Música
Caipira
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Crepúsculo
Sertanejo
A tarde morria! Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas;
Na esguia atalaia das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos,
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro.
Sussurro profundo! Marulho gigante!
Tal vez um silêncio!... Tal vez uma orquestra...
Da folha, do cálix, das asas, do inseto ...
Do átomo à estrêla... do verme - à floresta!...
As garças metiam o bico vermelho
Por baixo das asas - da brisa ao açoite;
E a terra na vaga de azul do infinito
Cobria a cabeça co'as penas da noite!
Somente por vezes, dos jungles das bordas
Dos golfos enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça surpreso, inquieto,
Coberto de limos - um touro selvagem.
Então as marrecas, em torno boiando,
O vôo encurvavam medrosas, à toa...
E o tímido bando pedindo outras praias
Passava gritando por sobre a canoa!..
II - AS ORIGENS DA MÚSICA
Voltando no tempo, podemos deduzir, pelas informações históricas
registradas, que a música tenha surgido no meio rural, provavelmente
em época próxima ao ano 2000 AC, entre os chineses ou os hindus.
Independentemente disto, tudo indica que foram os egípcios que elevaram
a música ao status de "popular", difundindo-a entre o meio rural,
a partir de dedicações a deidades vinculadas às boas safras agrícolas.
Desta forma, a arte musical egípcia influenciou outras culturas,
responsáveis pelo processo de civilização mundial e, como o campo
veio antes da cidade, esta era uma música rural.
Coube aos gregos desenvolver o movimento de racionalização da arte
musical, criando, inclusive o termo mousike (de Musas, as 9 filhas
de Zeus, responsáveis pelas artes). Anteriormente, ao que parece
e se tem notícia, a música era transmitida de forma direta, sem
registro específico. Foi a partir da Grécia que se pôde construir
a história da cultura contemporânea. Através dos poetas ("aquele
que faz"), que punham a música a serviço das palavras, pode-se depreender
que sua divulgação tenha ganhado notoriedade pública. Da mesma forma,
a conjugação da música, poesia e dança tinham em comum um ponto:
o ritmo (rhytmós - movimento regrado e medido).
E assim foi-se passando a história, até que, às vésperas dos grandes
descobrimentos, a música já era uma manifestação cultural urbana,
posto que ao camponês (a quem cabia servir ao senhor, principalmente
em épocas de guerras), não era dado o conhecimento da existência
de uma harmonia musical acadêmica e de instrumentos musicais, poesia
e danças criadas entre as paredes dos palácios. Porém, no campo,
as danças típicas, a poesia, o teatro e a música (com sua forma
exclusiva), eram valores culturais difundidos, com utilização de
instrumentos, peculiaridades e escala próprias.
Como, a essa altura, já entramos no período histórico dos grandes
descobrimentos, podemos falar do desenvolvimento da música rural
brasileira.
II - AS ORIGENS DA MÚSICA RURAL BRASILEIRA
O Brasil do descobrimento tinha, ao que se supunha, uma população
indígena de cerca de dois milhões de habitantes, com os quais teriam
os descobridores de se defrontar, no processo de povoação ou colonização
(discussão infindável). O certo é que, de uma ou de outra forma,
a exploração das riquezas da terra estava na mente dos descobridores,
visto que sua civilização vivia do comércio e, para tanto, a convivência
com os silvícolas se impunha. Até mesmo porque, para o estabelecimento
de uma economia de subsistência era necessário envolvê-los e aos
seus relativos conhecimentos de plantio. Assim, deste relacionamento,
surgiram técnicas comuns de formação de lavoura, desenvolvimento
de engenhos e fazendas, voltadas, além da subsistência, para a exportação.
Na manifestação musical, apesar da influência do colonizador, marcou
presença a cultura indígena, através dos urucapés, guaús, parinaterans
e tocandiras, de origem guaicuru, xavante, guarani ou bororo. Segundo
a história, Anchieta, o Apóstolo do Brasil, teria se valido de uma
dança religiosa indígena, o caateretê, para tentar convertê-los
ao cristianismo. Teria, ainda, introduzido esta dança nas festas
de Santa Cruz, Espírito Santo, Conceição e Gonçalo, num hábito que
até hoje persiste nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Minas
Gerais, Goiás, Mato Grosso, Pará e Amazonas, sob a nomenclatura
de catira, cujos elementos rítmicos da viola, do sapateado e do
palmeado, lhe foram indexados ao longo dos anos. Sendo cantado em
versos, o caateretê propiciava o surgimento de cantores e trovadores
populares.
Quando os portugueses e negros proporcionaram o surgimento de outras
manifestações musicais oriundas de suas próprias culturas, já existiam
por aqui gêneros resultantes do cruzamento cultural português-índio.
Os primeiros índios, com os quais os portugueses travaram conhecimento
foram os tupis, que se espalhavam, com suas oito famílias e dezenas
de línguas e dialetos, do Rio Grande do Sul ao seu homônimo do Norte.
Assim, desde o século XVI, os herdeiros deste tipo de cruzamento
étnico, mestiço de brancos e índias, apesar das controvérsias, pode
ser definido como caboclo (ou cabocolo, como se dizia na época).
E esta controvertida figura, descrita como indolente e pouco relacionado
com os colonos, ganhou esta pejorativa conceituação, que não condiz
com a realidade.
Já na segunda metade do século XIX, calcula-se que existissem no
Brasil menos de 150.000 índios puros, deduzindo-se que o restante,
ou foi exterminado pelo colonizador/povoador ou se hajam misturado
ao branco e ao negro, ensejando uma nova espécie humana culturalmente
distinta. Desta miscigenação surgiram grupos distintos, sendo que
entre os caboclos concentrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste
e Sul, inúmeros traços de semelhança física e cultural são notáveis,
generalizando o que se convencionou chamar de caipira, uma denominação
tipicamente paulista. Para muitos filólogos, caipira é expressão
de etimologia desconhecida, porém, segundo Silveira Bueno, o vocábulo
é resultado da contração das palavras tupis caa (mato) e pir (que
corta), resultando em "cortador de mato". Para Câmara Cascudo, caipira
é o "homem ou mulher que não mora na povoação, que não tem instrução
ou trato social, que não sabe vestir-se ou apresentar-se em público".
Inquestionavelmente, este é um tipo rural, caboclo, mas no sentido
pejorativo, depreciativo. Assim também se posicionou Monteiro Lobato
ao criar seu personagem Jeca Tatu. Como o que nos interessa não
são os estereótipos e sim a origem da música rural, achamos que
basta o que já foi dito, para situar o ilustre visitante deste site
no ambiente rural, fonte de nossa música de raiz.
Em muitas citações do século passado, sobre o interior do Brasil,
comentava-se sobre diversos tipos de festas musicais típicas, bem
como sobre manifestações musicais associadas aos condutores de boiadas
ou tropeiros. Essas cantigas e desafios, sempre em tom de alegria,
consistiam em interpelações de um boiadeiro para outro e eram uma
derivação de dois gêneros tipicamente portugueses. A cantiga (do
latim canticula – cançãozinha), remonta ao século XIII, com acompanhamento
de instrumento de cordas, chamado no século XVIII de "poesia cantada",
formada de redondilhas ou de versos menores que estas, dividida
em estrofes iguais, com andamento melancólico e concentrado. O desafio,
sempre representou em Portugal, um gênero musical baseado no canto
de improviso e alternativo, com outras pessoas provocando o desafiante,
até que se proclamasse o vencedor. Este tipo de arte, muito divulgado
entre nós, caindo no agrado popular, acabou se alastrando pelo país,
de norte a sul.
Já no século passado, muitos narradores testemunharam várias formas
de gêneros musicas oriundos do campo. Assim são as descrições sobre
as "vésperas de São Pedro", quando todos que possuíam um Pedro na
família se sentiam na obrigação de acender uma fogueira diante da
porta e soltar rojões, disparar pistolas, morteiros ou mosquetes.
Tratava-se, também, de uma manifestação adaptada da tradição portuguesa,
acompanhada de acordeona (harmônica – sanfona), viola (caipira,
com certeza) e machete (antecessor de nosso cavaquinho). À dança
cantada dava-se o nome de cururu (ou caruru), cujo acompanhamento
instrumental se fazia através de uma viola e de um pandeiro basco.
Esta manifestação ainda existe em alguns locais no interior de Mato
Grosso, Goiás e São Paulo e é uma espécie de desafio, com a diferença
que o provocador fica de fora, instigando os contendores ao litígio,
até que saia um vencedor. Vê-se, pois, que mesmo modificadas e adaptadas
por vezes às tradições indígenas ou caboclas, a influência portuguesa
era notável.
No início do século XX, a literatura sobre o Centro-Oeste, Sudeste
e Sul do país começa a mencionar danças como o recortado (derivado
do cateretê), o fandango (de origem ibérica e com várias coreografias)
e a toada (forma livre de cantiga, ligada à pura forma musical e
não à disposição poética). Era a força da música rural, criativa,
evolutiva, diversificada, contrapondo-se aos modismos musicais das
capitais, sempre importados do exterior, principalmente da Europa.
Foi de suma importância a participação de instrumentos musicais
portugueses na criação da música rural brasileira, principalmente
nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Destacamos aqui a CONCERTINA
(espécie de harmônica ou sanfona), a GUITARRA e a VIOLA. Os índios,
pelo que se tem notícia, sempre deram preferência a instrumentos
de sopro para musicar seus ritmos. Porém, maravilharam-se com o
som da viola portuguesa, fazendo dela surgir o que mais tarde se
conheceu como viola caipira.
A sanfona, como curiosidade, teve maior influência e participação
na música sertaneja nordestina e a viola na música caipira do Centro-Oeste,
Sudeste e Sul do país, onde a moda de viola, oriunda das modas portuguesas
da segunda metade do século XVIII, tinha como característica principal
o canto a duas vozes, tão marcante hoje na música rural brasileira.
Cidade e campo: duas economias diversas e interdependentes. Nem
o homem do campo pode prescindir das modernidades industriais, nem
o homem da cidade pode prescindir da lavoura e criação. Se existem
motivos para considerar entristecedora a situação das populações
urbanas (saneamento deficiente, habitações insuficientes e de qualidade
inferior, dificuldade de empregos, violência, drogas, etc.), também
no campo, salvo exceções, os métodos ainda são primitivos. Porém,
o homem do campo na Brasil soube sobreviver às custas de sua própria
resistência física, preso a um sentimento enraizado de amor à terra,
sem nunca ter renunciado às suas tradições. E são essas tradições,
como a linguagem própria, o vestuário típico e as tendências culturais,
que contribuem decisivamente para a criação de uma espécie de música
inconfundível. E é desse tipo de música que estamos falando. Não
devemos confundir música rural com música - digamos assim -"brega".
Esta última é o resultado do aproveitamento de dois filões (sem
que haja obrigatoriedade de misturá-los) de manifestação musical
tradicional (a música rural e a música internacional, entendida
em toda a sua extensa variedade) e se destina, primordialmente,
a satisfazer às exigências, gostos, anseios (ou o nome que se queira
dar) das populações carentes, que habitam a periferia das cidades.
E poder-se-ia travar um embate filosófico interminável sobre a questão.
Não é este nosso intuito. Queremos falar daquele outro tipo de música,
que guarda profunda relação com a tradição que a gerou: a música
rural, ou música caipira. E passaremos a tratar do assunto, com
o foco no século XX.
Já deixamos claro, anteriormente, que a música rural abrange vasta
extensão territorial, pois assim é o Brasil, e que ela pode ser
entendida delimitando-se sua área de ocupação. Desta forma, vamos
limitar este resumo à música rural que envolve, principalmente,
os estados das regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. E, mais ainda,
centraremos nosso foco no estado de São Paulo.
A partir de São Paulo e seu interior, em especial, definiu-se o
tipo característico denominado "caipira", espécie de caboclo diferente
dos oriundos das regiões norte e nordeste. Na própria capital, no
início deste século, pouco se sabia sobre este personagem interiorano,
além de algumas facetas mais características, desconhecendo-se suas
danças, músicas e poesias típicas.
Foi Cornélio Pires (1884 - 1958), natural de Tietê, o primeiro a
mostrar interesse em divulgar o caipira e sua criatividade autêntica,
na capital. Em 1910, encenou na Universidade Mackenzie um velório
típico do interior paulista. A encenação incluía interpretes autênticos
de cururu e cateretê, além de cantadores e dançadores. A apresentação
foi um sucesso e abriu espaço para outras, que se seguiram, graças
a obstinação de Cornélio. E assim, quatro anos mais tarde, proferiu
diversas palestras na capital, sobre a matéria, acompanhado de exemplos
vivos desta arte desconhecida, mostrando o que já se espalhava por
outras regiões além das fronteiras do estado, caracterizando, enfim,
uma música e uma poesia paulistas, diferente de tudo o que se criava
na capital, que, na verdade, nada mais fazia do que absorver o que
vinha do Rio de Janeiro e, em última instância, da Europa, passando
por aquele importante centro cultural.
Em 1922, realizaram-se no Rio de Janeiro as festividades de comemoração
do primeiro centenário da Independência do Brasil e entre tantas
atividades programadas, Cornélio foi escalado para promover diversas
manifestações da cultura caipira, sendo-lhe reservado espaço seleto
para apresentação de suas palestras e exibições. Foi, no mínimo,
curioso que se lhe reservasse o auditório da Associação Brasileira
de Imprensa para tal, demonstrando o interesse que seu conhecimento
sobre este tipo de cultura tinha alcançado. E suas apresentações,
com muitas novidades e curiosas revelações, alcançaram êxito surpreendente,
neste ano em que se realizou a tão lembrada Semana de Arte Moderna.
Foi a oportunidade que o Rio de Janeiro teve, de conhecer o que
séculos de aculturação índio-portuguesa produziram no interior de
São Paulo.