Palavra Criativa

Técnicas de Escrita Criativa & Reflexões sobre o Acto de Escrever

O escritor convida o leitor para uma dança:

A arte de elaborar parágrafos iniciais numa narrativa ficcional (*)

João de Mancelos

 

Resumo
Numa narrativa literária, como cativar o interesse do leitor desde o início? Existem diversas técnicas que a Escrita Criativa como área disciplinar coligiu a partir da análise cuidada de uma grande variedade de obras. Neste ensaio, o meu objectivo principal é descrever, exemplificar com excertos de textos literários nacionais e estrangeiros, comentar e problematizar o uso das estratégias que podem fazer a diferença entre um bom e um mau parágrafo inicial.

Abstract

In a literary narrative, how can an author capture the interest of the reader right from the beginning? There are several techniques that Creative Writing as an a area of studies gathered based upon the careful analysis of a great diversity of quality texts. In this essay, my main goal is to describe, exemplify with excerpts from Portuguese and foreign literary works, comment and interrogate the use of those strategies that make the difference between a good and a bad first paragraph.

The beginning is the most delicate moment.

Frank Herbert, Dune (1965)

1. Um bom começo

João de MancelosQuando era adolescente, visitei uma feira do livro, a decorrer num pavilhão de exposições, em Aveiro. O meu pai, que sempre me encorajou à leitura, decidiu presentear-me com uma obra à escolha. Depois de hesitar longamente entre livros de banda desenhada e volumes sem ilustrações, optei por um romance do autor inglês Eric Ambler (1909-1998), intitulado Correndo contra o Tempo (The Care of Time, 1981). O que distinguia, à primeira vista, esse thriller de tantos outros não era o título, traduzido por uma frase feita, nem sequer a capa, aliás bastante dinâmica, onde pontificava o desenho de um avião a despenhar-se. Escolhi aquele romance de acção simplesmente por causa das duas linhas iniciais, que me sobressaltaram: “O aviso chegou na segunda-feira; a bomba na quarta. A semana prometia ser movimentada” (Ambler, 1984: 7). Soava prometedor e, de facto, o enredo de Correndo contra o Tempo não me decepcionou: página a página, desenrolava-se uma história empolgante de espiões e terroristas, decorrida em várias partes do mundo, e apimentada com algumas cenas ousadas que atraem sempre a atenção de qualquer leitor na idade das borbulhas.

Não tive oportunidade de ler outro romance de Ambler, apesar de a sua obra ser comparável à de Somerset Maughan ou de Graham Greene. Contudo, (muitos) anos depois, as primeiras linhas daquele romance ressoam na minha mente como o início perfeito para um thriller: as frases curtas sugerem um desenvolvimento acelerado da história; a referência ao aviso (anónimo) cria uma atmosfera de intriga e mistério; a bomba indicia perigo e antecipa uma acção literalmente bombástica. Já a segunda frase (“A semana prometia ser movimentada”) revela o tom irónico e humorístico do narrador, invulgar nos thrillers, usualmente escritos num registo mais dramático, e que se confirmaria nas páginas seguintes. Assim, a afirmação compele-nos a prosseguir a leitura para descobrirmos que outras tribulações ocorreram na tal semana negra. Não é por acaso que diversos teóricos da Escrita Criativa chamam hook (“anzol”) às linhas iniciais de uma história, pois são precisamente estas que prendem o leitor.

Na actualidade, continuo a ler o primeiro parágrafo e, por vezes, as duas ou três páginas iniciais de um livro, antes de me decidir a comprá-lo. Não estou só nesse hábito, muito pelo contrário. Há alguns anos, foi conduzido um inquérito informal junto dos frequentadores das livrarias de Manhattan, no coração de Nova Iorque. A sondagem revelava que muitas deles aproveitavam a hora de almoço para passarem uma vista de olhos quer pelas novidades editoriais, quer pelas obras mais antigas. Normalmente, liam apenas o título, a orelha do livro ou, quando muito, o primeiro parágrafo. Se este fosse convidativo e correspondesse às expectativas, o leitor adquiria a obra e dava a busca por terminada. Pelo contrário, quando a abertura não despertava a sua atenção (na ausência do tal anzol), o livro regressava à prateleira, e o eventual comprador prosseguia a sua pesquisa (Stein, 2003: 15).

2. As funções do parágrafo inicial num conto e num ensaio

Este inquérito reitera o primeiro parágrafo como um elemento importante para cativar o interesse do leitor por uma obra, seja ela ficcional ou de carácter científico. Costumo dizer aos meus alunos de Escrita Criativa que as primeiras linhas constituem o cartão-de-visita de um texto. Num conto, por exemplo, permitem:

a) Indicar o género em que a narrativa se insere;

b) Revelar o tom do texto e o estilo da escrita do autor;

c) Apresentar a personagem principal e, eventualmente, outras;

d) Interessar o leitor pelo problema enfrentado pelo protagonista ou alguém próximo a este;

e) Estabelecer o tempo e o lugar onde a acção se desenrola;

f) Criar interesse e expectativa no leitor;

g) Vislumbrar o conteúdo da história (Oliver, 2004: 54).

Num ensaio (um tipo de texto onde a criatividade também é importante), as pirmeiras linhas revelam o assunto a focar pelo investigador, o enquadramento teórico e, nalguns casos, o grau de profundidade da comunicação. Assim, o primeiro parágrafo ou incipit assume uma importância vital, como reconhece Louis Timbal-Duclaux, director da revista francesa Écrire Aujourd’hui: “[q]uando não há nada que nos obriga a ler, é o incipit que nos leva a continuar ou a abandonar [...] que determina o pacto de leitura entre o autor e o leitor” (Timbal-Duclaux, 1997: 57).

Este pacto é facilmente quebrado por toda uma série de circunstâncias intrínsecas ou exteriores à obra. Nos dias de hoje, é enorme a quantidade de títulos nacionais ou estrangeiros lançados no mercado ou descarregáveis, por vezes até gratuitamente, da internet. Para um leitor, tal sortido é um festim, pois representa a oportunidade de se deliciar com o trabalho de inúmeros autores de várias épocas, correntes e culturas. Para um aprendiz de escritor, ou para quem há pouco se estreou nas letras, essa diversidade corresponde a uma concorrência. Imagine que um leitor distraído ou um crítico impaciente abre um livro recém-publicado e lê um primeiro parágrafo desinteressante, extenso ou mal redigido. A reacção será, provavelmente, encolher os ombros, abandonar o livro à sua sorte, e folhear a obra seguinte. Afinal, com tantos volumes disponíveis, para quê despender tempo com um que começa mal?

Nesta altura, talvez o leitor deste ensaio erga uma sobrancelha e me recorde que as primeiras impressões podem ser (e tantas vezes o são) enganadoras. Concordo e reconheço que há obras incontornáveis, mas com um início bocejante. Um exemplo é o romance histórico Um Deus Passeado pela Brisa da Tarde (1994), de Mário de Carvalho (1944- ), que mereceu o Grande Prémio da Associação Portuguesa de Escritores. O parágrafo inicial do texto é demasiado extenso e labiríntico, obrigando-nos a uma segunda ou terceira leitura para clarificar o significado. Contudo, mal voltamos a primeira página, deparamo-nos com uma narrativa límpida e sagaz, escorada por uma investigação rigorosa, e não conseguimos poisar o livro. No final do romance, apercebemo-nos de que teria sido uma pena se tivéssemos fechado a obra depois de ler um incipit tão pouco convidativo. Porém, foi precisamente esse o risco que Carvalho correu nas circunvalações da primeira página de Um Deus Passeado pela Brisa da Tarde.

Por isso mesmo, das duas dezenas de manuais de escrita criativa que habitam na minha estante, nenhum deixa de referir a importância do incipit e todos concorrem em conselhos mais ou menos parecidos sobre como principiar bem uma narrativa ou um ensaio. Jenny Newman, uma teórica inglesa da arte da escrita, autora dos romances Going In e Life Glass, realça de forma concisa e peremptória a característica fundamental de um primeiro parágrafo eficaz: “Any paragraph that engages your reader is a success. Any other is a failure” (Newman, 2004: 54). A palavra-chave desta afirmação é engage, um termo que em Português significa, entre outras coisas, “atrair”, “prender”, “convidar para dançar”. Neste contexto, um incipit funcional atrai a atenção do leitor, prende-o à obra, convida-o para uma dança de fantasia.

O que faz um bom princípio? Não há segredos, regras nem tão pouco receitas para escrever uma narrativa susceptível de cativar logo no incipit. Existem, isso sim, técnicas que a Escrita Criativa como área disciplinar foi coligindo ao longo de décadas, a partir do registo e análise rigorosa uma grande variedade de obras de qualidade, saídas da pena de escritores consagrados ou de amadores. Estas técnicas são ora simples ora complexas, e a sua aplicabilidade requer esforço, disciplina, inspiração e talento.

Neste ensaio, o meu objectivo principal é descrever, exemplificar com excertos de obras nacionais e estrangeiras, comentar e problematizar o uso das estratégias que podem fazer a diferença entre um bom e um mau começo. O meu fim secundário é levar o eventual aprendiz de escritor a reflectir sobre a natureza destas técnicas para que, se tiver o talento e perseverança, a surpreender os leitores, subvertendo-as com imaginação.

3. Tipos de parágrafos iniciais

Jimmy McGovern, um guionista televisivo e autor da série policial inglesa Cracker, quando lê uma história de um escritor estreante ou de um colega mais experiente, pergunta: “Where’s the bomb?” (Singleton, 2000: 112). Não está necessariamente à espera de encontrar um engenho suspeito, a tiquetaquear, no primeiro parágrafo da narrativa, mas sim à procura do elemento que desencadeia a acção. No romance Correndo Contra o Tempo, de Ambler, esse componente é o aviso anónimo, susceptível de causar formigueiros ao leitor.

No entanto, a abertura pode ser simplesmente a decisão de comprar flores para uma festa, como sucede no quarto romance de Virginia Woolf (1882-1941), Mrs. Dalloway (1925): “Mrs Dalloway said she would buy the flowers herself” (Woolf, 1989: 5). Aparentemente, trata-se de um acto trivial sem grande impacto narrativo. No entanto, o primeiro parágrafo é constituído apenas por esta frase, destacando-a assim, até na própria mancha tipográfica. Paulatinamente, o leitor percebe que Clarissa Dalloway estava habituada a ter criados para a auxiliarem nas tarefas do quotidiano. Assim, a iniciativa de comprar flores reveste-se de um significado mais profundo, pois representa um corte com a rotina, uma vontade de agir, um desejo de independência. Ao mesmo tempo, ao nível do enredo, funciona como pretexto para retirar Clarissa da segurança (ou opressão?) do lar, e fazê-la contactar com diversas personagens importantes para a sua caracterização. Uma simples frase suscitará uma história plena de reflexões acerca da relação da mulher com o seu corpo, a memória, a família e a sociedade.

De facto, um enredo não carece de uma acção física; pode muito bem ser, à maneira de Anton Checkhov (1860-1904), um drama de natureza íntima. Como afirma a escritora norte-americana contemporânea Joyce Carol Oates (1938- ), determinados enredos são “wholly interior, seemingly static, a matter of the progression of a character’s thought” (Oates, 1994: 3). No entanto, seja uma narrativa de acção ou um drama íntimo, todo e qualquer elemento plausível, imaginativo e motivador que retire o protagonista do conforto quotidiano, o perturbe ou o chame para a aventura é, metaforicamente, uma bomba. Sem isso, não existe uma história, porque não se gera nem a tensão nem o conflito que desencadeiam a busca, interior ou física, da personagem.

Apresentar esse elemento no início de uma narrativa, por si só, não suscita necessariamente o interesse do leitor; um corpo não está vivo até lhe serem insufladas alma e verosimilhança. No manual Solutions for Writers: Practical Craft Techniques (1995), uma das obras mais manuseadas pelos aprendizes de escritores, o autor, Sol Stein, argumenta que um parágrafo inicial cativante deve cumprir um ou mais dos seguintes objectivos:

a) Suscitar a curiosidade do leitor acerca de uma personagem;

b) Gerar um cenário interessante para a história;

c) Criar uma atmosfera (Stein, 2003: 16).

A estes objectivos, eu acrescentaria dois:

d) Chocar ou surpreender o leitor;

e) Introduzir um elemento de mistério e intriga.

Vejamos alguns exemplos elucidativos, retirados de obras de autores nacionais e estrangeiros, para melhor compreendermos os vários tipos de início, as suas implicações e o género de história a que melhor se adaptam.

3.1. Suscitar a curiosidade do leitor acerca de uma personagem

Um primeiro tipo, sugerido por Stein, consiste em suscitar o interesse do leitor acerca de uma personagem. Ocorre-me o exemplo da narrativa “Homero”, de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), inserido na obra Contos Exemplares (1962):

Quando eu era pequena, passava às vezes pela praia um velho louco e vagabundo a quem chamavam o Búzio.

O Búzio era como um monumento manuelino: tudo nele lembrava coisas marítimas. A barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma (Andresen, 1992: 147).

Andresen insufla vida numa personagem de papel e tinta, através do recurso a adjectivos (louco e vagabundo), a uma comparação inovadora entre o Búzio e o monumento manuelino, e a uma metáfora que, apesar de pouco original, é sugestiva e identifica o velho com o oceano (“A barba branca e ondulada era igual a uma onda de espuma”). Em escassas linhas (um parágrafo e o início do seguinte), a narradora imprime na mente do leitor a imagem de um vagabundo idoso e perturbado, uma presença intrigante sobretudo para uma rapariga atenta. A propósito deste homem, podemos perguntar-nos: quem é o Búzio? por que enlouqueceu? o que o faz percorrer as praias? de que modo marcou a narradora? qual a relação entre o Búzio e o título do conto (“Homero”)? E somos compelidos a prosseguir a leitura, para encontrar respostas (ou talvez mais questões). Em suma, a descrição da personagem funcionou como um início motivador para uma história exemplar, escrita num tom lírico, acerca de um vagabundo ao mesmo tempo comum e misterioso, pobre de haveres e sábio de palavras.

3.2. Gerar um cenário interessante para a história

Outra forma de começar uma narrativa consiste em gerar um cenário interessante e adequado ao enredo. Este tipo de início inspira-me algumas reservas que convém partilhar com o leitor deste ensaio. A estrutura e a extensão de um romance permitem que o autor despenda vários parágrafos em descrições mais ou menos pormenorizadas de espaços, épocas, personagens, animais e objectos, para suscitar na mente do leitor uma imagem vívida destes. Nos séculos XVIII e XIX, esta técnica era frequente nos romances e também nas novelas inglesas e francesas. Tanto as irmãs Annie (1820-1849), Charlotte (1816-1855) e Emily Brontë (1818-1848), como Jane Austen (1775-1817) ou mesmo Thomas Hardy (1840-1928) prolongavam-se por várias páginas, com descrições que oscilavam entre o muito enfadonho, o bocejante e o suportável. Talvez esteja a ser injusto, dado que alguns desses retratos conseguiam capturar o espírito da época e até imortalizá-la, com mestria. Recordo, por exemplo, a descrição feita por Charles Dickens (1812-1870) da cidade industrial de Coketown, em Hard Times (1854), da precisa panorâmica de Paris, pela pena de Victor Hugo (1802-1885), em O Corcunda de Nôtre Dame (1831), ou da alma de Lisboa em vários romances de Eça de Queirós.

Naturalmente, a época em que esses autores viveram possibilitava, pelo menos às classes mais altas, tempo livre suficiente para que pudessem entreter-se, à lareira, ao longo de vários serões, com descrições extensas deste ou daquele lugar. Como as pessoas viajavam menos, os romancistas pintavam com palavras cidades inteiras, filtrando-as com a sua sensibilidade e traduzindo-as para o leitor com mestria. Na actualidade, o público é mais culto e viajado e, graças à televisão, à imprensa fotográfica e à internet, já não carece de exposições minuciosas, sendo perfeitamente capaz de imaginar Paris ou Lisboa, a partir de meia dúzia de linhas.

Os longos retratos são de evitar sobretudo no conto, que é por definição uma narrativa breve, com uma unidade de efeito (isto é, coesa), pronta para ser lida de uma assentada, como afirmava o mestre das histórias de terror Edgar Allan Poe, numa das primeiras reflexões sobre a arte da escrita, The Philosophy of Composition (1850). O conto tem uma economia específica, onde só há espaço para o essencial, sem devaneios nem exposições que muitas vezes mergulham o enredo num oceano de irrelevâncias.

Assim, o autor não pode exceder-se ao descrever cenários ou personagens, sob pena de aborrecer o destinatário, de gerar uma desproporção entre as várias partes da história, e de subtrair ao leitor o direito e o prazer de imaginar. Por isso mesmo, prefiro as histórias que começam com uma bomba e mergulham directamente no assunto, ou até mesmo as que principiam in medias res, como explica o teórico da literatura Frank Myszor:

The contrasting style, which begins in medias res (in the middle of the action), grew in popularity from the time of the modernists, although it had been used before them, in the work of Kate Chopin, for example. [...] The technique reached its peak in the stories of Hemingway and Faulkner, and this influence continued into the 1980s in the work of Raymond Carver (Myszor, 2001: 61).

No entanto, há histórias onde o cenário desempenha um papel importante, por ser simbólico ou apresentar alguma semelhança com o estado de espírito da personagem, por exemplo. O conto “A Queda da Casa de Usher” (“The Fall of the House of Usher”, 1839), de Poe, é um caso onde o aspecto sinistro de uma mansão e a atmosfera de trovoada reflectem o estado de espírito de um visitante:

Durante um dia carregado, sombrio e mudo do Outono desse ano, em que as nuvens pairavam no céu opressivamente baixas, atravessava sozinho, a cavalo, uma porção de campo estranhamente lúgubre; e acabei por me encontrar, ao cairem as sombras do final da tarde, à vista da melancólica Casa de Usher. Não sei como tal aconteceu, mas, mal pousei o olhar no edifício, apossou-se-me do espírito uma insuportável tristeza. Digo insuportável porque tal sensação não era sequer mitigada por qualquer desses sentimentos meio agradáveis, porque poéticos, com que o espírito normalmente acolhe mesmo as mais sombrias imagens naturais da desolação ou do terror. Contemplei o cenário que tinha diante de mim ­— a casa solitária e as características simples da paisagem, as paredes fustigadas pelo vento, as janelas vazias que pareciam olhos, algumas junças luxuriantes e uns tantos troncos brancos de árvores definhadas — com uma extrema depressão de ânimo para a qual não encontro comparação mais adequada com alguma sensação terrena que não seja a que sobrevém ao sonho da orgia do ópio: a amarga queda na vida quotidiana; o medonho tombar do véu. Havia uma frieza glacial, um abatimento, um mal-estar uma irremediável escuridão de pensamentos que nenhum aguilhão da imaginação poderia deturpar, transformando-o em algo de sublime. Que seria — detive-me a pensar — que seria que tanto me desalentava na contemplação da Casa de Usher? (Poe, 1998: 57, 58).

Neste excerto do primeiro parágrafo, o narrador homodiegético descreve o edifício senhorial e seus arredores com um vocabulário criteriosamente escolhido para suscitar o medo e a inquietação no leitor. Apesar do excesso de advérbios e de adjectivos, que revelam até um desejo de exactidão, tudo contribui para a unidade de efeito que Poe preconizava e que é, afinal, a capacidade de criar uma atmosfera — outro processo de abrir uma história que merece alguma explicação.

3.3. Criar uma atmosfera

O termo atmosfera apresenta várias acepções de acordo com o contexto em que é empregue. Fala-se da atmosfera de uma época (o espírito dos anos vinte, por exemplo), de um lugar (a vida mediterrânica), de um género (a envolvência dos contos de terror) (Mills, 2003: 123, 124). Para mim, atmosfera engloba uma combinação subtil em que imagens e sons, impressões subjectivas e acontecimentos, ressoam na mente do leitor, ajudando-o a entranhar-se no universo ficcional. William Faulkner, por exemplo, criou em vários dos seus romances uma atmosfera de colorido regional, ao inventar um país, Yoknapatahawpha, onde condensou as características do sul dos EUA: um cenário sobretudo campestre, com povoamento disperso; uma população constituída por rednecks e ex-escravos; um espírito saudosista das oligarquias de outros tempos, etc. Na actualidade, o escritor mexicano-americano Rudolfo Anaya (1937- ) constrói em vários contos e romances uma atmosfera de realismo mágico, onde a paisagem, as tradições e as lendas do Novo México se combinam. A abertura da sua obra-prima, o romance de estreia Abençoa-me, Ultima (1972), é um exemplo trabalhado desta arte:

Ultima veio viver connosco nesse Verão em que eu tinha sete anos de idade. Quando ela chegou, a beleza do llano abriu-se perante os meus olhos e as águas gorgolejantes do rio cantaram ao ritmo do sussurro da terra em movimento. O tempo mágico da infância permanecia imóvel e o pulso da terra viva empurrava o seu mistério para dentro das minhas veias. Ela pegou na minha mão e os poderes silenciosos e mágicos que possuíam espalharam em redor uma beleza feita do llano despido e afogado no calor do sol, do vale verde do rio e da abóbada azul onde vive o sol, intenso e branco. Os meus pés descalços sentiram o pulsar da terra e o meu corpo tremeu de entusiasmo. O tempo parou e partilhou comigo tudo o que tinha vindo antes e depois, e tudo o que estava para vir... (Anaya, 2005: 17).

A beleza metafórica do texto, escorada pela aplicação de verbos enérgicos e por vários adjectivos, traduzem o ambiente de maravilhoso e de onírico que nimba o romance. O leitor é preparado, ab initio, para respeitar e acarinhar a figura de Ultima, a curandeira velha e sábia que assistirá o pequeno Antonio na descoberta da sua identidade e da paixão pela terra-mãe.

Na bibliografia pertencente ao género do fantástico e da ficção científica, a criação de uma atmosfera de estranheza (elsewhere), ou de utopia (nowhere), é fundamental. A abertura do romance ET: O Extraterrestre (1985), do escritor norte-americano e argumentista William Kotzwinkle (1943- ) é um caso paradigmático:

A nave espacial flutuava suavemente, ancorada à terra por um feixe de luz lavanda. Se alguém fosse aparecer neste local de aterragem, poderia, durante um momento, pensar que um gigantesco ornamento de uma velha árvore de Natal caíra do céu nocturno — pois a nave era redonda, reflectiva e apresentava uma inscrição de um delicado desenho gótico (Kotzwinkle, 1982: 5).

Neste trecho, bastante breve, a comparação entre o engenho alienígena e a estrela de um pinheiro enfeitado para o Natal ajuda o leitor a visualizar a cena insólita e, portanto, a aceitar com mais facilidade esta inverosimilhança. Não é, no fim de contas, uma das qualidades de um bom escritor tornar o estranho familiar e o familiar estranho? O facto de o Kotzwinkle se concentrar no elemento visual não constitui um acaso: o autor é conhecido pelas suas ligações à sétima arte que vive sumamente da imagem. O filme ET: O Extraterrestre (1982), do realizador Steven Spielberg, com fotografia de Allen Daviau, impôs-se como um dos maiores êxitos de bilheteira dos anos oitenta, arrebatando óscares para melhor banda sonora, melhores efeitos especiais, melhor som e melhor edição sonoplástica (Merschmann, 2002: 108).

Como criar atmosfera num conto? A teórica da escrita criativa e psicoterapeuta inglesa Cathy Birch sugere várias técnicas, simples, para desenvolver um sentido de ambiente:

a) O escritor pode passear pelo local onde decorre a acção da sua história, se este for real, para absorver o genius loci.

b) Estudar atentemente o trabalho de outros escritores, para desvendar as técnicas que estes emrpegaram;

c) Imaginar uma banda sonora para a história (aliás, são inúmeros os autores que trabalham ao som da música, escolhendo melodias em consonância com a atmosfera que desejam criar);

d) Trabalhar com cores, atribuindo a cada atmosfera uma determinada tonalidade (Birch, 2002: 61). O cor-de-rosa, deduzo, seria apropriado para um ambiente romântico; o azul-escuro para uma cena nocturna; o violeta para evocar memórias, etc.

3.4. Chocar ou surpreender o leitor

Que situações criam suspense? O teórico da escrita criativa e agente literário Evan Marshall sugere que o parágrafo inicial deve apresentar uma crise (ou, acrescento, um conflito ou desafio). Uma crise, para o ser verdadeiramente, tem de cumprir três requisitos:

a) Ser adequada ao género literário da narrativa e ao destinatário da obra;

b) Virar do avesso a vida do protagonista, tornando-se numa prioridade a resolver;

c) Suscitar o interesse do leitor (uma crise invulgar, dilemática ou chocante, por exemplo) (Marshall, 2000: 16).

No contexto da última alínea, um parágrafo inicial que escandalize ou surpreenda o leitor tem sempre impacto garantido e gera um irresistível desejo de prosseguir a leitura. O escritor austríaco Franz Kafka (1883-1924) consegue tudo isto no seu extenso conto “A Metamorfose” (“Die Verwandlung”, 1915), em menos de quinze palavras: “Uma manhã, ao acordar de sonhos inquietos, Gregor Samsa viu-se transformado num gigantesco insecto” (Kafka, 1996: 19). A reacção a este evento pode variar de leitor para leitor: muitos horrorizar-se-ão; alguns experimentarão fascínio; outros, piedade pelo protagonista. Em comum, todos se sentirão compelidos a prosseguirem a leitura depois de um início tão insólito quanto provocante.

3.5. Introduzir um elemento de mistério e intriga

Por vezes, uma história principia de uma forma mais subtil, mas também carregada de mistério. Na obra The Woman Warrior: Memoirs of a Girlhood Among Ghosts (1976), uma mistura entre autobiografia e ficção, a escritora chinesa americana Maxine Hong Kingston (1940- ) intriga o leitor com as palavras introdutórias: “ ‘You must not tell anyone,’ my mother said, ‘what I am about to tell you” (Kinsgton, 1976: 3). Em apenas duas linhas, a atenção do leitor é suscitada pelo clima de confidência e secretismo. O que vai revelar a mãe à filha? Porque não pode esta contar a ninguém? É, possivelmente, um segredo, talvez de família. Divulgá-lo equivalerá a quebrar um tabu? Até que ponto a destinatária preferirá não conhecer o conteúdo da mensagem? A mente do leitor, debate-se num redemoinho de hipóteses, que só a leitura acalmará.

Este tipo de parágrafo tem a vantagem e o risco inerentes ao imediatismo: por um lado, garra com facilidade o leitor; por outro, exige um desenvolvimento à altura do interesse suscitado, sob pena de diluir o efeito de surpresa e de o desapontar, como uma promessa quebrada.

Um dos melhores exemplos que conheço é o parágrafo inicial do romance da escritora norte-americana Kathryn Harrison, O Beijo (The Kiss, 1997): “Encontramo-nos em aeroportos. Encontramo-nos em cidades onde nunca tínhamos estado. Encontramo-nos onde não possamos ser reconhecidos por ninguém” (Harrison, 1997: 11). As frases curtas e o paralelismo geram uma cadência quase hipnótica, em sintonia com o estilo geral da obra, feito de revelações e testemunhos íntimos sobre o amor proibido entre uma filha e um pai. O parágrafo aponta para espaços públicos e, por isso mesmo, anónimos, numa gradação cada vez mais abrangente: aeroportos, cidades desconhecidas, qualquer lugar onde ninguém identifique os amantes. A estes locais incaracterísticos, frios até, opõem-se a cumplicidade, a partilha apaixonada, e também o sentimento de culpa. O clima de confidência entre a narradora e o leitor estádefinitivamente traçado no início O Beijo, um romance que merece várias leituras.

4. Conclusões

O início de uma narrativa ficcional condiciona largamente o desejo de prosseguirmos ou abandonarmos a leitura. O escritor, tendo em conta o género do texto, deve encontrar simultaneamente uma forma clara e eficaz de captar a atenção, e de criar uma crise (tensão, conflito, desafio) que desencadeie a procura do protagonista. Nesta linha, o autor pode suscitar a curiosidade acerca de uma personagem relevante para o enredo; gerar um cenário curioso; criar uma atmosfera; chocar ou surpreender; introduzir um elemento de mistério e intriga.

A aplicação de cada uma destas técnicas requer conhecimento, sensibilidade, arte e esforço. O conhecimento advirá da leitura crítica e atenta de obras literárias, de ensaios de escrita criativa e de teoria da literatura; a sensibilidade e arte, pré-requisitos essenciais a qualquer escritor, desenvolvem-se através de várias estratégias e exercícios, e aperfeiçoam-se com a experiência; o esforço, ligado à auto-disciplina, é a base do ofício ou actividade amadora de quem escreve.

Como em tudo, um bom começo resulta de uma definição clara de objectivos e de uma porfia segura. Para que as palavras “era uma vez”, transbordantes de possibilidades e de acasos, nos continuem a maravilhar, obra a obra.


Bibliografia

1. Bibliografia activa

Ambler, Eric. Correndo contra o Tempo [The Care of Time]. Trad. Emanuel Lourenço Godinho. Lisboa: Gradiva, 1984.

Anaya, Rudolfo. Abençoa-me, Ultima [Bless Me, Ultima]. Trad. Nuno Batalha. Prefácio João de Mancelos. Lisboa: Nova Vega, 2005.

Andresen, Sophia de Mello Breyner. Contos Exemplares. 25 ed. Lisboa: Figueirinhas, 1992.

Harrison, Kathryn. O Beijo [The Kiss]. Trad. Maria do Carmo Figueira. Lisboa: Editorial Bizâncio, 1997.

Kafka, Franz. A Metamorfose [Die Verwandlun]. Trad. Gabriela Fragoso. Lisboa: Editorial Presença, 1996.

Kingston, Maxine Hong. The Woman Warrior: Memoirs of a Girlhood among Ghosts. New York: Knopf, 1976.

Kotzwinkle, William. E.T.: O Extraterrestre [ET: His Adventure on Earth]. Trad. Raquel Martins. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1982.

Poe, Edgar Allan. Histórias Extraordinárias [Compilação]. 3a ed. Trad. J. Teixeira de Aguilar. Mem Martins: Publicações Europa-América, 1998.

Woolf, Virginia. Mrs Dalloway. London: Grafton Books, 1989.

2. Bibliografia passiva

Birch, Cathy. Awaken the Writer Within: Release your Creativity and Find your True Writer’s Voice. 2nd ed. revised. Oxford: How to Books, 2002.

Marshall, Evan. Novel Writing: 16 Steps to Success. London: A&C Black, 2000.

Merschmann, Helmut. Movies of the 80s. Ed. Jürgen Müller. Köln: Taschen, 2002.

Mills, Paul. Writing in Action. London: Routledge, 2003.

Myszor, Frank. The Modern Short Story. Cambridge: Cambridge UP, 2001.

Newman, Jenny, and Edmund Cusick, Aileen La Tourette. The Writer’s Workbook. 2nd ed. London: Arnold, 2004.

Oates, Joyce Carol (ed.). The Oxford Book of American Short Stories. New York: Oxford UP, 1994.

Oliver, Marina. Write & Sell your Novel: The Beginner’s Guide to Writing for Publication. 3rd ed. Oxford, UK: How to Books, 2004.

Singleton, John. “The Short Story”. The Creative Writing Handbook: Techniques for New Writers. 2nd ed. Ed. John Singleton, and Mary Luckhurst. New York: Palgrave, 2000. 100-128.

Stein, Sol. Solutions for Writers: Practical Craft Techniques for Fiction and Non-fiction. 4th ed. London: Souvenir Press, 2003.

Timbal-Duclaux, Louis. Eu Escrevo Contos e Novelas [J’Écris des Nouvelles et des Contes]. Trad. não mencionado. Lisboa: Editorial Pergaminho, 1997.

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(*) Mancelos, João de. “O Escritor Convida o Leitor para uma Dança: A Arte de Elaborar Parágrafos Iniciais numa Narrativa Ficcional”. Máthesis: Revista da Universidade Católica Portuguesa (Viseu), #15, 2006: 155-168.

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