregues à própria sorte pelos familiares e tendo que se autocuidar; trata-se de situação delicada e que deve ser abordada com a devida atenção quando os idosos apresentam limitações de natureza motora ou cognitiva. Essa condição é resumida em termos das palavras explicitadas por um profissional de saúde (PS4): "eu vejo os idosos como pessoas revoltadas, amargas, cansadas até da própria vida". Foi relevante a freqüência com que foram utilizadas palavras como "ausentes", por parte dos profissionais de saúde, no lugar de agressores, ou seja, palavras que talvez não pareçam tão "fortes", podendo ser um demonstrativo de que ainda não se tem a plena noção de que o idoso sofre maus-tratos quando é negligenciada a atenção de que necessita. As declarações dadas pelos profissionais de saúde revelam que, possivelmente, os serviços de saúde pública ainda não promovem um atendimento digno aos idosos, embora se perceba certo avanço nos serviços oferecidos nas suas unidades de saúde, uma vez que o idoso que chega até estas unidades sem atendimento preferencial. Eles participam do acolhimento como qualquer outra pessoa, tendo um atendimento priorizado a depender de sua necessidade. A vinculação do agente de saúde à equipe do PSF evidencia, nos relatos, ser uma parceria que está dando certo nas comunidades que vêm sendo assistidas por eles. O Programa de Saúde da Família, embora não atenda especificamente o idoso, mas sim à família como um todo, tem tido sucesso, segundo os relatos obtidos, especialmente na representação que o idoso tem desse atendimento à sua saúde. Dado o exposto, o avanço desse programa tem permitido aos idosos, como também à família, um atendimento mais rápido e eficaz, já que há, por parte da equipe de saúde um controle maior do estado de saúde e de doença do cidadão, por meio da visita domiciliar e acompanhamento do tratamento, agendamento de consulta, reunião em grupo de idosos, dentre outros serviços. Entretanto, verifica-se ainda, a necessidade de um programa direcionado ao idoso, como aponta os próprios profissionais. O testemunho do PS4 revela esta carência: "a geriatria não é uma área que me agrada muito, porque você tem que ter muita paciência, disponibilidade de tempo tem que gostar mesmo da geriatria, mas eu tento fazer o possível para atender o idoso." Considerações finais A análise dos dados permitiu considerar a possibilidade de que as situações de maus tratos com o idoso são mais freqüentes quando estes são doentes crônicos, convivem com muitos parentes, são detentores da única fonte de renda familiar e quando não têm uma vida ativa. Foram evidenciados o abandono, o isolamento, a negligência, a exploração financeira e a agressão verbal, até a falta de carinho e atenção, especialmente quanto aos cuidados com a saúde do idoso, o que lhes proporciona, segundo análise dos relatos obtidos, revolta, depressão, desgosto e amargura. A família como base estrutural e social é, entretanto, produto de uma representação social excludente quanto ao idoso, e como tal, tem negligenciado e criado condições propícias para levar o idoso a condições de risco por omissões, descaso, negligencia, especialmente quanto aos cuidados com a saúde, eximindo-se de estimular o idoso a viver, numa violência ao conceito de cidadania. Nesse sentido, na definição de "cidadão", deve-se analisar o papel de construção social de indivíduos, de seres humanos, onde a qualidade política de cada um desses indivíduos, que marca a qualidade política da sociedade, é aqui conceituada. Como defendem Monteiro (1997), dentre inúmeros autores que defendem a construção social da exclusão, a sociedade não é composta de indivíduos, mas o que a constitui é o sistema de suas relações sociais, onde convivem seus indivíduos. Nessa perspectiva, considera-se a importância da formação do ser humano pela e na sociedade, "histórica e socialmente determinados". É relevante, nessa concepção de construção da representação social do idoso, como questão de cidadania, considerar seu viés sociológico, onde apura-se também no plano dos fatos que compõem (e afetam) a vida dos seres humanos. Assim, importa também verificar a cidadania efetivamente percebida pelos segmentos sociais estudados, pois, para além das teorias e normas, está a vida de cada indivíduo que constitui a sociedade. Este estudo revela a existência de idosos que relatam situações de isolamento, abandono, exploração, agressão verbal, descaso e negligência por parte de seus familiares. É fundamental destacar a gravidade dessa situação quando os idosos padecem de limitações motoras ou cognitivas. Também é necessário enfatizar as situações em que idosos são detentores da única fonte de renda familiar. A família, como base estrutural e social, foi apresentada por idosos como geradora de maus tratos, colocando-os em condições de risco especialmente quanto aos cuidados com a saúde, o que se constitui numa violência à cidadania. Os profissionais de saúde fazem relatos que sugerem a confirmação de violência no espaço familiar. Os serviços de saúde também foram apontados por idosos como fontes de maus tratos. Na perspectiva dos profissionais de saúde, o tratamento e atendimento preventivo, de cunho educativo podem ser feitos nas comunidades, principalmente as mais carentes, com o objetivo incrementar ações educativas à família. Programas nesse sentido podem ser sugeridos, centrados, principalmente, nas ações dos agentes de saúde, como também por médicos e enfermeiras que fazem parte do PSF, nos momentos das visitas domiciliares, com a colaboração do profissional de psicologia, que deveria fazer parte da equipe para esse tipo de atendimento, talvez como extensão do PSF - Programa de Saúde na Família, uma vez que atua nas comunidades mais carentes, em Aracaju. Notas *Trabalho originado de pesquisa desenvolvida pelo "Grupo de Estudos sobre o portador e deficiência, a educação especial e o idoso", sob orientação da Profª Maria Stela de Albuquerque Araújo Bergo – Centro de Educação e Ciências Humanas, Departamento de Psicologia, da Universidade Federal de Sergipe.Apoio: CNPq – processo 475472/2001-2. 1Graduação em Psicologia pela Universidade Federal de Sergipe – Departamento de Psicologia. Pesquisador auxiliar do "Grupo de Estudos sobre o portador de deficiência, a educação especial e o idoso". 2Aluno do curso de graduação em Psicologia, Universidade Federal de Sergipe – Departamento de Psicologia. 3Aluna do curso de graduação em Psicologia, Universidade Federal de Sergipe –Departamento de Psicologia. 4Psicóloga, Mestre em Ciências da Motricidade pela UNESP-SP, Doutora em Educação pela USP-SP, Professora e Pesquisadora do Centro de Educação e Ciências Humanas – Departamento de Psicologia, da Universidade Federal de Sergipe. Referências bibliográficas ALTHUSSER, Louis. Posições I. Trad. Carlos Nelson Coutinho et alli. Rio de Janeiro: Graal, 1978. BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. 2ª ed. Lisboa: Editora 70,1997. BERGO, M. S. A. A., SANTOS, E. B. M., ARAGÃO, L. B., ALMEIDA, L. V., CARVALHO, M. M. B. Idosos e a renovação do estudar: universidade para a terceira idade. Revista do Mestrado em Educação da Universidade Federal de Sergipe. NPGED/UFS, v.1, n.4, p.119 - 130, 2002a. BERGO, M. S. A. A., ARAGÃO, L. B., SANTOS, E. B. M., ALMEIDA, L. V., CARVALHO, M. M. B. Apoio aos Idosos para a reinserção na Educação. In: CONGRESSO BRASILEIRO PSICOLOGIA CIÊNCIA E PROFISSÃO, 1. Anais... São Paulo: Fórum de Entidades Nacionais da Psicologia Brasileira, 2002b. BERGO, M. S. A. A., CUNHA, E. F. C., SANTOS, E. B. M., CARVALHO, M. M. B., CRUZ, J.M.O., ARAGÃO, L. B., GOMES, L. O idoso e sua relação com a informática. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 4. Resumos... Aracaju: UFS, 2002c. p.359 – 359. BERGO, M.S.A.A. A Educação e o idoso: perspectivas para novas aprendizagens. In: ENCONTRO DE PESQUISA EM EDUCAÇÃO DA UFPI, 2. Anais... Teresina: EDUFPI, 2002d. BERGO, M. S. A. A., CUNHA, E. F. C., SANTOS, E. B. M., ARAGÃO, L. B., CARVALHO, M. M. B., GOMES, L., CRUZ, J. M. O., ANDRADE, C. Alfabetização de mulheres com a utilização do computador. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 4. Resumos... Aracaju: UFS, 2002e. p.362 – 362 BERGO, M. S. A. A., ANDRADE, C., GOMES, L., CARVALHO, M. M. B., CRUZ, J. M. O., CUNHA, E. F.C.,SANTOS,E.B.M. Incentivo a reinserção do idoso na educação. In: CONGRESSO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 4. Resumos... Aracaju: UFS, 2002f. p.361 – 362. BERGO, M. S. A. A., CUNHA, E. F. C., SAMPAIO, C. S., ALMEIDA, L. V., SILVA, A. S., SOUSA, C. T. Idosos: proposta e possível público-alvo para Universidade da Terceira Idade. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL DE EDUCAÇÃO, 1. Anais... Cianorte, PR: Editora da Universidade Estadual de Maringá, 2001. p.1712 – 1716. BOTH, Agostinho. Gerontologia: educação e longevidade. Passo Fundo: Imperial, 2001. IBGE. Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O idoso no mundo: Disponível em <http://www.ibge.gov.br/ibgeteen/datas/home.html>. Acesso em : 30 ago. 2002. JORDÃO NETO, Antonio. Gerontologia básica. São Paulo: Lemos Editorial, 1997. LEAL, A. A.; MONTEIRO, R. A. S. ; BANDEIRA, K. M. B. A terceira idade: da rejeição familiar à procura de um novo lar.. Belém: Universidade da Amazônia, 1998. p. 34. Disponível em : <http://www.ufba.br/~conpsi/conpsi1999/P150.html>. Acesso em: 24 jul. 2002. MACHADO L.; GOMES R. ; XAVIER E. Meninos do passado: eles não sabiam o que os esperava. Revista Insight Inteligência, ano IV, n. 15, 2001. Disponível em: <http://www.insightnet.com.br/inteligencia/num15/m0315.htm>. Acesso em: 24 jul. 2002. MONTEIRO, M. B. Cada cabeça sua sentença.Oeiras, PT: Celta, 1997. Neri, Anita Liberalesso (org.) Psicologia do envelhecimento: temas selecionados na perspectiva de curso de vida. Campinas,SP: Papirus, 1995. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE (OMS). ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE(OPAS). Resolução CE122.R9, 1998. Saúde das pessoas idosas. S.n t. VELOZ, Maria Cristina Triguero; NASCIMENTO-SCHULZE, Clélia Maria; CAMARGO, Brigido Vizeu. Representações sociais do envelhecimento. Psicol. Reflex. Crit., v.12, n.2, p.479-501, 1999. ISSN 0102-7972.
ABSTRACT This
study aims to verify elder social perceptions about family
carelessness and representations related by health public
professionals concerning attention to elder people. Twelve
senior citizens over sixty, that lives and do cared of
in health units in Aracaju city (Sergipe State, Brasil)
and eight professionals of public health were investigated.
The study identified carelessness and neglects to elder
by families, financial explorations, verbal aggression,
isolation and other neglects, according both professional
and senior citizens interviewed. The investigations concludes
that basic conditions warranted by law about social life
of those peoples is not respected.
Recebido
para publicação em: 03/06/2003 |