FREDRIC
MICHAEL LITTO - janeiro
de 2000
Duas ou três vezes por semana, tento
achar tempo para andar durante uma hora, preferencialmente
bem cedo na parte da manhã, no lindo Parque Ibirapuera,
na zona sul de São Paulo. É sempre uma oportunidade
para fazer o óbvio benéfico exercício
físico, e também para recarregar minhas "pilhas" emocionais
e espirituais, vendo as bonitas árvores e arbustos,
os cisnes e gansos perto do lago, e pondo a minha imaginação
para trabalhar. Para ajudar o exercício da imaginação,
e para manter um passo firme e regular, levo um walkman
com fitas ou cd's de marchas militares tocadas por bandas
de gaitas escocesas. Agora, é perfeitamente legítimo
perguntar por que um "bom menino judeu de Nova Iorque"
encontra alimentação emocional e espiritual nesse tipo
de música e o significado disso para outras pessoas.
Acho essas músicas muito inspiradoras
e quando as escuto, entro num mundo de fantasia que
me eleva ao nível da mais agradável sensação possível,
esquecendo as coisas mundanas do dia-a-dia, tirando-me
do meu isolamento como um indivíduo e colocando-me dentro
de um grupo maior, feito de indivíduos como eu, mas
que está agindo como um "corpo" único. Na minha fantasia,
vejo-me como um soldado escocês, marchando com os meus
conterrâneos, acompanhado daquela música tão inspiradora,
para defender o nosso país, nosso povo, contra um agressor
externo. É uma fantasia meio complicada para mim, porque
fundamentalmente sou um pacifista, e não tolero a idéia
de matar outros seres humanos, a não ser em absoluta
autodefesa. Mas o prazer que vem de me juntar virtualmente
a um grupo com o qual compartilho valores e metas, submeter
minha individualidade, minhas idiossincrasias e desejos
à execução de uma ação feita em conjunto, é indescritível.
A adrenalina corre solta, e eu não sinto cansaço.
Para
marchar acompanhando outros, é necessário não apenas
manter o passo correto (em relação à música), mas manter
a distância precisa do sujeito que está na frente, e
dos sujeitos que estão nos dois lados, isto feito sem
virar a cabeça, que tem que ficar quase imóvel, embora
o resto do corpo esteja em pleno movimento. É necessário
puxar a barriga para dentro, manter os ombros para baixo
e para trás, balançar os braços nem mais e nem menos
do que ficou estabelecido no treinamento, e manter sempre
o alinhamento da fila e da coluna a que se pertence
(tudo isso sem virar a cabeça). A perfeita execução
de um grupo de homens ou mulheres marchando em conjunto
é uma coisa linda de se ver. Sugere para o espectador
que esse grupo de seres humanos individuais sabe agir
de forma coordenada, harmoniosa, eficiente... como um
relógio, com todas as suas peças contribuindo para o
sucesso da função do relógio: marcar o tempo. Ou como
os instrumentistas de uma orquestra sinfônica: se cada
um entra com o seu som quando bem quiser, é um caos
total. É fácil saber, ao ouvir o rádio, se a orquestra
que está tocando é de segunda categoria ou é um dos
celebrados conjuntos musicais de reputação internacional:
as entradas de som de uma dezena de instrumentos de
corda ou de madeira são como um só instrumento. Como
é que conseguem essa perfeição quando há tantas possibilidades,
devido às variáveis implícitas na situação, de caos
puro?
Idêntica é a situação dos remadores num
esportivo barco a remo com oito indivíduos: se todos
os remos não entrarem na água e saírem dela exatamente
ao mesmo tempo, o barco começará a mudar de rumo e a
perder sua velocidade máxima. O remador, além de fazer
o pesado remo entrar e sair precisamente em conjunção
com os seus colegas, tem que coordenar os rápidos movimentos
para frente e para trás do carrinho no qual está sentado
(com os pés amarrados e fixos no chão) de forma a não
bater nas costas do remador a sua frente; os corpos
dos dois ocupam o mesmo espaço físico em momentos alternados
por uma fração de segundo. Oh! E tem também que seguir
as instruções gritadas do timoneiro, exatamente como
o instrumentista de orquestra tem que tirar os olhos
de partitura para seguir as instruções visuais do regente,
dadas através de sua batuta e das emoções que expressa
no rosto.
"
o talento natural e as horas intermináveis
de prática que fazem a diferença entre remadores e instrumentistas
excelentes e os amadores "
Não resta dúvida de que são o talento
natural e as horas intermináveis de prática que fazem
a diferença entre remadores e instrumentistas excelentes
e os amadores, mas tem um outro componente também: a
aceitação do "jogo" do trabalho colaborativo, isto é,
da submissão da identidade individual em favor daquela
de um grupo. Examinando minha própria vida, vejo que
sempre procurei atividades em que era possível fazer
parte de um grupo, em que grande parte da gratificação
de participação vinha do prazer de ser integrante de
algo envolvendo várias pessoas, cada uma contribuindo,
a seu modo, para atingir uma meta difícil, de valor
intrínseco e do grupo. Quando adolescente fiz parte
do corpo de balé do Museu de Brooklyn, em Nova Iorque;
na escola secundária, toquei violoncello na orquestra,
e quando aluno na Universidade da Califórnia, Los Angeles,
tocava instrumentos de percussão na orquestra e remava
na equipe de remo da instituição;
no Brasil, tive a honra e o prazer de fazer parte da
bateria da escola de samba Camisa Verde e Branco durante
sete carnavais, tocando o meu chocalho-de-três-andares
no meio dos outros instrumentistas que não queriam saber
de onde eu vinha, qual o meu Q.I. (nos dois sentidos!)
ou minha profissão, e me aceitaram como apenas mais
um que queria colaborar no ato prazeroso de fazer música
em conjunto e talvez trazer honraria à nossa escola.
É uma pena não poder dizer que no meu
trabalho profissional no Brasil encontrei condições
de me integrar a um grupo onde tive o prazer de trabalhar
colaborativamente. Em 28 anos como professor titular
(isto é, com direito de participar de muitos colegiados
onde decisões significativas são tomadas) da maior universidade
brasileira, ainda não encontrei um ambiente propício
para o trabalho harmonioso e gratificante que sempre
resulta quando uma equipe bem articulada funciona, seguindo
princípios de respeito mútuo e de colaboração profissional.
Em doze anos como consultor do CNPq, CAPES e MEC tive
a oportunidade de verificar que este fenômeno de não-colaboração
é endêmico no país, em todos os setores acadêmicos,
e quando, por acidente, ocorre o contrário, é por pouco
tempo, de tão instável que é o espírito colaborativo
entre nós.
Esse fenômeno faz parte das profundas
raízes culturais brasileiras, não tenho dúvida; é só
observar que apenas as camadas menos favorecidas economicamente
mantêm a prática de mutirões (para a construção de suas
residências e a limpeza de suas ruas, feitas por absoluta
necessidade de sobrevivência), a soberba organização
das grandes escolas de samba, e a bela integração dos
times de futebol. Já as camadas superiores demonstram
(propositalmente? Cf. Thorsten Veblen, Teoria das Classes
de Laser) ignorância sobre a sensatez do trabalho cooperativo,
preferindo seguir a "Lei do Gerson" e o seu conceito
de oportunismo.
"
é só observar que apenas as camadas menos favorecidas
economicamente mantêm a prática de mutirões "
Por que o trabalho em colaboração é tão
importante hoje e no futuro? Por causa do aumento da
complexidade em todos os assuntos humanos. Nunca houve
tantas: pessoas na face da terra, opções onde morar,
indivíduos com quem casar, carreiras a seguir, lugares
para estudar, religiões a praticar e comidas diferentes
a comprar e comer. Até para passar duas horas de divertimento
temos que escolher entre uma dezena de formatos diferentes,
para falar apenas daqueles que dependem de tecnologia.
Os melhores exemplos da relação entre complexidade e
necessidade de colaboração são os fatos de que desde
meados do Século XX, as guerras eram vencidas não por
um general ou comandante mas por uma equipe de generais,
e os ganhadores do Prêmio Nobel não eram mais cientistas
individuais trabalhando em condições de isolamento e
penúria, mas sim equipes de pesquisa, bem equipadas,
às vezes espalhadas em vários continentes, e sempre
somando esforços diferenciados para alcançar com êxito
o alvo de sua investigação.
A complexidade no mundo só tende a aumentar;
não diminuirá de forma alguma. E as culturas que na
sua educação básica, formal e informal, não inculcarem
bons hábitos de trabalho colaborativo nos seus jovens,
certamente sofrerão as conseqüências terríveis de não-compatibilidade
com aquelas culturas na qual a colaboração permite maior
competitividade e o orgulho de fazer parte de um time
que está ganhando exatamente porque funciona como time.
Duvido que seja possível para uma cultura ter êxito
quando muitos dos seus membros aprendem e acreditam
em conceitos como "Nunca ensinar o último pulo do gato",
"Vamos esconder o leite", ou "O ótimo é inimigo do bom".
Está claro para todos que se preocupam com o futuro
que uma boa parte da força de trabalho daqui em diante
será organizada por grupos ad hoc de especialistas em
assuntos ou campos de conhecimento diferentes, convocados
por períodos longos ou curtos para solucionar determinados
problemas. Dificilmente esses grupos serão sempre compostos
pelas mesmas pessoas, havendo um fluxo grande e constante
de pessoas entrando e saindo de grupos, provocando a
formação de grupos novos e a extinção de outros. Quem
não tiver um comportamento profissional apropriado simplesmente
acabará sendo excluído dos grupos de maior reputação,
independentemente da sua competência técnica pessoal.
"
Quem não tiver um comportamento profissional apropriado
simplesmente acabará sendo excluído dos grupos de maior
reputação, independentemente da sua competência técnica
pessoal. "
Em que consiste a preparação adequada
para participar com êxito de um time que está fazendo
um trabalho de natureza colaborativa? Em primeiro lugar,
uma sincera e madura capacidade de aceitar crítica sobre
a contribuição feita. Na cultura brasileira, essa capacidade
é dificilmente encontrada na população em geral, provavelmente
por interferir com a exigência de cordialidade que faz
parte importante do tecido dessa cultura. Quem critica
o trabalho de outro não está sendo cordial com ele ou
ela. Mesmo quando a crítica é feita de forma construtiva,
não é bem recebida e normalmente provoca desentendimentos
pessoais. Para poder colaborar verdadeiramente, é necessário
ter um bom senso de autocrítica e de honestidade, admitindo
os erros cometidos, aceitando sem rancor a demonstração
cabal de que o trabalho revela viés, ou uma enunciação
estúpida, ou a apresentação insuficiente de evidência
para as conclusões. Humildade, transparência, autenticidade
e honestidade total são os componentes comportamentais
individuais fundamentais para gerar a confiança necessária
para um trabalho de grupo bem sucedido. Quem não compartilha
a informação, quem não é cândido, quem não cumpre promessas
feitas (entregar um trabalho em data combinada, realizar
um trabalho ou levantamento realmente exaustivo), perde
a confiança do grupo, e merece ser excluído dele.
"
Humildade, transparência, autenticidade e honestidade
total são os componentes comportamentais individuais
fundamentais para gerar a confiança necessária para
um trabalho de grupo bem sucedido. "
Em segundo lugar, a liderança de qualquer
grupo que quer ter êxito na sua missão exige que qualquer
tipo de intimidação ou coerção seja eliminado dos procedimentos.
Um verdadeiro líder não precisa impor suas idéias ao
grupo. Ele está lá para coordenar as idéias criativas
dos outros, apenas de vez em quando lançando mão de
uma contribuição sua. Em terceiro lugar, a busca permanente
pela excelência no trabalho do grupo é essencial - apenas
isso garante a renovação e atualização constante do
grupo. Acredito ser possível agora enumerar as atitudes
e comportamentos negativos e positivos que têm um efeito
direto no trabalho hoje.
Atitudes Negativas - ter uma "agenda
oculta" pessoal - ser ambicioso pessoalmente - ter falta
de confiança no grupo ou em certos membros do grupo
e silenciar sobre isso - ser motivado apenas pela remuneração
que resultará do trabalho, e não pelo prazer e orgulho
que vem da realização de um trabalho bem feito e que
tem valor intrínseco além do pecuniário - ser contra
a adoção de critérios, modelos ou sistemas provindos
de outras regiões ou países simplesmente por considerações
nacionalistas - não querer passar para os colegas do
grupo os seus conhecimentos sobre qualquer fenômeno,
seus pontos fortes e fracos - não aceitar críticas construtivas
ao seu trabalho.
Atitudes Positivas - ter uma forte capacidade
associativa - estar disposto a aprender coisas novas
a ter experiências novas - apreciar a heterogeneidade
do grupo e respeitar a diversidade - estar aberto à
dissensão; respeitar honestamente a opinião e a experiência
dos outros - comprometer-se sinceramente e totalmente
com os objetivos e metas do grupo - aceitar participar
do planejamento de algo a curtíssimo prazo - dar ao
grupo o máximo da sua capacidade criativa e crítica.
Comportamentos Negativos - realizar uma
luta de poder dentro do grupo - exibir comportamento
anti-social, como paternalismo, arrogância, autoritarismo,
megalomania, ganância, decapção e narcisismo (incapacidade
de ter empatia com alguém além de si mesmo) - deixar
atritos e fricções levarem a confrontações e tensão
- ter medo de pedir ajuda ou de dá-la; ou ter timidez
ao propor uma nova idéia; ter medo de correr riscos,
de inovar - ser preguiçoso, sem iniciativa - fazer apenas
aquilo que lhe é solicitado formalmente - ter um comissionamento
individual exclusivo, remunerado ou não, com empresa
ou entidade, sem o conhecimento do grupo - ser pirata
das idéias, planos e problemas do grupo, passando-os
para terceiros - ser antiético, como cobrar de alguém
algo que não foi combinado, ou que foi explicitamente
descartado, ou elogiar falsamente ou de forma insincera,
ou de procurar achar um "bode expiatório".
Comportamentos Positivos - manter uma
idéia clara da missão e das tarefas do grupo - escutar
os outros (prestar atenção, não interromper) - exibir
humildade, generosidade e honestidade - faltar a reuniões
do grupo, ou atrasar, apenas em circunstâncias excepcionais
- ter "assertividade", isto é, não ficar "em cima do
murro", mas sempre tomar uma posição; ser cândido; ser
agressivo não como indivíduo mas como alguém promovendo
o sucesso do grupo - saber o que está sendo realizado
por todos os membros do grupo - saber gerenciar, sem
lamúrias, contingências inesperadas, recursos escassos.
"
Está na hora de preparar a próxima geração de brasileiros
para o trabalho colaborativo."
Os grupos que não conseguem eliminar
as atitudes e comportamentos negativos, enfatizando
os positivos, certamente serão "intoxicados", disfuncionais,
desperdiçando seus recursos e gastando suas energias
em tudo menos a sua missão. Tanto é importante a questão
da colaboração hoje que um novo termo está surgindo:
co-opetição, para descrever a situação quando duas empresas
normalmente concorrentes na mesma praça ou mercado resolvem
colaborar entre si, ou para reduzir custos ou para compartilhar
conhecimentos tecnológicos ou mercadológicos, de forma
que ambas se beneficiem. Co-opetição será uma alternativa
de trabalho tanto para entidades quanto para indivíduos
trabalhando como "free-lancers". Está na hora de preparar
a próxima geração de brasileiros para o trabalho colaborativo.
Quem não tiver fitas ou cd's de marchas
de gaitas escocesas poderá ir além disso: existe em
São Paulo um grupo de jovens que amam essas mesmas marchas,
The Scottish Link Pipe Band, liderado pelo Cristiano
Roberto Bicudo (telefone: [011] 210-6614), e que ensina
aos interessados como tocar esses instrumentos e essa
música. A cada participante está franqueado o direito
de criar a fantasia que mais lhe satisfaz.
FREDRIC
MICHAEL LITTO