O
filósofo mais importante do
ciberespaço fala de Napster,
Open Source e budismo, e encara
com esperança um futuro melhor
para a humanidade, em entrevista
exclusiva para o Nova-E.
Por
Fábio Fernandes
Autor
de livros já clássicos
sobre tecnologia e sociedade
como "O Que é o
Virtual?" e "Cibercultura"
(ambos da Ed. 34) e do recém-lançado
"A Conexão Planetária",
em que defende o conceito de
inteligência coletiva
e da evolução
da humanidade segundo as idéias
de Teilhard de Chardin, o filósofo
francês Pierre Lévy
fala, nesta entrevista concedida
com exclusividade para o Nova-E,
das semelhanças entre
Oriente e Ocidente, de mercados
virtuais e de corporações,
mas acima de tudo, de sua esperança
por um futuro melhor para a
humanidade.
Nova-E:
O que o senhor acha das recentes
discussões envolvendo
direitos autorais na Internet
(Napster e Movimento Open Source,
por exemplo)? Estaríamos
vendo o nascer da liberdade
completa de acesso à
informação na
Internet?
Pierre
Lévy: Já existe
um acesso verdadeiramente livre
à informação
na Internet. Um número
enorme de sites, de universidades
e dos governos (para não
falar dos sites de mídias,
de empresas e dos sites pessoais),
oferece uma quantidade impressionante
de informações
muito úteis e absolutamente
gratuitas. A disponibilidade
de informações
grátis na Internet está
aumentando a um ritmo exponencial.
O fato de que esteja havendo
um crescimento de informações
pagas e protegidas pelo direito
do autor não contradiz
a primeira tendência.
Não são coisas
contraditórias, mas complementares.
Os
movimentos open source e de
copyleft representam uma renúncia
à propriedade intelectual
que é voluntária
e regulamentada legalmente.
A finalidade desse movimento
é de levantar todas as
barreiras à cooperação
e aos processos de inteligência
coletiva. Trata-se de uma inovação
importante e positiva.
O
caso do Napster é mais
complexo. Tenho certeza de que
os processos de mutualização
de recursos por intermédio
da rede serão desenvolvidos.
O Napster permitiu que se colocasse
em evidência o poder da
Internet para tais processos.
No entanto, neste caso, não
houve uma renúncia voluntária
à propriedade intelectual,
mas um tangenciamento da lei,
e a vontade dos autores não
foi respeitada. O site do Napster
era centralizado, uma prática
de troca privada tornada pública,
criando um "mercado negro"
onde os direitos dos autores
não eram respeitados.
Acredito que o direito da propriedade
intelectual não deve
ser simplesmente abolido, mas,
ao contrário, refinado,
tornado mais fluido e adaptado
à nova situação.
Não
nos esqueçamos de que
a propriedade intelectual, elaborada
no século dezoito, constituiu
o quadro jurídico que
permitiu a revolução
científica e técnica
dos dois últimos séculos.
Na economia da informação
e do conhecimento, a regulamentação
da propriedade intelectual irá
se tornar uma das principais
tarefas do direito. Essa regulamentação
terá de ser pensada de
modo que a invenção
continue a ser recompensada
e incentivada, por um lado,
e que por outro lado os efeitos
da invenção possam
beneficiar de modo rápido
e fácil à sociedade
como um todo. A velocidade de
nosso aprendizado coletivo dependerá
em grande parte de nossa criatividade
jurídica.
Nova-E:
Um estudante brasileiro publicou
recentemente na Rede
um ensaio que é uma colagem
de textos seus com textos e
haicais zen, demonstrando a
semelhança entre esses
pensamentos. Seu último
livro, A Conexão Planetária,
deixa ainda mais clara uma influência
budista. Qual a sua relação
com as filosofias orientais?
E até que ponto elas
o influenciaram e influenciam
em seus estudos sobre o ciberespaço?
Pierre
Lévy: Os grandes filósofos
e sábios dos séculos
passados, tanto na tradição
ocidental quanto na tradição
oriental, não tinham
vergonha de seguir um caminho
espiritual e ter sua produção
intelectual, e ambos eram muito
vinculados. Eles apresentam,
a meu ver, os exemplos a serem
seguidos. Contudo, é
necessário ressaltar
que os "jogos de linguagem"
experimentados pelas tradições
de sabedoria ou pela intuição
mística da unidade* são
diferentes dos jogos de linguagem
das disciplinas demonstrativas
(como as matemáticas)
ou os da ciência experimental.
Não quero dar a impressão
de que tudo se confunde de maneira
indistinta. Parece-me que o
papel da filosofia é
o de criar pontes, passagens,
traduções entre
diferentes jogos e diferentes
linguagens de conhecimento.
Pessoas como Humberto Maturana,
Francisco Varela, Henri Atlan,
Michel Serres e Edgar Morin
conseguiram obter essa mescla
de maneira rigorosa e convincente.
Para
mim, não existe diferença
fundamental entre "Oriente"
e "Ocidente". O budismo
"oriental" é
muito semelhante ao estoicismo
"ocidental", por exemplo.
As duas filosofias insistem
na importância do instante
e na liberdade do espírito
compreendida como o domínio
de si. Os neoplatônicos
fornecem descrições
da unidade do ser que vão
ao encontro das descrições
feitas pelos místicos
de todas as grandes religiões
universais. Pessoalmente, pratico
diariamente meditação
segundo uma técnica budista
(atenção à
respiração e auto-observação
do corpo-mente). A tradição
judaica da liberdade de interpretação
e de questionamento incessante
sobre o que é a boa lei
também me inspirou muito.
Acredito que existe, em cada
tradição filosófica,
em cada religião, apesar
de todas as diferenças,
uma espécie de núcleo
universal, mas ao mesmo tempo
cada uma delas possui algo de
único, de original, através
do qual enriquece o patrimônio
da humanidade. Resta a cada
um descobrir sua ou suas "famílias
do espírito".
O
conceito budista de interdependência
e o papel central que essa tradição
desempenhou no estudo do funcionamento
do espírito me seduziram
desde cedo. Há muito
tempo penso na sociedade como
um espírito único
(pessoas como Bateson certamente
me influenciaram bastante) e
a descoberta do budismo me inspirou
a continuar nesse caminho.
Nova-E:
Em seu livro Cibercultura, você
divide as relações
entre cidade e ciberespaço
em 4 categorias (analogias,
substituição,
assimilação e
articulação) e
tenta mostrar o que torna a
exploração das
articulações o
futuro mais próspero.
Mas é o mais provável?
Até que ponto a questão
econômica pode interferir?
Pierre
Lévy: Acredito que todas
as direções serão
exploradas, inclusive as boas!
Não acho de modo algum
que as grandes empresas sejam
a ameaça ou o inimigo.
As empresas são dirigidas
por seres humanos que têm
exatamente os mesmos defeitos,
mas também as mesmas
qualidades que os outros seres
humanos. Um governo pode ser
uma ditadura violenta ou uma
democracia sábia. Uma
empresa pode ser exploradora
e poluidora ou favorecer o desenvolvimento
humano e respeitar o meio ambiente.
Acredito que devemos parar de
raciocinar por categorias simples
e mecanicistas e introduzir
a idéia de responsabilidade,
de escolha, de liberdade em
nossos esforços para
compreender as questões
humanas. Na época da
economia do conhecimento e da
globalização,
as empresas inteligentes sabem
que se desenvolverá melhor
quem oferecer serviços
reais e duráveis às
comunidades de clientes, de
parceiros, de investidores e
de colaboradores com as quais
vivem em relação
simbiótica.
Nova-E:
Existe uma corrente ainda muito
popular entre muita gente aqui
– até mesmo internautas
experientes - que diz que a
tendência para os próximos
anos é que – como no
mundo cyberpunk mostrado no
livro Neuromancer, de William
Gibson - apenas as megacorporações
sobrevivam, e que elas poderão
controlar ou mesmo censurar
o conteúdo que circula
na Rede. Esse é um futuro
que pode vir a ocorrer efetivamente,
ou é apenas hype da mídia?
Pierre
Lévy: O mercado virtual
é uma vasta conversação
em um espaço cada vez
mais transparente (veja o Manifesto
Cluetrain ). Sob essas condições,
a reputação e
os serviços realmente
bem executados sobreviverão
sempre. As empresas, sejam grandes
ou pequenas, não são
necessariamente as vilãs.
Quanto
ao movimento atual de fusões
de empresas, ele provavelmente
continuará até
o momento em que não
teremos mais que três
grandes empresas em cada setor
econômico (além
de uma série de pequenas
empresas inovadoras que permanecerão,
sem dúvida, à
margem do sistema). O público
poderá influenciar as
grandes empresas através
de suas compras, realizando
suas compras em uma ou outra,
ou se voltando para as novíssimas
empresas pequenas, comprando
e vendendo suas ações
on line. As grandes empresas
fornecerão uma espécie
de serviços públicos
planetários controlados
pelo mercado virtual e regulamentados
pelas leis de um governo mundial
ciberdemocrático. As
que não conseguirem fazer
isso desaparecerão.
Nova-E:
O que você acha do recém-criado
Oxford Internet Institute? Você
está em contato com eles?
Pierre
Lévy: É melhor
dar a URL aos seus leitores
para que eles próprios
formem uma idéia a respeito.
Acho que é uma excelente
iniciativa. No entanto, acredito
que esse instituto está
sendo muito estruturado em função
da visão analítica
clássica das ciências
sociais e por uma abordagem
reativa ou responsiva. Com a
velocidade que as coisas estão
acontecendo atualmente, iremos
precisar sobretudo da visão
e da capacidade de prospecção
das ciências do projeto.
Estou falando aqui do projeto
da inteligência coletiva
(visão, valores, estratégias,
regulamentação
etc.). Não vejo em parte
alguma que o instituto de Oxford
tenha uma visão do futuro,
nem que seus membros saibam
para onde desejam ir. Não
estou particularmente em contato
com eles. No momento eles estão
baseados essencialmente na Inglaterra,
com uma abordagem "européia",
ao passo que eu estou baseado
no continente americano com
uma abordagem "mundial".
Contudo, se os responsáveis
pelo instituto me pedirem para
colaborar com algum estudo em
particular, eu ficaria muito
feliz de participar na medida
das minhas possibilidades.
Nova-E:
Existe alguma chance de que
o conceito de inteligência
coletiva nos fará chegar,
em algum ponto do futuro, ao
Ponto Ômega previsto por
Teilhard de Chardin – ou será
que a humanidade simplesmente
ficará cansada da Internet
e começará a procurar
outra coisa?
Pierre
Lévy: Não acredito
que abandonemos a Internet,
nem a espécie de mundo
virtual onipresente que a sucederá
no futuro. Pelo contrário,
tudo indica que a fome de comunicação
e de troca não cessa
de crescer, e isso é
particularmente verdadeiro entre
as novas gerações.
A evolução cultural
e social pode ser vista como
um processo de aprendizagem
no decorrer do qual a humanidade
intensifica sua inteligência
coletiva. Nós nos tornaremos
cada vez mais criativos coletivamente
e utilizaremos essa potência
criativa para "projetar"
formas de inteligência
coletiva cada vez mais eficazes
e criativas, e ao mesmo tempo
mais *responsáveis* e
pacíficas com relação
à humanidade como um
todo e a todas as formas de
vida sobre a Terra.
*
Lévy se refere à
unidade fundamental de todas
as coisas, um princípio
muito estudado no Oriente e
discutido entre os ocidentes
há algumas décadas
por cientistas e estudiosos
como Fritjof Capra e Francisco
Varela, que participou de uma
série de debates com
o Dalai Lama nos anos 90, sobre
Física e Espiritualidade.
Copyright Fábio Fernandes
- 2001
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permitida somente mediante a
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autor.
Fábio
Fernandes - Jornalista, tradutor
e escritor
Fonte: Nova
Escola