Autor:
Pierre Lévy
Pierre
Lévy é um dos mais influentes estudiosos
da cibercultura e da filosofia da inteligência coletiva.
Pierre Lévy nasceu na Tunísia em 1956,e
concluiu o mestrado em História da Ciência
e o doutorado em Sociologia e Ciências da Informação
e da Comunicação na Universidade de Sorbonne,
França. Trabalha, desde 2002, como titular da cadeira
de pesquisa em inteligência coletiva da Universidade
de Ottawa e é membro da Sociedade Real do Canadá
(Academia Canadense de Ciências e Humanidades).
É autor de uma dezena de obras filosóficas
sobre a cultura do mundo virtual e sobre o novas tecnologias,
como Cyberdémocratie (2002); A conexão planetária
- o mercado, o ciberespaço, a consciência
(2001); O que é o virtual? (1995); A máquina
universal (1992); As tecnologias da Inteligência
(1990); Cybercultura (1987).
O
que acontece quando lemos ou escutamos um texto? Em primeiro
lugar, o texto é perfurado, ocultado, permeado
de brancos. São as palavras, os pedaços
de frases que não ouvimos (não só
no sentido perceptivo, mas também intelectual do
termo). São os fragmentos de texto os quais não
compreendemos, não tomamos em conjunto, não
reunimos uns aos outros, negligenciamos. Paradoxalmente,
ler, escutar, é começar por negligenciar,
por não ler ou desligar o texto.
Ao
mesmo tempo em que rasgamos o texto pela leitura, nós
o ferimos. Nós o recolocamos sobre ele mesmo. Nós
relacionamos, umas às outras, as passagens que
se correspondem. Os pedaços dispersos sobre a superfície
das páginas ou na linearidade do discurso, nós
os costuramos em conjunto: ler um texto é reencontrar
os gestos textuais que lhe deram seu nome.
As
passagens do texto estabelecem virtualmente uma correspondência,
quase uma atividade epistolar que nós, bem ou mal,
atualizamos, seguindo ou não, aliás, as
instruções do autor. Produtores do texto,
viajamos de um lado a outro do espaço de sentido,
apoiando-nos no sistema de referência e de pontos,
os quais o autor, o editor, o tipógrafo balizaram.
Podemos, entretanto, desobedecer às instruções,
tomar caminhos transversais, produzir dobras interditas,
nós de redes secretos, clandestinos, fazer emergir
outras geografias semânticas.
Tal
é o trabalho da leitura: a partir de uma linearidade
ou de uma superficialidade inicial, rasgar, ferir, entortar,
redobrar o texto, para abrir um meio vivo onde possa desplugar-se
o sentido. O espaço do sentido não preexiste
à leitura. É percorrendo-a, cartografando-a
que nós o fabricamos.
No
entanto, enquanto redobramos o texto sobre ele mesmo,
produzindo assim sua relação consigo mesmo,
sua vida autônoma, sua aura semântica, nós
o reportamos também a outros textos, a outros discursos,
a imagens, a sentimentos, a toda a imensa reserva flutuante
de desejos e de signos que nos constituem. Aqui, não
é a unidade do texto que está em jogo, mas
a construção de nós mesmos, construção
sempre a refazer, inacabada. Não é mais
o sentido do texto que nos ocupa, mas a direção
e a elaboração de nosso pensamento, a precisão
de nossa imagem do mundo, o resultado de nossos projetos,
o despertar dos nossos prazeres, o fio de nossos sonhos.
Desta forma, o texto não é mais amarrotado,
redobrado em rolo sobre ele mesmo, mas decupado, pulverizado,
distribuído, avaliado segundo os critérios
de uma subjetividade nascida de si mesma.
Do
texto, logo nada mais resta. Ou melhor, graças
a ele retocamos nossos modelos de mundo. Ele nos serviu,
talvez, apenas para fazer entrar em ressonância
algumas imagens, algumas palavras que nós já
possuíamos. Por vezes, relacionamos um de seus
fragmentos, investido de uma intensidade especial, a tal
zona de nossa arquitetura mnemônica, um outro a
tal pedaço de nossas redes intelectuais. Ele nos
serviu de interface conosco mesmos. Apenas muito raramente
nossa leitura, nossa escuta, terá como efeito reorganizar
dramaticamente, como por um tipo de efeito de limite violento,
o bolo misturado de representações e de
emoções que nos constitui.
Escutar,
olhar, ler, voltam finalmente a se construir. Na abertura
em direção ao esforço de significação
que vem de outro, trabalhando, atravessando, amassando,
decupando o texto, incorporando-o a nós, destruindo-o,
nós contribuímos para erigir a paisagem
de sentido que nos habita. Confiamos, por vezes, alguns
fragmentos do texto aos conjuntos de signos que se movimentam
em nós. Estes ensinamentos, estas relíquias,
estes fetiches ou esses oráculos não têm
nada a ver com as intenções do autor nem
com a unidade semântica viva do texto. Eles, contribuem,
porém, para criar e recriar o mundo de significações
que nós somos.
Até
agora, não pronunciei a palavra hipertexto. No
entanto, não se tratou senão disto. As tecnologias
intelectuais, quase sempre, exteriorizam e reificam uma
função cognitiva, uma atividade mental.
Assim fazendo, elas reorganizam a economia ou a ecologia
intelectual em seu conjunto e modificam em retorno a função
cognitiva a qual pressupunha-se somente assistir e reforçar.
As relações entre a escritura (tecnologia
intelectual) e a memória (função
cognitiva) estão aí para testemunhar.
A
chegada à escritura acelerou um processo de artificialização
e de exteriorização da memória que
sem dúvida começou com a hominização.
Seu uso massivo transformou o rosto de Mnemósina.(1)
Acabamos por conceber a lembrança como um registro.
A
semi-objetivação da memória no texto
sem dúvida permitiu o desenvolvimento de uma tradição
crítica. Com efeito, a escrita cruza uma distância
entre o saber e seu sujeito. É talvez porque eu
não sou mais o que eu sei que eu posso recolocá-lo
em questão. A escritura fez surgir assim um dispositivo
de comunicação, no qual as mensagens são
muito freqüentemente separadas no tempo e no espaço
de sua fonte de emissão e então recebidas
fora do contexto. Do lado da leitura, foi preciso então
refinar as práticas interpretativas. Do lado da
redação, devemos imaginar sistemas de enunciados
auto-suficientes, independentes do contexto.
Com
a escritura, e mais ainda com o alfabeto e a impressão,
as formas de conhecimento teóricas e hermenêuticas
avançaram sobre os saberes narrativos e rituais
das sociedades orais. A exigência de uma verdade
universal, objetiva e crítica, não pôde
se impor senão em uma ecologia cognitiva grandemente
estruturada pela escrita.
Sabemos
que os primeiros textos alfabéticos não
separavam as palavras. Apenas muito lentamente foram sendo
inventados os brancos entre os vocábulos, a pontuação,
os parágrafos, as claras divisões em capítulos,
os sumários das matérias, os índices,
a arte de colocar na página, a rede de remissões
de enciclopédias e dicionários, as notas
de pé-de-página – em suma tudo o que
facilita a leitura e a consulta de documentos escritos.
Contribuindo para dobrar os textos, estruturá-los,
articulá-los para além de sua linearidade,
estas tecnologias auxiliares compõem o que nós
poderíamos chamar de aparelho de leitura artificial.
O
hipertexto, a hipermídia ou a multimídia
interativa percorrem um processo já antigo de artificialização
da leitura. Se ler consiste em selecionar, esquematizar,
construir uma rede de remissões internas ao texto,
em associar a outros dados, em integrar as palavras e
as imagens para uma memória pessoal em reconstrução
permanente, então os dispositivos hipertextuais
constituem uma espécie de reificação,
de exteriorização dos processos de leitura.
Já o vimos, a leitura artificial existe desde muito
tempo. Que diferença podemos estabelecer entre
o sistema que estava estabilizado sobre as páginas
dos livros e dos jornais e aquele que se inventa hoje
sobre as relações digitais? Em relação
às técnicas anteriores, a digitalização
introduz primeiro uma pequena revolução
copernicana: não é mais o leitor que segue
as instruções da leitura e se desloca no
texto, mas é, de hoje em diante, um texto móvel,
caleidoscópio que apresenta suas facetas, gira,
torna e retorna à vontade diante do leitor.
De
outra parte, a escritura e a leitura mudam seus papéis.
Aquele que participa na estruturação do
hipertexto, no traçado pontilhado das possíveis
pregas do sentido, é já um leitor. Simetricamente,
aquele que atualiza um percurso ou manifesta tal ou qual
aspecto da reserva documentária contribui para
a redação, encontra momentaneamente uma
escrita interminável. As costuras e remissões,
os caminhos de sentido originais que o leitor inventa
podem ser incorporados à estrutura mesma dos corpus.
A partir do hipertexto, toda leitura é uma escritura
potencial. Mas sobretudo os dispositivos hipertextuais
e as redes digitais desterritorializaram o texto. Eles
fizeram emergir um texto sem fronteiras próprias,
sem interioridade definível. Existe agora o texto,
como se diz da água ou da areia.
O
texto é colocado em movimento, tomado em um fluxo,
vetorizado, metamórfico. Está assim mais
próximo do movimento mesmo do pensamento, ou da
imagem que nós dele fazemos hoje. O texto subsiste
sempre, mas a página se oculta. A página,
isto é, o pagus latino, o campo, o território
situado pelo branco das margens, lavrada de linhas e semeada
pelo autor de letras, caracteres. A página, pesada
ainda da argila mesopotâmica, aderindo sempre à
terra do neolítico, esta página muito antiga,
se oculta lentamente sob a alta superfície informacional,
seus signos desligados vão rejuntar a onda numérica
(digital). Tudo se passa como se a numerização
(digitalização) estabelecesse uma espécie
de imenso plano semântico, acessível em todo
lugar, para o qual cada um poderia contribuir para produzir,
dobrar diversamente, retomar, modificar, redobrar... Há
necessidade de o sublinhar?
As
formas econômicas e jurídicas herdadas do
período precedente impedem hoje o movimento de
desterritorialização de ir até seu
fim. A interpretação, quer dizer, a produção
de sentido, não remete mais, desde então,
à interioridade de uma intenção,
nem a hierarquias de significações esotéricas,
mas antes à apropriação sempre singular
de um navegador. O sentido emerge de efeitos de pertinências
locais, ele surge na intersecção de um plano
semiótico desterritorializado e de uma mira de
eficácia ou de prazer. Eu não me interesso
mais sobre o que pensou um autor ausente, eu quero que
o texto me faça pensar, aqui e agora. Nós
chegamos aqui no limite das noções de texto
e de leitura. Para ultrapassar a fronteira, para tentar
compreender o que se joga além dela, proponho uma
experiência de pensamento.
Suponhamos
que nós não tivéssemos inventado
ainda a escritura e que extraterrestres tivessem colocado
à nossa disposição todos os medias
de comunicação contemporâneos, aí
compreendido o suporte dinâmico, interativo, dotado
de memória e de capacidade de cálculo autônomo
que constitui a tela do computador. Os extraterrestres
nos sugerem inventar um sistema de signos para nos ajudar
a pensar e a registrar nossos pensamentos. Nestas circunstâncias,
que gênero de escritura deveríamos colocar
em questão? Seria o alfabeto? Certamente não,
uma vez que o alfabeto – vogais e consoantes –
é, grosso modo, um sistema de notação
de som e que nós já dispomos de inúmeros
aparelhos para registrar e restituir a voz. De que serviria
passar anos a aprender o uso de um sistema de notação
visual do som, uma vez que nós já o podemos
gravar, reproduzir e, sobretudo, graças ao endereçamento
numérico (digital), navegar na matéria sonora
à vontade? O alfabeto foi inventado em uma época
em que o gravador não existia. Na Antigüidade
e na Idade Média, utilizavam-se os textos alfabéticos
quase como fitas magnéticas, uma vez que as pessoas
deveriam ler em voz alta e então ouvir o som para
compreender o sentido. Mas como testemunham os ideogramas
chineses, a escritura, para ser notação
do pensamento, não é necessariamente um
registro fiel do som das palavras.
Como
o mostram as cifras árabes e a notação
matemática em geral, uma escritura pode ser independente
das línguas. Se nos reportarmos à nossa
experiência imaginária, ficará claro
que nossos extraterrestres nos sugerem inventar uma escritura,
um sistema de signos, uma tecnologia intelectual que,
de um lado, não faça duplo emprego dos medias
fundados sobre a captura imediata da imagem e do som e
que, de outro lado, explore todas as possibilidades abertas
pelas telas gráficas interativas, ou seja, através
das realidades virtuais multimodais em três dimensões.
A maioria dos sistemas de signos conhecidos até
hoje – alfabético, ideográfico, mistos
ou outros – foram imaginados quando se dispunha
apenas de suportes estáticos fixos. Observamos
que os multimedias ou hiperdocumentos contemporâneos
contentam-se, muito freqüentemente, em retomar os
signos inventados para outros suportes (escrituras diversas,
cartas ou esquemas estáticos, imagens de vídeo,
sons gravados) e colocá-los em rede. Eles promovem
uma navegação nova em uma reserva semiótica
antiga. Eles desterritorializam o estoque de signos já
disponíveis. Nada de espantoso nisto, uma vez que
os novos suportes interativos saíram dos laboratórios
e têm existência social efetiva há
menos de dez anos. Dez anos! Quase nada em relação
à escala de evolução cultural, muito
menos tempo do que foi necessário a uma civilização
para inventar uma escritura nova e remanejar, de um só
golpe, seu dispositivo de comunicação, de
produção e de transmissão de conhecimentos.
No entanto, temos já sob os olhos, nos dois extremos
da hierarquia cultural, as premissas da nova escritura.
Do
lado da pesquisa científica, visualizam-se sobre
as telas os modelos numéricos (digitais) dos fenômenos.
As simulações gráficas interativas
impuseram-se como indispensáveis ferramentas da
imaginação auxiliada por computador. Nem
experiência nem teoria, a simulação
– verdadeira industrialização da experiência
do pensamento – abriu uma terceira via à
descoberta e à aprendizagem, desconhecida dos epistemólogos.
O modelo numérico (digital) o qual projeta sobre
a tela sua imagem dinâmica releva uma forma de escritura,
mas certamente não da notação da
palavra. Não se ouve o som, mas o modelo mental.
E como modelo mental, ele é interativo, explorável,
móvel, modificável, fortemente articulado
sobre mil reservas de dados. Na outra extremidade da escala,
os videogames oferecem os modelos interativos a explorar.
Eles simulam terrenos de aventuras, universos imaginários.
Certo, trata-se de puro divertimento. Mas como não
ser tocado pela coincidência dos extremos: o pesquisador
que faz proliferar os cenários, explorando modelos
numéricos (digitais), e a criança que joga
um videogame experimentam, ambos, a escritura do futuro,
a linguagem de imagens interativas, a ideografia dinâmica
que permitirá simular os mundos.
Antes
de condenar os videogames, os humanistas, os pedagogos,
os criadores, os autores, deveriam valer-se desta nova
escritura e produzir com ela obras dignas desse nome,
inventar novas formas de saber e exploração
que lhes correspondam, dar-lhes seus títulos de
nobreza. Nada seria pior do que uma situação
em que as pessoas de cultura se crispassem sobre o território
do texto alfabético, enquanto a linguagem do futuro
seria deixada aos técnicos e comerciantes. A barbárie
nasceu quase sempre da separação. Existe
um conhecimento por simulação, muito diferente
dos estilos teóricos e hermenêuticos que
se apoiavam sobre a escritura estática. Esses critérios
principais não são sem dúvida mais
aqueles da verdade crítica, universal e objetiva,
mas antes aqueles da potência de bifurcação
e de variação, da capacidade de mutação,
de operatividade, de pertinência local, contextual.
Com
efeito, os meios de comunicação contemporâneos
instauraram uma ecologia de mensagens muito diferente
daquela que prevaleceu até a metade do século
XX. Certo, não nos banhamos jamais duas vezes no
mesmo rio informacional, mas a densidade das ligações
e a rapidez das circulações são tais
que os atores da comunicação não
têm maiores dificuldades em dividir o mesmo contexto.
Daí, a pressão de universalidade e objetividade
diminuiu. Como o tinha pressentido Mac Luhan, reencontramos,
mas sobre uma outra órbita, a um nível de
energia superior, certas condições de comunicação
que reinaram nas sociedades orais. A história cruzada
de suportes materiais e da relação ao saber
poderia ser esquematicamente representada pelas interferências
e os cavalgamentos de quatro ideais-tipos. Primeiro tipo:
nas sociedades anteriores à escritura, o saber
prático, mítico e ritual foi encarnado pela
comunidade viva. Quando um velho morre, é uma biblioteca
que queima. Segundo tipo: com o advento da escritura,
o saber é carregado pelo livro, único, indefinidamente
interpretável, transcendente, suposto que contém
tudo: a Bíblia, o Corão, os textos sagrados,
os clássicos, Confúcio, Aristóteles...
Terceiro tipo – desde a prensa até essa manhã:
aquela da enciclopédia. Aqui, o saber não
é mais carregado pelo livro, mas pela biblioteca.
Ele é estruturado por uma rede de remissões,
perseguida talvez, desde sempre, pelo hipertexto. A desterritorialização
da biblioteca a que assistimos hoje não é
talvez senão o prelúdio à aparição
de um quarto tipo de relação com o conhecimento.
Por
uma espécie de retorno em espiral à oralidade
das origens, o saber poderia ser de novo tomado pelas
coletividades humanas vivas antes que por suportes separados.
Somente esta vez, o portador direto do saber não
seria mais a comunidade física e sua memória
carnal, mas o cyberspace, a região dos mundos virtuais
por intermédio da qual esta comunidade conheceria
seus objetivos e se conheceria ela mesma como inteligência
coletiva. Aqui, não visamos mais o futuro do texto
clássico como na primeira parte de meu discurso,
nem a invenção de uma nova escritura como
na segunda parte, mas, para terminar, o basculamento em
direção a toda uma outra ecologia da comunicação.
A reunião dos documentos numerizados (digitalizados),
programas inteligentes, de sistemas à base de conhecimentos,
de suportes de simulação e de multimídias
interativos, é já virtualmente realizada
pela interconexão mundial de memórias informáticas.
As mensagens eletrônicas construíram uma
rede de comunicação internacional na qual
se podem trocar e comentar toda sorte de dados. Mas como
se orientar neste cyberspace onde correm mensagens e informações
de toda ordem? Como se localizar em um fluxo? É
preciso tentar desesperadamente fixar a forma do espaço
científico, traçar as fronteiras das disciplinas?
É preciso hierarquizar o essencial e o acessório?
Mas, segundo qual critério? Para quem e por quanto
tempo? Não é preciso antes se resolver a
considerar o conhecimento como um espaço contínuo
e flutuante, o mesmo para todos e diferente para cada
um? Por que não projetar uma galáxia de
mundos virtuais, exprimindo a diversidade dos saberes
humanos, que não estaria organizado a priori, mas
refletiria, ao contrário, os percursos e os usos
de seus exploradores?
Quase
vivas, essas cosmopedias(2) seriam estruturadas e reestruturadas,
cartografadas e recartografadas em tempo real pela escritura
e a leitura coletivas. Assim, o cyberspace de uma comunidade
se reorganizaria automaticamente em função
da relação movente que seus membros estabeleceriam
com a massa de conhecimentos disponíveis. Desde
que o indivíduo mergulhasse em uma cosmopedia,
todo o espaço do saber reordenar-se-ia em torno
dele, segundo sua história, seus interesses, suas
interrogações, suas enunciações
anteriores. Tudo o que a ele se referisse estaria próximo,
ao alcance da mão. O que lhe importasse pouco distanciar-se-ia.
As distâncias aí seriam subjetivas, as proximidades
refletiriam as significações em contexto.
As cosmopedias do século XXI não fariam
mais as pessoas girarem em torno do saber, mas o saber
em torno das pessoas.
O
dispositivo das árvores de conhecimentos(3) doravante
tecnicamente disponível é a prefiguração
deste projeto. Até agora, visaram-se sobretudo
realidades virtuais que simulavam os espaços físicos.
Ora, eu falo aqui de produções de espaços
simbólicos, que exprimiriam sob forma de mundos
virtuais as significações e o saberes próprios
a uma coletividade. Esses espaços virtuais, com
a implicação direta e a componente tátil
que a palavra sugere, exprimiriam em tempo real os conhecimentos,
os interesses, os atos de comunicação da
coletividade. Na perspectiva dos mundos virtuais de significações
divididas, a comunicação não é
mais concebida como difusão de mensagens, troca
de informação, mas como emergência
continuada de uma inteligência coletiva. Não
se deve, evidentemente, concebê-la como uma fusão
de inteligências individuais em uma espécie
de magma indistinto, mas, ao contrário, como um
processo de crescimento, de diferenciação,
de ramificação e de retomada mutual de singularidades.
Os
instrumentos numéricos (digitais) oferecem a possibilidade
de uma evolução em direção
a uma maior democracia em relação ao saber.
Mas nada é garantido. A hora na qual cada um reconhece
que o conhecimento é o fundamento do poder, quando
se repete por todos os lugares que a capacidade de aprender
e de inventar sustenta o poder econômico, não
há talvez outra via para uma renovação
da democracia que não imaginar e colocar em obra
formas não-excludentes de relação
com o saber. Com este objetivo, a ideografia dinâmica,
a cosmopedia, os mundos virtuais de significação
dividida, o cyberspace para a inteligência coletiva
são utopias que proponho à discussão
crítica. Se nunca tais possibilidades virem o dia,
então o Livro, a biblioteca, o imenso corpus proliferante
e louco do saber, cessariam de nos sobrepor e de nos desenganar.
A transcendência do texto começaria a declinar.
Nós seríamos, talvez, menos irradiados pelo
espetáculo mediático. A imanência
do saber à humanidade que o produz e o utiliza,
a imanência do povo ao texto, tornar-se-ía
mais visível.
Por
intermédio dos espaços virtuais que os exprimiriam,
os coletivos humanos se jogariam a uma escritura abundante,
a uma leitura inventiva deles mesmos e de seus mundos.
Como certos manifestantes desse fim deséculo gritaram
nas ruas “Nós somos o povo”, poderemos
então pronunciar uma frase um pouco bizarra, mas
que ressoará de todo seu sentido quando nossos
corpos de saber habitarem o cyberspace: “Nós
somos o texto.” E nós seremos um povo tanto
mais livre quanto mais nós formos um texto vivo.
FONTE:
http://portoweb.com.br/PierreLevy/nossomos.html