No
livro, Oswaldo Giacóia Junior mostra
porque é impossível se colocar
à altura dos principais temas e questões
do nosso tempo sem entender o pensamento
de Nietzsche, um dos pensadores mais provocativos
da filosofia moderna.
Para
Giacóia Junior, o impacto da filosofia
de Nietzsche "advém de sua extraordinária
clarividência". "Ele pressentiu,
em estado de gestação, as
ameaças mais fatais de nosso tempo.
Anteviu o panorama sombrio que poderia advir
do projeto sociopolítico de uma sociedade
de massas. Nietzsche profetizou que a sociedade
ocidental caminhava, desde então,
para um nivelamento por baixo", explica
o autor.
Oswaldo
Giacóia Júnior é professor
de filosofia na Unicamp. Formado em Direito
pela USP, Giacóia é mestre
em Filosofia pela PUC-SP e doutor em Filosofia
pela Freie Uinversität Berlin (Alemanha).
Além de "Nietzsche", Giacóia
é autor de "Pequeno Dicionário
de Filosofia Contemporânea",
"Os Labirintos da Alma" (1997),
"Nietzsche & Para Além de
Bem e Mal" (2002) e "Sonhos e
Pesadelos da Razão Esclarecida"
(2005).
POR
QUE LER NIETZSCHE HOJE
Dentre
os clássicos da filosofia moderna,
Nietzsche talvez seja o pensador mais incômodo
e provocativo. Sua vocação
crítica cortante o levou ao submundo
de nossa civilização, sua
inflexível honestidade intelectual
denunciou a mesquinhez e a trapaça
ocultas em nossos valores mais elevados,
dissimuladas em nossas convicções
mais firmes, renegadas em nossas mais sublimes
esperanças. Essa atitude deriva do
que Nietzsche entendia por filosofia.
Para
ele, filosofar é um ato que se enraíza
na vida e um exercício de liberdade.
O compromisso com a autenticidade da reflexão
exige vigilância crítica permanente,
que denuncia como impostura qualquer forma
de mistificação intelectual.
Por isso, Nietzsche não poupou de
exame nenhum de nossos mais acalentados
artigos de fé. O destino da cultura,
o futuro do ser humano na história,
sempre foi sua obsessiva preocupação.
Por causa dela, submeteu à crítica
todos os domínios vitais de nossa
civilização ocidental: científicos,
éticos, religiosos e políticos.
Nietzsche
é um dos grandes mestres da suspeita,
que denuncia a moralidade e a política
moderna como transformação
vulgarizada de antigos valores metafísicos
e religiosos, numa conjuração
subterrânea que conduz ao amesquinhamento
das condições nas quais se
desenvolve a vida social. Nesse sentido,
ele é um dos mais intransigentes
críticos do nivelamento e da massificação
da humanidade. Para ele, isso era uma conseqüência
funesta da extensão global da sociedade
civil burguesa, tal como esta se configurou
a partir da Revolução Industrial.
Nietzsche
se opõe à supressão
das diferenças, à padronização
de valores que, sob o pretexto de universalidade,
encobre, de fato, a imposição
totalitária de interesses particulares;
por isso, ele é também um
opositor da igualdade entendida como uniformidade.
Assim, denunciou a transformação
de pessoas em peças anônimas
da engrenagem global de interesses e a manipulação
de corações e mentes pelos
grandes dispositivos formadores de opinião.
O
esforço filosófico de Nietzsche
o levou a se confrontar com as grandes correntes
históricas responsáveis pela
formação do Ocidente: a tradição
pagã greco-romana e a judaico-cristã;
e o que resultou da fusão entre as
duas.
Ao
longo desse seu confronto com o conjunto
da herança cultural de nossa tradição,
Nietzsche forjou conceitos e figuras do
pensamento que até hoje impregnam
nosso vocabulário e povoam nosso
imaginário político e artístico.
Tais são, por exemplo, as noções
de Apolo e Dionísio, transformadas
em categorias estéticas, os conceitos
de vontade de poder, além-do-homem
(Übermensch), eterno retorno e niilismo
e a figura da morte de Deus.
É
impossível se colocar à altura
dos principais temas e questões de
nosso tempo sem entender o pensamento de
Nietzsche. Ateísta radical, ele atribui
ao homem a tarefa de se reapropriar de sua
essência e definir as metas de seu
destino. Dele afirma o filósofo Martin
Heidegger: "Nietzsche é o primeiro
pensador que, perante a história
universal pela primeira vez aflorada em
seu conjunto, coloca a pergunta decisiva
e a reflete internamente em toda a sua extensão
metafísica. Essa pergunta reza: como
homem, em sua essência até
aqui, está o homem preparado para
assumir o domínio da terra?"1
Nesse
sentido, Nietzsche é o pensador de
nossas angústias, que não
poupou nenhuma certeza estabelecida --sobretudo
as suas próprias convicções--
e desvendou os mais sinistros labirintos
da alma moderna. Com a paixão que
liga a vida ao pensamento, Nietzsche refletiu
sobre todos os problemas cruciais da cultura
moderna, sobre as perplexidades, os desafios,
as vertigens no fim do século 19.
Dessa sua condição, postado
entre o final e o início de duas
eras, Nietzsche esboçou um quadro
que, em todos os seus matizes, nos concerne
ainda, na passagem a um novo milênio,
em direção a um destino que
ainda não se pode discernir.
A
despeito de sua visão sombria, Nietzsche
tentou ser, ao mesmo tempo, um arauto de
novas esperanças. Sua mensagem definitiva
-- a criação de novos valores,
a instituição de novas metas
para a aventura humana na história--
é também um cântico
de alegria. Essa é uma das razões
pelas quais o estilo de Nietzsche resulta
da combinação paradoxal de
elementos antagônicos: sombra e luz,
agonia e êxtase, gravidade e leveza.
Isso
explica por que, para ele, o riso e a paródia
são operadores filosóficos
inigualáveis: eles permitem reverter
perspectivas fossilizadas. Nietzsche, o
impiedoso crítico das crenças
canônicas, é também
um mestre da ironia. Sua ambição
consiste em tornar superfície o que
é profundidade, restituir a graça
ao peso da seriedade filosófica.
Opositor
ferrenho da dialética socrática,
Nietzsche reedita, no mundo moderno, o gesto
irônico do pai fundador da filosofia
ocidental. Decisivo adversário de
Platão, sua filosofia talvez possa
ser caracterizada como uma inversão
paródica do platonismo. Definindo-se
como o mais intransigente anticristão,
dá, no entanto, à sua autobiografia
intelectual, escrita no final de sua vida,
o título Ecce Homo ("Eis o Homem")
-- expressão empregada por Pilatos
ao apresentar Jesus a seus algozes, pouco
antes da Paixão.
Nietzsche,
o filósofo-artista, um poeta que
só acreditava numa filosofia que
fosse expressão das vivências
genuínas e pessoais, vendo na experiência
estética uma espécie de êxtase
e redenção, é, por
isso mesmo, um precursor da crítica
a um tipo de racionalidade meramente técnica,
fria e planificadora. A despeito da profundidade
e da gravidade das questões com que
se ocupa, sempre as tratou em estilo artístico,
poeticamente sugestivo; só acreditava
na autenticidade de um pensamento que nos
motivasse a dançar. Ele mesmo imagina
sobre sua porta a inscrição:
Moro
em minha própria casa
Nada imitei de ninguém
E ainda ri de todo mestre
Que não riu de si também.2
Sem
extravasar os limites dos livros desta série,
Folha Explica Nietzsche se propõe
a ser uma apresentação geral
do homem e do filósofo Friedrich
Nietzsche. Seu objetivo é fazer com
que o leitor se familiarize com os conceitos,
as figuras e o estilo de Nietzsche --não
para depois encerrá-los em qualquer
câmara da memória, mas sim
para despertar seu interesse e estimulá-lo
a seguir adiante. Aceitar o desafio de Nietzsche
implica, sobretudo, pensar independentemente;
e por isso, às vezes, também
contra Nietzsche.
1
Heidegger, "Wer ist Nietzsches Zarathustra?";
em: Vorträge und Aufsätze. Pfullingen:
Neske Verlag, 1954; p. 102.
2
Epígrafe de A Gaia Ciência;
em: Nietzsche, Obra Incompleta. Trad. Rubens
Rodrigues Torres Filho. Col. Os Pensadores.
São Paulo: Abril Cultural, 1974;
p. 195.
Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u68704.shtml