O
“Jeca Tatu” de Monteiro
Lobato
Identidade
do Brasileiro e Visão do Brasil
Roberto
Bitencourt da Silva [1]
SILVA,
Roberto Bitencourt da. “O 'Jeca
Tatu' de Monteiro Lobato: Identidade
do Brasileiro e Visão do Brasil”.
In: 19&20 - A revista eletrônica
de DezenoveVinte. Volume II, n. 2,
abril de 2007. Disponível no
site: http://www.dezenovevinte.net/
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* *
No
curso das décadas posteriores
ao advento da Independência
formal, especialmente a partir dos
estertores do século XIX, a
produção literária
brasileira, e a de sabor científico,
não poupou esforços
em buscar as origens, as características
e o sentido da formação
nacional que ainda dava os seus primeiros
passos como coletividade e território
juridicamente soberanos. O exercício
de identificação das
especificidades históricas
e culturais do país e do seu
povo emergia, naturalmente, como um
imperativo histórico: de conservação
da integridade territorial, de integração
social, de elaboração
de um projeto de futuro e de atuação
do Estado no concerto da comunidade
internacional. Indagações
de corte filosófico (quem somos?
para onde caminhamos? quais os rumos
a seguir?), às vezes de modo
velado, outras vezes acentuadas explicitamente,
eram recorrentes nas aludidas produções
literárias e científicas
– estas até os anos 20/30
do século passado, em grande
parte, elaboradas sob um approach
ensaístico. Urgia, pois, entender
e explicar o Brasil e o seu povo,
desvelar as suas origens, os seus
dilemas e as suas peculiaridades culturais,
étnicas, políticas etc.
– diga-se, uma ordem de preocupações
comum a todas as sociedades que, sob
o influxo do capitalismo, organizavam-se
sob a forma do Estado nacional. Uma
obra freqüentemente levada a
cabo, ontem e hoje, por atores envolvidos
com a produção cultural
e científica, e veiculada coletivamente
por múltiplos agentes políticos,
órgãos públicos
e instituições da mídia.
Sem
lugar a erro, tal empreendimento intelectual
não era nada fácil em
se realizar nas condições
brasileiras do oitocentismo e do início
do século XX. Um Estado, se
assim podemos nos referir aos parcos
organismos do Poder Público
então estruturados, erguido
havia pouco tempo, uma sociedade que
se formou sob o patrocínio
da transplantação cultural
portuguesa, dos braços africanos
para cá trazidos à força,
e da eliminação física
e cultural dos povos indígenas,
em outras palavras, uma nação
gestada sob a marca de um passado
colonial e da escravidão, composta
por elementos étnico-culturais
diferenciados, evidentemente não
oferecia um legado de mitos, de valores
e de tradições urdidos
ao longo de séculos, que lançasse
as bases da dinâmica de uma
memória razoavelmente compartilhada
coletivamente. Se o processo de construção
da moldura identitária das
nações européias
não foi uma operação
política e intelectual simples,
menos ainda se pode supor ter sido,
e ainda o ser, no Brasil – um
país formado não por
uma evolução orgânica
e autóctone de suas forças
materiais e espirituais, mas sim gestado
por determinações alheias
à peculiar realidade que conformava
os povos nativos. Daí a envergadura,
até hoje presente, do desafio
criativo de se construir e representar
simbolicamente uma identidade brasileira
e uma perspectiva de nação
que tenha a sociedade brasileira como
centro de referências e de preocupações.
Como
esforço incipiente nesta direção,
vale destacar o pensamento de José
Bonifácio. Envolto em um oceano
de desinteresse e de incompreensão,
à época dos debates
constituintes em torno da definição
dos rumos políticos e legais
que tomaria o país recém
saído do desligamento com a
metrópole portuguesa, o mineralogista
José Bonifácio apresentava
em seus esparsos escritos uma lúcida
interpretação do Brasil
e da necessidade de se lançar
os fundamentos da nacionalidade [2].
Proeminente personagem do processo
da Independência, Bonifácio
ardorosamente defendia o fim da escravidão
e a adoção de medidas
de caráter estrutural que permitissem
a integração dos negros
à nação. Na sua
ótica, uma nação
não poderia ser realmente independente
sob a base de um todo heterogêneo,
marcado pela marginalização
de um amplo segmento social das liberdades
e dos meios de vida. Pragmático,
considerava que de nada adiantava
a promulgação de leis
liberais sem reformas de fundo, que
proporcionassem a construção
de uma comunidade nacional. A escravidão,
para o “Patriarca da Independência”,
além de configurar uma imoralidade,
inviabilizava o estímulo à
solidariedade coletiva e ao progresso
técnico. Esposando a perspectiva
de uma nação homogênea,
apoiada em valores e em princípios
comungados por brancos, negros e índios,
ainda que sob a hegemonia branca senhorial,
suas teses lhe trouxeram a oposição
da casta de senhores de terras e a
prisão e o exílio. Provavelmente,
da visão de Brasil oferecida
pela pena de José Bonifácio,
a idéia de um cenário
natural portentoso, generoso em sua
abundância e fertilidade, tenha
sido a mais palatável e difusa
nos quadros culturais e ideológicos
brasileiros da época, marcando
ainda forte presença no imaginário
nacional.
No
processo de construção
de uma visão de Brasil e dos
brasileiros, a primeira a obter repercussão
foi, no seio do campo literário,
o Romantismo indianista de José
de Alencar [3], que converteu a figura
do índio em símbolo
do povo brasileiro. Influenciado pela
concepção rousseauniana
do estado de natureza humano, a imagem
do índio desenhada por Alencar
tinha em vista consagrar uma pretensa
bondade do brasileiro e evidenciar
as raízes do país, em
marcante posição antilusitana.
Todavia, em virtude das transformações
sociais e econômicas experienciadas
no Brasil, já em fins do século
XIX a representação
simbólica da totalidade do
povo brasileiro por um segmento étnico
singular (o elemento indígena)
cai em desuso no campo intelectual.
Não obstante, o componente
simbólico da generosidade será
apropriado, de diferentes formas,
por inúmeros escritores, obras
e canais de comunicação
e do poder, a posteriori.
Na
virada do século, no terreno
propriamente científico, Euclides
da Cunha fornecia ao imaginário
cultural brasileiro uma poderosa imagem:
a de que o sertanejo era, antes de
tudo, um forte. Descrevendo e analisando
o conflito rural que envolveu os sertanejos
liderados por Antônio Conselheiro
e as forças policiais da Bahia
e o Exército, no arraial de
Canudos, o autor apresentou às
populações citadinas
e litorâneas um Brasil esquecido
e posto à margem dos debates
intelectuais e da atenção
das autoridades públicas. Sem
embargo a adoção de
pressupostos típicos do racismo
científico nas páginas
de Os Sertões, teoria paradigmática
à época, a idéia
de força e de bravura do homem
simples, que persistentemente luta
contra as adversidades, encarna, até
os dias que correm, um influente e
fluido elemento simbólico de
representação identitária
do brasileiro, também aproveitado
e reapropriado por atores sociais
os mais diversos.
Para
o que nos interessa abordar em especial,
na segunda década do século
XX emerge na cena literária
e jornalística um novo personagem
detentor de um expressivo vigor representativo
do povo brasileiro: o “Jeca
Tatu”, criado por Monteiro Lobato.
Este simpático e folclórico
personagem foi submetido a uma fecunda
análise sociológica
pelo professor Aluizio Alves Filho,
em seu livro As metamorfoses do Jeca
Tatu: a questão da identidade
do brasileiro em Monteiro Lobato,
publicado pela editora Inverta.
Alves
Filho, um notório, e cada vez
mais raro, intelectual atento aos
dilemas e desafios enfrentados pela
nação Brasilis, reconhecido
intérprete do pensamento social
e político brasileiro, proporciona
ao leitor um prodigioso recorte de
análise a respeito da questão
nacional e da produção
cultural brasileira, em particular.
Distanciando-se das tradicionais abordagens
que tendem a privilegiar aspectos
de corte subjetivo na interpretação
dos produtos e dos produtores culturais,
o autor, sem desconsiderar essa dimensão
criativa, põe em evidência
as condicionantes históricas
e sociais da produção
cultural, ao analisar o processo de
construção e de transformação
pelo qual sofre o personagem “Jeca
Tatu”.
Lançado
ao público em 1914, em artigo
publicado no jornal O Estado de S.
Paulo, intitulado “Velha praga”,
o personagem revela a ótica
pela qual Lobato enxergava o trabalhador
rural: um sujeito obscurecido pela
preguiça e inapto à
civilização. As lentes
do então fazendeiro do interior
paulista identificavam em “Jeca
Tatu” uma síntese das
mazelas nacionais. Ademais, o arquétipo
do personagem esclarece em boa medida
as razões da triunfal recepção
de Monteiro Lobato pelos círculos
intelectuais, conquistada com o artigo
a que fizemos referência. Mobilizando
os cânones científicos
prevalecentes, a teoria da desigualdade
inata das raças, e o seu corolário
da degeneração racial
promovida pela miscigenação,
o personagem lobatiano – um
caboclo, mestiço, de barba
rala – caía nas graças
do público letrado precisamente
por proporcionar a identificação
da maioria que compunha a população
brasileira, integrada por trabalhadores
rurais, com o atraso e a inferioridade
do país em relação
às nações hegemônicas,
“civilizadas”. Com efeito,
a versão originária
do “Jeca” traduzia, significativamente,
a percepção das elites
sobre o povo brasileiro.
Entretanto,
de acordo com Alves Filho, no curso
das décadas de 1910 a 1940,
Lobato refina a caracterização
do “Jeca Tatu”, submetendo
o personagem a três metamorfoses:
na primeira, “Jeca” se
encontra doente e desassistido pelo
Estado; na segunda transformação
sofrida pelo personagem, “Jeca”
consiste em uma representação
do Brasil agrário e rural,
subdesenvolvido, em total descompasso
com a tessitura urbano-industrial
que tipificava os países que
comandavam o cenário político
e econômico internacional; por
fim, em sua última metamorfose,
o “Jeca” é convertido
em “Zé Brasil”,
arquétipo literário
do trabalhador explorado e de um país
submetido à espoliação
internacional. Para cada versão
do “Jeca” re-elaborada
por Lobato e, por extensão,
para cada interpretação
do Brasil e do seu povo, Aluizio Alves
Filho salienta uma etapa da trajetória
de vida de Monteiro Lobato e as matrizes
teóricas e ideológicas
por ele mobilizadas – dentre
estas, pode-se realçar o higienismo
de Osvaldo Cruz, o desenvolvimentismo
industrializante, o nacionalismo e
o marxismo.
Mui
oportunamente, Alves Filho chama a
atenção do leitor para
um fenômeno ocorrido com Lobato,
bastante revelador da cena cultural
e do campo intelectual tupiniquins:
conforme Lobato redimia o seu “Jeca
Tatu” – em um processo
de transferência da responsabilidade
pelas mazelas nacionais, que se dirigiu
do conservador e unilateral enfoque
racial para o sistema capitalista
internacional, passando pelo descaso
e pela alienação das
elites em relação ao
país e ao seu povo –,
a recepção do público
letrado ao “Jeca” diminuía,
na exata razão em que o escritor
problematizava as hierárquicas
e espoliativas relações
sociais cristalizadas no Brasil. Um
fenômeno sintomático
da alienação das nossas
elites (que poderiam ser representadas
por um outro “Jeca”, o
“Tutu”) e de uma expressiva
fatia da intelectualidade que busca,
ofegante e subalternamente, em cânones
e esquemas interpretativos ensejados
em outras praias a explicação
e a redenção da nação
Brasilis, secundarizando critérios
de análise que levem em consideração
a questão social e as relações
estabelecidas pelo país com
o exterior [4]. Lobato, no processo
de construção e de re-elaboração
da identidade do brasileiro por meio
do carismático personagem “Jeca
Tatu”, evidencia a alienação
que aludimos. Torna-se, de certo modo,
sua vítima, porque a face do
“Jeca”, e de sua representação
simbólica do Brasil e dos brasileiros,
que ainda em nossos dias tende a predominar,
é a do “Jeca” renitentemente
avesso à civilização.
O
leitor que não se encontra
refratário ao debate sobre
os dilemas e desafios nacionais, que
diverge da disseminada interpretação
de que a política e a economia
brasileiras devem espontaneamente
ser entregues ao sabor dos livres
movimentos do “mercado”
global e que se preocupa com a diluição
da nossa cultura em um caldeirão
cultural supostamente cosmopolita,
irá encontrar no livro de Aluizio
Alves Filho um grande estímulo
à reflexão.
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[1]
Mestre em Ciência Política
pelo PPGCP/IFCS da Universidade Federal
do Rio de Janeiro e professor do Instituto
Superior de Educação
de Itaperuna/Faetec da Secretaria
de Ciência e Tecnologia do Estado
do Rio de Janeiro.
[2]
Ver BONIFÁCIO, José.
“O pensamento vivo de José
Bonifácio”, apresentado
por Octavio Tarquínio de Souza,
in: Biblioteca do pensamento vivo
– o pensamento vivo de José
Bonifácio e Rui Barbosa. São
Paulo: Livraria Martins, 1965, p.
7-117.
[3]
Cf. SODRÉ, Nelson Werneck.
Síntese de história
da cultura brasileira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira,
8a ed., 1980.
[4]
Uma prática intelectual analisada
com lucidez pelo filósofo Álvaro
Vieira Pinto, que considera o generalizado
modo de apropriação
de idéias e de princípios
científicos forâneos,
no Brasil, como um típico uso
superficial dos frutos da ciência,
pois explorados apenas como “bens
de consumo”, tendo em vista
a obtenção de prestígio
social ou a demonstração
de atributos eruditos. A incorporação
original do conhecimento, sob a forma
de “bem de produção”,
isto é, como um instrumento
ativo de reflexão e de ação
prática sobre a realidade nacional,
tende a ser, segundo o filósofo,
candidamente obscurecida nos quadros
intelectuais do país e do mundo
“subdesenvolvido” como
um todo. Sobre o assunto, consultar
PINTO, Álvaro Vieira. Ciência
e existência. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2a ed., 1979.
Fonte:
http://www.dezenovevinte.net/resenhas/jecatatu_rb.htm