Hist. da Música
 

POLIFONIA
( António Lopes)

1) Termo que designa um tipo de composição musical em que várias vozes, ou melodias, se sobrepõem em simultâneo de acordo com as regras do contraponto. Opõe-se-lhe a monodia ou homofonia, na qual as vozes executam exactamente o mesmo movimento melódico, em uníssono e seguindo um mesmo padrão rítmico, ou então se sobrevaloriza uma única melodia e a se subalternizam as restantes vozes, adquirindo estas então um mero papel de acompanhamento. À semelhança da monodia, também a polifonia joga com a horizontalidade, isto é, com um discurso construído ao longo de um plano sintagmático. Todavia, nele se distribuem várias linhas melódicas distintas de igual peso, efectuando percursos rítmicos relativamente autónomos. A harmonia emerge justamente de uma tentativa de disciplinar tal independência em função de uma lógica de convergência sonora: as diferentes vozes fundem-se verticalmente em intervalos precisos, numa sucessão de momentos estáticos, definindo-se o valor de cada uma delas no equilíbrio sonoro do acorde e na organização funcional do sistema tonal.

2) Crê-se, a julgar por vários vestígios arqueológicos, que a Antiguidade já teria conhecido manifestações de música polifónica. As flautas duplas encontradas no cemitério de Ur, com cerca de cinco mil anos, atestam da necessidade sentida pelos povos do Calcolítico de explorarem sonoridades de textura complexa. Todavia, na história da música ocidental a primeira tentativa conhecida de teorização do princípio polifónico só teria lugar no início do século X, no tratado Musica Enchiriadis, atribuído a Hucbaldo, e onde se lançam as bases do organum, sistema musical que antecedeu o discantus, fundador do contraponto.

 

No século XIV, a chamada Ars Nova seria responsável por importantes contribuições para o desenvolvimento da arte polifónica, em termos quer do estabelecimento de alguns importantes princípios da harmonia, quer da busca de uma maior autonomia rítmica e melódica para cada voz. O próprio termo serviria para designar o período musical situado nos dois séculos imediatamente seguintes, em que tal arte atingiria a sua máxima expressão em géneros vocais tão diversos como o motete, a missa, o madrigal ou a chamada «chanson», dos quais Orlando di Lassus, Clement Jannequin, Giovanni da Palestrina e William Byrd (de quem Shakespeare terá certamente ouvido algumas composições) se revelariam os seus mais brilhantes cultores. Também Portugal contribuiu para esse legado com nomes como os de Manuel Cardoso, Duarte Lobo, Felipe de Magalhães e João Lourenço Rebelo, que figuram meritoriamente entre os grandes vultos da música seiscentista e setecentista. A maior complexificação da escrita contrapontística entretanto registada convidaria inevitavelmente ao desenvolvimento da música instrumental, o que abriria finalmente as portas desta arte a universos sonoros independentes da poesia.

3) Mas não é só a música que pode reivindicar o termo como seu. Também a teoria da literatura, pela mão de Mikhail Bakhtine, se apoderou dele. O crítico russo empregou-o na sua análise da ficção dostoievskiana, sugerindo que esta punha em jogo uma multiplicidade de vozes, ideologicamente distintas, que resistiam ao discurso autoral. Este juízo formulado sobre a obra de Dostoievsky acabaria Bakhtine por estender a todo o género romanesco. De facto, no romance ora se orquestram, ora se degladiam linguagens sociais várias que se impõem ao romancista como expressão da diversidade social que este procura fazer representar na sua escrita. Daí que o autor de Estética e Teoria do Romance conteste abertamente a noção de que uma qualquer obra desse género seja gerida por uma só linguagem, unívoca, monolítica, cristalizada em convenções literárias e enclausurada num só mundo vivencial. Porque mesmo que assim fosse, mesmo que a linguagem do romance emergisse da peremptoriedade de uma voz solitária, esta jamais poderia excluir, ainda que voluntariamente, todas as outras vozes, todas as outras linguagens sociais que a percorrem, a sustentam e a informam. É na sequência desta linha argumentativa que se coloca a questão locutória, a qual deverá constituir, segundo Bakhtine, o objecto principal de estudo do género em causa. Afinal, o que o especifica e o que lhe confere a originalidade estilística é, para utilizarmos os termos do teórico, “o homem que fala e a sua palavra” (1972: 153). Não é a instância narratorial aquela se encontra aqui no cerne das suas preocupações. Poderíamos, aliás, ir mais longe e, sem desvirtuar o seu pensamento, sugerir que o mesmo excerto se deva antes ler: “os homens e as mulheres que falam e as suas palavras”—seres que, encarnando ao mesmo tempo uma certa apreensão da individualidade e da sua radicação no social, cruzam as linhas do romance como portadores de ideologias, de modos de ver, de entender, de interpretar e de interpelar o mundo, plasmando-se no texto através de discursos que se confrontam num jogo dialógico interno à própria obra. Bakhtine, porém, adverte-nos: esses discursos, tal como ganham corpo no romance, não são genuínos. Aquilo que se dá a conhecer ao leitor mais não são do que imagens dessas muitas linguagens. Isto é, as vozes que se fazem ouvir no romance são representações erigidas por um outro discurso. Significa, portanto, que o verdadeiro objecto de representação no texto romanesco não é tanto o mundo, como o próprio falar do mundo. Ouvimos aqui o eco do espólio teórico sobre esse conceito tão caro à crítica marxista que é a ideologia: o que Bakhtine sugere, afinal, é que a relação entre o leitor e as linguagens do romance é indirecta. Consequentemente, todo o enunciado de certa personagem que nos surja revestido de uma certa autoridade (seja sob a forma de autoritarismo, de tradicionalismo, ou de oficialismo) é passível de ser não só contestado, como ainda “travestido” e “parodiado” (o próprio Bakhtine reconhece na paródia grega as raízes do romance (1988)). É no seio dessa contestação que a voz da consciência interior do indivíduo pugna por se impor. Como afirmará relativamente ao autor de Crime e Castigo e de Os Irmãos Karamazov, “les énoncés des personnages de Dostoïevski sont l’arène d’une lutte désespérée avec la parole d’autrui, dans toutes les sphères de la vie e de l’œuvre idéologique” (1972: 167). Um pensar a literatura que custaria ao crítico a perseguição política num país amordaçado pela repressão estalinista e pela monodia do partido.

bib.:Merritt, Arthur Tillman: Sixteenth-Century Polyphony: a Basis for the Study of Counterpoint (1939); M. Bakhtine: Probliémy tvortchestva Dostoïevskogo (1929); idem: Esthétique et théorie du roman (1972); idem: “From the prehistory of novelistic discourse”, in Modern Theory and Criticism, D. Lodge (ed.) (1988).

Fonte: http://www2.fcsh.unl.pt/edtl/verbetes/P/polifonia.htm

Artigo 2

A Plenitude da Polifonia

Durante o século XV, consolidaram-se as formas musicais mais representativas da música religiosa que, além do gregoriano, continuariam existindo até os nossos dias: a Missa e o Moteto, estabelecendo-se o caráter unitário da Missa. Ao longo dos séculos XV e XVI foram oferecidas várias soluções para o problema da unificação das suas diferentes partes, segmentando-se em quatro tipos:

Cantus firmus ou missa tenor: baseada numa melodia já existente, em que aparece uma voz contínua (normalmente de tenor) nas diferentes partes da obra. O Cantus firmus original pode ser religiosos ou profano. Entre esses últimos, o mais conhecido e utilizado foi a canção L 'Home armè, base para inúmeras missas.
Missa paráfrase: parte também de uma melodia monódica anterior, utilizada como base na construção da missa polifônica. As diferentes partes da melodia original aparecem nas diferentes vozes da missa, imitando-se umas as outras.
Missa paródia: neste caso, utiliza-se uma obra anterior polifônica, normalmente um moteto. Ao escrever a missa, o autor, não só modifica o texto, como acrescenta, suprime e intercambia as linhas melódicas ou, inclusive, as modifica, mas ainda imitando-as.
Missas originais ou Sine nomine: o compositor utilizava a sua técnica e o seu talento para preparar um material completamente novo. São identificadas pelo modo como estão compostas, ou também, por algum engenho técnico em que se baseiam.

As missas correspondentes a esses grupos são conhecidas pelos nomes das obras que lhes serviram de ponto de partida (Missa L 'Home armè, Missa Pange Lingua). Nelas o compositor quase sempre apoia-se numa tradição anterior, do mesmo modo que o homem medieval e o renascentista usavam o pensamento clássico, a Bíblia e autores escolásticos como fontes de conhecimento, tão válidas quanto o racionalismo científico.

As missas que contêm as cinco partes do ordinário são conhecidas como Missas de Gloria. Há, ainda as missas fúnebres chamadas de Requiem ou Pro defunctis, com parte do ordinário, partes próprias da liturgia mortuária (como o Dies Iræ e Lux Æterna) e algumas partes do ofício, mas nunca o Gloria. É grande sua variedade e seus recursos técnicos e estéticos. A recriação de melodias gregorianas é freqüente no ofício fúnebre, utilizando o Cantus firmus e, também, sons mais graves que representem a morte ou o inferno.

Ao longo do século XV, o moteto perdeu o seu caráter profano, convertendo-se em protótipo religioso, que adotou o latim como língua e reduzindo a quantidade de textos. Também permitem uma grande liberdade textual, passando a ser utilizado tanto nas cerimônias litúrgicas, como em outras funções religiosas (procissões) e nas devoções domésticas. Pode-se defini-lo como um texto dividido em pequenas seções, com um certo sentido lógico, às quais correspondem episódios musicais. O contraste entre as seções pode ser: temático, técnico ou baseado no colorido e tessitura das vozes. A economia das cadências presente no moteto, bem como a concatenação dos seus episódios conservam o seu caráter unitário.


Giovanni Pierluigi da Palestrina (1525-1594).
Palestrina é, do renascimento, um dos mais importantes compositores de música religiosa. Nasceu no ano de 1525, em Palestrina, no norte de Roma, e desde cedo estudou música. Em 1537 era menino de coro da igreja de Santa Maria Maggiore, em Roma, e nessa cidade estudou até 1540. Depois, voltou à sua cidade natal para aí ser mestre do coro da cidade. Mas entretanto, em 1550 Júlio II é eleito papa, e Palestrina é chamado a Roma para ser mestre da Capella Giulia. Um ano depois, publica o seu primeiro livro de Missas, mas em 1555 Júlio II morre e Palestrina é demitido por ser casado. Então, Palestrina sucede a Roland de Lassus como mestre de capela de São João de Latrão., e em 1561 torna a Santa Maria Maggiore. Em 1567 entra ao serviço do cardeal Ipolito d'Este, e torna-se diretor da Capela Sistina em 1571. Após a morte da sua mulher, casou com a filha de um rico comerciante de peles, e enriquece ao entrar no ramo, o que lhe permitiu publicar a sua obra até ao fim da sua vida.

Palestrina também compôs diversos madrigais profanos, com o a canção "L´homme armé" (que curiosamente fez parte de uma missa), mas é na música religiosa que Palestrina ocupa maior destaque. Não tendo a inventividade de um Byrd, ou muitos outros compositores da época, Palestrina é porém considerado o exemplo mais polido e perfeito da polifonia renascentista, e o rigor formal das suas obras e a beleza da sua polifonia dão às sua obras um encanto divino, sem no entanto estas intricadas estruturas retirarem a inteligibilidade do texto posto em música, geralmente o ordinário da missa em latim, algo extremamente importante para a eficiência de uma missa cantada, aliás uma das regras definidas pelo Concílio de Trento como regra para a música sacra.

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