A
Filosofia entre a Religião
e a Ciência
Os
conceitos da vida e do
mundo que chamamos "filosóficos"
são produto de dois fatores:
um, constituído de fatores
religiosos e éticos herdados;
o outro, pela espécie
de investigação que podemos
denominar "científica",
empregando a palavra em
seu sentido mais amplo.
Os filósofos, individualmente,
têm diferido amplamente
quanto às proporções em
que esses dois fatores
entraram em seu sistema,
mas é a presença de ambos
que, em certo grau, caracteriza
a filosofia.
"Filosofia"
é uma palavra que tem
sido empregada de várias
maneiras, umas mais amplas,
outras mais restritas.
Pretendo empregá-la em
seu sentido mais amplo,
como procurarei explicar
adiante. A filosofia,
conforme entendo a palavra,
é algo intermediário entre
a teologia e a ciência.
Como a teologia, consiste
de especulações sobre
assuntos a que o conhecimento
exato não conseguiu até
agora chegar, mas, como
ciência, apela mais à
razão humana do que à
autoridade, seja esta
a da tradição ou a da
revelação. Todo conhecimento
definido - eu o afirmaria
- pertence à ciência;
e todo dogma quanto ao
que ultrapassa o conhecimento
definido, pertence à teologia.
Mas entre a teologia e
a ciência existe uma Terra
de Ninguém, exposta aos
ataques de ambos os campos:
essa Terra de Ninguém
é a filosofia. Quase todas
as questões do máximo
interesse para os espíritos
especulativos são de tal
índole que a ciência não
as pode responder, e as
respostas confiantes dos
teólogos já não nos parecem
tão convincentes como
o eram nos séculos passados.
Acha-se o mundo dividido
em espírito e matéria?
E, supondo-se que assim
seja, que é espírito e
que é matéria? Acha-se
o espírito sujeito à matéria,
ou é ele dotado de forças
independentes? Possui
o universo alguma unidade
ou propósito? Está ele
evoluindo rumo a alguma
finalidade? Existem realmente
leis da natureza, ou acreditamos
nelas devido unicamente
ao nosso amor inato pela
ordem? É o homem o que
ele parece ser ao astrônomo,
isto é, um minúsculo conjunto
de carbono e água a rastejar,
impotentemente, sobre
um pequeno planeta sem
importância? Ou é ele
o que parece ser a Hamlet?
Acaso é ele, ao mesmo
tempo, ambas as coisas?
Existe uma maneira de
viver que seja nobre e
uma outra que seja baixa,
ou todas as maneiras de
viver são simplesmente
inúteis? Se há um modo
de vida nobre, em que
consiste ele, e de que
maneira realizá-lo? Deve
o bem ser eterno, para
merecer o valor que lhe
atribuímos, ou vale a
pena procurá-lo, mesmo
que o universo se mova,
inexoravelmente, para
a morte? Existe a sabedoria,
ou aquilo que nos parece
tal não passa do último
refinamento da loucura
Tais questões não encontram
resposta no laboratório.
As teologias têm pretendido
dar respostas, todas elas
demasiado concludentes,
mas a sua própria segurança
faz com que o espírito
moderno as encare com
suspeita. 0 estudo de
tais questões, mesmo que
não se resolva esses problemas,
constitui o empenho da
filosofia.
Mas
por que, então, - poderíeis
perguntar - perder tempo
com problemas tão insolúveis?
A isto, poder-se-ia responder
como historiador ou como
indivíduo que enfrenta
o terror da solidão cósmica.
A resposta do historiador,
tanto quanto me é possível
dá-la, aparecerá no decurso
desta obra. Desde que
o homem se tornou capaz
de livre especulação,
suas ações, em muitos
aspectos importantes,
têm dependido de teorias
relativas ao mundo e á
vi a humana, relativas
ao bem e ao mal. Isto
é tão verdadeiro em nossos
dias como em qualquer
época anterior. Para compreender
uma época ou uma nação,
devemos compreender sua
filosofia e, para que
compreendamos sua filosofia,
temos de ser, até certo
ponto, filósofos. Há uma
relação causal recíproca.
As circunstâncias das
vidas humanas contribuem
muito para determinar
a sua filosofia, mas,
inversamente, sua filosofia
muito contribui para determinar
tais circunstâncias. Essa
ação mútua, através dos
séculos, será o tema das
páginas seguintes.
Há,
todavia, uma resposta
mais pessoal. A ciência
diz-nos o que podemos
saber, mas o que podemos
saber é muito pouco e,
se esquecemos quanto nos
é impossível saber, tornamo-nos
insensíveis a muitas coisas
sumamente importantes.
A teologia, por outro
lado, nos induz à
crença dogmática de que
temos conhecimento de
coisas que, na realidade,
ignoramos e, por isso,
gera uma espécie de insolência
impertinente com respeito
ao universo. A incerteza,
na presença de grandes
esperanças e receios,
é dolorosa, mas temos
de suportá-la, se quisermos
viver sem o apoio de confortadores
contos de fadas, Não devemos
também esquecer as questões
suscitadas pela filosofia,
ou persuadir-nos de que
encontramos, para as mesmas,
respostas indubitáveis.
Ensinar a viver sem essa
segurança e sem que se
fique, não obstante, paralisado
pela hesitação, é talvez
a coisa principal que
a filosofia, em nossa
época, pode proporcionar
àqueles que a estudam.
A
filosofia, ao contrário
do que ocorreu com a teologia
, surgiu, na Grécia, no
século VI antes de Cristo.
Depois de seguir o seu
curso na antigüidade,
foi de novo submersa pela
teologia quando surgiu
o Cristianismo e Roma
se desmoronou. Seu segundo
período importante, do
século YI ao século XIV,
foi dominado pela Igreja
Católica, com exceção
de alguns poucos e grandes
rebeldes, como, por exemplo,
o imperador Frederico
II (1195-1250). Este período
terminou com as perturbações
que culminaram na Reforma.
O terceiro período, desde
o século XVII até hoje,
é dominado, mais do que
os períodos que o precederam,
pela ciência. As crenças
religiosas tradicionais
mantêm sua importância,
mas se sente a necessidade
de que sejam justificadas,
sendo modificadas sempre
que a ciência torna imperativo
tal passo. Poucos filósofos
deste período são ortodoxos
do ponto de vista católico,
e o Estado secular adquire
mais importância em suas
especulações do que a
Igreja.
A
coesão social e a liberdade
individual, como a religião
e a ciência, acham-se
num estado de conflito
ou difícil compromisso
durante todo este período.
Na Grécia, a coesão social
era assegurada pela lealdade
ao Estado-Cidade; o próprio
Aristóteles, embora, em
sua época, Alexandre estivesse
tornando obsoleto o Estado-Cidade,
não conseguia ver mérito
algum em qualquer outro
tipo de comunidade. Variava
grandemente o grau em
que a liberdade individual
cedia ante seus deveres
para com a Cidade. Em
Esparta, o indivíduo tinha
tão pouca liberdade como
na Alemanha ou na Rússia
modernas; em Atenas, apesar
de perseguições ocasionais,
os cidadãos desfrutaram,
em seu melhor período,
de extraordinária liberdade
quanto a restrições impostas
pelo Estado. 0 pensamento
grego, até Aristóteles,
é dominado por uma devoção
religiosa e patriótica
á Cidade; seus sistemas
éticos são adaptados às
vidas dos cidadãos e contêm
grande elemento político.
Quando os gregos se submeteram,
primeiro aos macedônios
e, depois, aos romanos,
as concepções válidas
em seus dias de independência
não eram mais aplicáveis.
Isto produziu, por um
lado, uma perda de vigor,
devido ao rompimento com
as tradições e, por outro
lado, uma ética mais individual
e menos social. Os estóicos
consideravam a vida virtuosa
mais como uma relação
da alma com Deus do que
como uma relação do cidadão
com o Estado. Prepararam,
dessa forma, o caminho
para o Cristianismo, que,
como o estoicismo, era,
originalmente, apolítico,
já que, durante os seus
três primeiros séculos,
seus adeptos não tinham
influência no governo.
A coesão social, durante
os seis séculos e meio
que vão de Alexandre a
Constantino, f oi assegurada,
não pela filosofia nem
pelas antigas fidelidades,
mas pela força - primeiro
a força dos exércitos
e, depois, a da administração
civil. Os exércitos romanos,
as estradas romanas, a
lei romana e os funcionários
romanos, primeiro criaram
e depois preservaram um
poderoso Estado centralizado.
Nada se pode atribuir
à filosofia romana, já
que esta não existia.
Durante
esse longo período, as
idéias gregas herdadas
da época da liberdade
sofreram um processo gradual
de transformação. Algumas
das velhas idéias, principalmente
aquelas que deveríamos
encarar como especificamente
religiosas, adquiriram
uma importância relativa;
outras, mais racionalistas,
foram abandonadas, pois
não mais se ajustavam
ao espírito da época.
Desse modo, os pagãos
posteriores foram se adaptando
á tradição grega, até
esta poder incorporar-se
na doutrina cristã.
O
Cristianismo popularizou
uma idéia importante,
já implícita nos ensinamentos
dos estóicos, mas estranha
ao espírito geral da antigüidade,
isto é, a idéia de que
o dever do homem para
com Deus é mais imperativo
do que o seu dever para
com o Estado.l A opinião
de que "devemos obedecer
mais a Deus que ao homem",
como Sócrates e os Apóstolos
afirmavam, sobreviveu
à conversão de Constantino,
porque os primeiros cristãos
eram arianos ou se sentiam
inclinados para o arianismo.
Quando os imperadores
se tornaram ortodoxos,
foi ela suspensa temporariamente.
Durante o Império Bizantino,
permaneceu latente, bem
como no Império Russo
subseqüente, o qual derivou
do Cristianismo de Constantinopla.2
Mas no Ocidente, onde
os imperadores católicos
foram quase imediatamente
substituídos ( exceto
em certas partes da Gália
) por conquistadores bárbaros
heréticos, a superioridade
da lealdade religiosa
sobre a lealdade política
sobreviveu e, até certo
ponto, persiste ainda
hoje.
A
invasão dos bárbaros pôs
fim, por espaço de seis
séculos, à civilização
da Europa Ocidental. Subsistiu,
na Irlanda, até que os
dinamarqueses a destruíram
no século IX. Antes de
sua extinção produziu,
lá, uma figura notável,
Scotus Erigena. No Império
Oriental, a civilização
grega sobreviveu, em forma
dissecada, como num museu,
até à queda de Constantinopla,
em 1453, mas nada que
fosse de importância para
o mundo saiu de Constantinopla,
exceto uma tradição artística
e os Códigos de Direito
Romano de Justiniano.
Durante
o período de obscuridade,
desde o fim do século
V até a metade do século
XI, o mundo romano ocidental
sofreu algumas transformações
interessantes. O conflito
entre o dever para com
Deus e o dever para com
o Estado, introduzido
pelo Cristianismo, adquiriu
o caráter de um conflito
entre a Igreja e o rei.
A jurisdição eclesiástica
do Papa estendia-se sobre
a Itália, França, Espanha,
Grã-Bretanha e Irlanda,
Alemanha, Escandinávia
e Polônia. A princípio,
fora da Itália e do sul
da França foi muito leve
o seu controle sobre bispos
e abades, mas, desde o
tempo de Gregório VII
( fins do século XI ),
tornou-se real e efetivo.
Desde então o clero, em
toda a Europa Ocidental,
formou uma única organização,
dirigida por Roma, que
procurava o poder inteligente
e incansavelmente e, em
geral, vitoriosamente,
até depois do ano 1300,
em seus conflitos com
os governantes seculares.
O conflito entre a Igreja
e o Estado não foi apenas
um conflito entre o clero
e os leigos; foi, também,
uma renovação da luta
entre o mundo mediterrâneo
e os bárbaros do norte.
A unidade da Igreja era
um reflexo da unidade
do Império Romano; sua
liturgia era latina, e
os seus homens mais proeminentes
eram, em sua maior parte,
italianos, espanhóis ou
franceses do sul. Sua
educação, quando esta
renasceu, foi clássica;
suas concepções da lei
e do governo teriam sido
mais compreensíveis para
Marco Aurélio do que para
os monarcas contemporâneos.
A Igreja representava,
ao mesmo tempo, continuidade
com o passado e com o
que havia de mais civilizado
no presente.
O
poder secular, ao contrário,
estava nas mãos de reis
e barões de origem teutônica,
os quais procuravam preservar,
o máximo possível, as
instituições que haviam
trazido as florestas da
Alemanha. O poder absoluto
era alheio a essas instituições,
como também era estranho,
a esses vigorosos conquistadores,
tudo aquilo que tivesse
aparência de uma legalidade
monótona e sem espírito.
O rei tinha de compartilhar
seu poder com a aristocracia
feudal, mas todos esperavam,
do mesmo modo, que lhes
fosse permitido, de vez
em quando, uma explosão
ocasional de suas paixões
em forma de guerra, assassínio,
pilhagem ou rapto. É possível
que os monarcas se arrependessem,
pois eram sinceramente
piedosos e, afinal de
contas, o arrependimento
era em si mesmo uma forma
de paixão. A Igreja, porém,
jamais conseguiu produzir
neles a tranqüila regularidade
de uma boa conduta, como
a que o empregador moderno
exige e, às vezes, consegue
obter de seus empregados.
De que lhes valia conquistar
o mundo, se não podiam
beber, assassinar e amar
como o espírito lhes exigia?
E por que deveriam eles,
com seus exércitos de
altivos, submeter-se ás
ordens de homens letrados,
dedicados ao celibato
e destituídos de forças
armadas? Apesar da desaprovação
eclesiástica, conservaram
o duelo e a decisão das
disputas por meio das
armas, e os torneios e
o amor cortesão floresceram.
Às vezes, num acesso de
raiva, chegavam a matar
mesmo eclesiásticos eminentes.
Toda
a força armada estava
do lado dos reis, mas,
não obstante, a Igreja
saiu vitoriosa. A Igreja
ganhou a batalha, em parte,
porque tinha quase todo
o monopólio do ensino
e, em parte, porque os
reis viviam constantemente
em guerra. uns com os
outros; mas ganhou-a,
principalmente, porque,
com muito poucas exceções,
tanto os governantes como
ó povo acreditavam sinceramente
que a Igreja possuía as
chaves do céu. A Igreja
podia decidir se um rei
devia passar a eternidade
no céu ou no inferno;
a Igreja podia absolver
os súditos do dever de
fidelidade e, assim, estimular
a rebelião. Além disso,
a Igreja representava
a ordem em lugar da anarquia
e, por conseguinte, conquistou
o apoio da classe mercantil
que surgia. Na Itália,
principalmente, esta última
consideração foi decisiva.
A
tentativa teutônica .de
preservar pelo menos uma
independência. parcial
da Igreja manifestou-se
não apenas na política,
mas, também, na arte,
no romance, no cavalheirismo
e na guerra. Manifestou-se
muito pouco no mundo intelectual,
pois o ensino se achava
quase inteiramente nas
mãos do clero. A filosofia
explícita da Idade Média
não é um espelho exato
da época, mas apenas do
pensamento de um grupo.
Entre os eclesiásticos,
porém - principalmente
entre os frades franciscanos
- havia alguns que, por
várias razões, estavam
em desacordo com o Papa.
Na Itália, ademais, a
cultura estendeu-se aos
leigos alguns séculos
antes de se estender até
ao norte dos Alpes. Frederico
II, que procurou fundar
uma nova religião, representa
o extremo da cultura antipapista;
Tomás de Aquino, que nasceu
no reino de Nápoles, onde
o poder de Frederico era
supremo, continua sendo
até hoje o expoente clássico
da filosofia papal. Dante,
cerca de cinqüenta anos
mais tarde, conseguiu
chegar a uma síntese,
oferecendo a única exposição
equilibrada de todo o
mundo ideológico medieval.
Depois
de Dante, tanto por motivos
políticos como intelectuais,
a síntese filosófica medieval
se desmoronou. Teve ela,
enquanto durou, uma qualidade
de ordem e perfeição de
miniatura: qualquer coisa
de que esse sistema se
ocupasse, era colocada
com precisão em relação
com o que constituía o
seu cosmo bastante limitado.
Mas o Grande Cisma, o
movimento dos Concílios
e o papado da renascença
produziram a Reforma,
que destruiu a unidade
do Cristianismo e a teoria
escolástica de governo
que girava em torno do
Papa. N o período da Renascença,
o novo conhecimento, tanto
da antigüidade como da
superfície da terra, fez
com que os homens se cansassem
de sistemas, que passaram
a ser considerados como
prisões mentais. A astronomia
de Copérnico atribuiu
á terra e ao homem uma
posição mais humilde do
que aquela que haviam
desfrutado na teoria de
Ptolomeu. O prazer pelos
f atos recentes tomou
o lugar, entre os homens
inteligentes, do prazer
de raciocinar, analisar
e construir sistemas.
Embora a Renascença, na
arte, conserve ainda uma
determinada ordem, prefere,
quanto ao que diz respeito
ao pensamento, uma ampla
e fecunda desordem. Neste
sentido, Montaigne é o
mais típico expoente da
época.
Tanto
na teoria política como
em tudo o mais, exceto
a arte, a ordem sofre
um colapso. A Idade Média,
embora praticamente turbulenta,
era dominada, em sua ideologia,
pelo amor da legalidade
e por uma teoria muito
precisa do poder político.
Todo poder procede, em
última análise, de Deus;
Ele delegou poder ao Papa
nos assuntos sagrados,
e ao Imperador nos assuntos
seculares. Mas tanto o
Papa como o Imperador
perderam sua importância
durante o século XV. O
Papa tornou-se simplesmente
um dos príncipes italianos,
empenhado no jogo incrivelmente
complicado e inescrupuloso
do poder político italiano.
As novas monarquias nacionais
na França, Espanha e Inglaterra
tinham, em seus próprios
territórios, um poder
no qual nem o Papa nem
o Imperador podiam interferir.
O Estado nacional, devido,
em grande parte, à pólvora,
adquiriu uma influência
sobre o pensamento e o
modo de sentir dos homens,
como jamais exercera antes
- influência essa que,
progressivamente, destruiu
o que restava da crença
romana quanto à unidade
da civilização.
Essa
desordem política encontrou
sua expressão no Príncipe,
de Maquiavel. Na ausência
de qualquer princípio
diretivo, a política se
transformou em áspera
luta pelo poder. O Príncipe
dá conselhos astutos quanto
à maneira de se participar
com êxito desse jogo.
O que já havia acontecido
na idade de ouro da Grécia,
ocorreu de novo na Itália
renascentista: os freios
morais tradicionais desapareceram,
pois eram considerados
como coisa ligada à superstição;
a libertação dos grilhões
tornou os indivíduos enérgicos
e criadores, produzindo
um raro florescimento
do gênio mas a anarquia
e a traição resultantes,
inevitavelmente, da decadência
da moral, tornou os italianos
coletivamente impotentes,
e caíram, como os gregos,
sob o domínio de nações
menos civilizadas do que
eles, mas não tão destituídas
- de coesão social.
Todavia,
o resultado foi menos
desastroso do que no caso
da Grécia, pois as nações
que tinham acabado de
chegar ao poder, com exceção
da Espanha, se mostravam
capazes de tão grandes
realizações como o havia
sido a Itália.
Do
século XVI em diante,
a história do pensamento
europeu é dominada pela
Reforma. r1 Reforma foi
um movimento complexo,
multiforme, e seu êxito
se deve a numerosas causas.
De um modo geral, foi
uma revolta das nações
do norte contra o renovado
domínio de Roma. A religião
fora a força que subjugara
o Norte, mas a religião,
na Itália, decaíra: o
papado permanecia como
uma instituição, extraindo
grandes tributos da Alemanha
e da Inglaterra, mas estas
nações, que eram ainda
piedosas, não podiam sentir
reverência alguma para
com os Bórgias e os Médicis,
que pretendiam salvar
as almas do purgatório
em troca de dinheiro,
que esbanjavam no luxo
e na imoralidade. Motivos
nacionais motivos econômicos
e motivos, religiosos
conjugaram-se para fortalecer
a revolta contra Roma.
Além disso, os príncipes
logo perceberam que, se
a Igreja se tornasse,
em seus territórios, simplesmente
nacional, eles seriam
capazes de dominá-la,
tornando-se, assim, muito
mais poderosos, em seus
países, do que jamais
o haviam sido compartilhando
o seu domínio com o Papa.
Por todas essas razões,
as inovações teológicas
de Lutero foram bem recebidas,
tanto pelos governantes
como pelo povo, na maior
parte da Europa Setentrional.
A
Igreja Católica procedia
de três fontes. Sua história
sagrada era judaica; sua
teologia, grega, e seu
governo e leis canônicas,
ao menos indiretamente,
romanos. A Reforma rejeitou
os elementos romanos,
atenuou os elementos gregos
e fortaleceu grandemente
os elementos judaicos.
Cooperou, assim, com as
forças nacionalistas que
estavam desfazendo a obra
de coesão nacional que
tinha sido levada a cabo
primeiro pelo Império
Romano e, depois, pela
Igreja Romana. Na doutrina
católica, a revelação
divina não terminava na
sagrada escritura, mas
continuava, de era em
era, através da Igreja,
à qual, pois, era dever
do indivíduo submeter
suas opiniões pessoais.
Os protestantes, ao contrário,
rejeitaram a Igreja como
veículo da revelação divina;
a verdade devia ser procurada
unicamente na Bíblia,
que cada qual podia interpretar
à sua maneira. Se os homens
diferissem em sua interpretação,
não havia nenhuma autoridade
designada pela divindade
que resolvesse tais divergências.
Na prática, o Estado reivindicava
o direito que pertencera
antes à Igreja - mas isso
era uma usurpação. Na
teoria protestante, não
devia haver nenhum intermediário
terreno entre a alma e
Deus.
Os
efeitos dessa mudança
foram importantes. A verdade
não mais era estabelecida
mediante consulta à autoridade,
mas por meio da meditação
íntima. Desenvolveu-se,
rapidamente, uma tendência
para o anarquismo na política
e misticismo na religião,
o que sempre fora difícil
de se ajustar à estrutura
da ortodoxia católica.
Aconteceu que, em lugar
de um único Protestantismo,
surgiram numerosas seitas;
nenhuma filosofia se opunha
à escolástica, mas havia
tantas filosofias quantos
eram os filósofos. Não
havia, no século XIII,
nenhum Imperador que se
opusesse ao Papa, mas
sim um grande número de
reis heréticos. O resultado
disso, tanto no pensamento
como na literatura, foi
um subjetivismo cada vez
mais profundo, agindo
primeiro como uma libertação
saudável da escravidão
espiritual mas caminhando,
depois, constantemente,
para um isolamento pessoal,
contrário à solidez social.
A
filosofia moderna começa
com Descartes, cuja certeza
fundamental é a existência
de si mesmo e de seus
pensamentos, dos quais
o mundo exterior deve
ser inferido. Isso constitui
apenas a primeira fase
de um desenvolvimento
que, passando por Berkeley
e Kant, chega a Fichte,
para quem tudo era apenas
uma emanação do eu. Isso
era uma loucura, e, partindo
desse extremo, a filosofia
tem procurado, desde então,
evadir-se para o mundo
do senso comum cotidiano.
Com
o subjetivismo na filosofia,
o anarquismo anda de mãos
dadas com a política.
Já no tempo de Lutero,
discípulos inoportunos
e não reconhecidos haviam
desenvolvido a doutrina
do anabatismo, a qual,
durante algum tempo, dominou
a cidade de Wünster. Os
anabatistas repudiavam
toda lei, pois afirmavam
que o homem bom seria
guiado, em todos os momentos,
pelo Espírito Santo, que
não pode ser preso a fórmulas.
Partindo dessas premissas,
chegam ao comunismo e
à promiscuidade sexual.
Foram, pois, exterminados,
após uma resistência heróica.
Mas sua doutrina, em formas
mais atenuadas, se estendem
pela Holanda, Inglaterra
e Estados Unidos; historicamente,
é a origem do "quakerismo".
Uma forma mais feroz de
anarquismo, não mais relacionada
Com a religião, surgiu
no século XIX. Na Rússia,
Espanha e, em menor grau,
na Itália, obteve considerável
êxito, constituindo, até
hoje, um pesadelo para
as autoridades americanas
de imigração. Esta versão
moderna, embora anti-religiosa,
encerra ainda muito do
espírito do protestantismo
primitivo; difere principalmente
dele devido ao fato de
dirigir contra os governos
seculares a hostilidade
que Lutero dirigia contra
os Papas.
A
subjetividade, uma vez
desencadeada, já não podia
circunscrevem-se aos seus
limites, até que tivesse
seguido seu curso. Na
moral, a atitude enfática
dos protestantes, quanto
à consciência individual,
era essencialmente anárquica.
O hábito e o costume eram
tão fortes que, exceto
em algumas manifestações
ocasionais, como, por
exemplo, a de Münster,
os discípulos do individualismo
na ética continuaram a
agir de maneira convencionalmente
virtuosa. Mas era um equilíbrio
precário. O culto do século
XVIII à "sensibilidade"
começou a romper esse
equilíbrio: um ato era
admirado não pelas suas
boas conseqüências, ou
porque estivesse de acordo
com um código moral, mas
devido à emoção que o
inspirava. Dessa atitude
nasceu o culto do herói,
tal como foi manifestado
por Carlyle e Nietzsche,
bem como o culto byroniano
da paixão violenta, qualquer
que esta seja.
O
movimento romântico, na
arte, na literatura e
na política, está ligado
a essa maneira subjetiva
de julgar-se os homens,
não como membros de uma
comunidade, mas como objetos
de contemplação esteticamente
encantadores. Os tigres
são mais belos do que
as ovelhas, mas preferimos
que estejam atrás de grades.
O romântico típico remove
as grades e delicia-se
com os saltos magníficos
com que o tigre aniquila
as ovelhas. Incita os
homens a imaginar que
são tigres e, quando o
consegue, os resultados
não são inteiramente agradáveis.
Contra
as formas mais loucas
do subjetivismo nos tempos
modernos tem havido várias
reações. Primeiro, uma
filosofia de semicompromisso,
a doutrina do liberalismo,
que procurou delimitar
as esferas relativas ao
governo e ao indivíduo.
Isso começa, em sua forma
moderna, com Locke, que
é tão contrário ao "entusiasmo"
- o individualismo dos
anabatistas como à autoridade
absoluta e à cega subserviência
à tradição. Uma rebelião
mais extensa conduz à
doutrina do culto do Estado,
que atribui ao Estado
a posição que o Catolicismo
atribuía à Igreja, ou
mesmo, às vezes, a Deus.
Hobbes, Rousseau e Hegel
representam fases distintas
desta teoria, e suas doutrinas
se acham encarnadas, praticamente,
em Cromwell, Napoleão
e na Alemanha moderna.
O comunismo, na teoria,
está muito longe dessas
filosofias, mas é conduzido,
na prática, a um tipo
de comunidade bastante
semelhante àquela e que
resulta a adoração do
Estado.
Durante
todo o transcurso deste
longo desenvolvimento,
desde 600 anos antes de
Cristo até aos nossos
dias, os filósofos têm-se
dividido entre aqueles
que querem estreitar os
laços sociais e aqueles
que desejam afrouxá-los.
A esta diferença, acham-se
associadas outras. Os
partidários da disciplina
advogaram este ou aquele
sistema dogmático, velho
ou novo, chegando, portanto
a ser, em menor ou maior
grau, hostis à ciência,
já que seus dogmas não
podiam ser provados empiricamente.
Ensinavam, quase invariavelmente,
que a felicidade não constitui
o bem, mas que a "nobreza"
ou o "heroísmo" devem
ser a ela preferidos.
Demonstravam simpatia
pelo que havia de irracional
na natureza humana, pois
acreditavam que a razão
é inimiga da coesão social.
Os partidários da liberdade,
por outro lado, com exceção
dos anarquistas extremados,
procuravam ser científicos,
utilitaristas, racionalistas,
contrários à paixão violenta,
e inimigos de todas as
formas mais profundas
de religião. este conflito
existiu, na Grécia, antes
do aparecimento do que
chamamos filosofia, revelando-se
já, bastante claramente,
no mais antigo pensamento
grego. Sob formas diversas,
persistiu até aos nossos
dias, e continuará, sem
dúvida, a existir durante
muitas das eras vindouras.
É
claro que cada um dos
participantes desta disputa
como em tudo que persiste
durante longo tempo -
tem a sua parte de razão
e a sua parte de equívoco.
A coesão social é uma
necessidade, e a humanidade
jamais conseguiu, até
agora, impor a coesão
mediante argumentos meramente
racionais. Toda comunidade
está exposta a dois perigos
opostos: por um lado,
a fossilização, devido
a uma disciplina exagerada
e um respeito excessivo
pela tradição; por outro
lado, a dissolução, a
submissão ante a conquista
estrangeira, devido ao
desenvolvimento da independência
pessoal e do individualismo,
que tornam impossível
a cooperação. Em geral,
as civilizações importantes
começam por um sistema
rígido e supersticioso
que, aos poucos, vai sendo
afrouxado, e que conduz,
em determinada fase, a
um período de gênio brilhante,
enquanto perdura o que
há de bom na tradição
antiga, e não se desenvolveu
ainda o mal inerente à
sua dissolução. Mas, quando
o mal começa a manifestar-se,
conduz à anarquia e, daí,
inevitavelmente, a uma
nova tirania, produzindo
uma nova síntese, baseada
num novo sistema dogmático.
A doutrina do liberalismo
é uma tentativa para evitar
essa interminável oscilação.
A essência do liberalismo
é uma tentativa no sentido
de assegurar uma ordem
social que não se baseie
no dogma irracional, e
assegurar uma estabilidade
sem acarretar mais restrições
do que as necessárias
à preservação da comunidade.
Se esta tentativa pode
ser bem sucedida, somente
o futuro poderá demonstrá-lo.
Notas
1.
Essa opinião não era desconhecida
em tempos anteriores:
foi exposta, por exemplo,
na Antígona, de Sófocles.
Mas, antes dos estóicos,
eram poucos os que a mantinham.
2.
Eis aí porque o russo
moderno não acha que deva
obedecer mais ao materialismo
dialético do que a Stalin.
In
Russell, B. (1977): História
da Filosofia Ocidental,
Rio de Janeiro: Cia. Editora
Nacional.
Fonte:
http://www.sociologia.de