O
rosto feminino do franciscanismo
por: Fr. Fabiano Aguilar Satler, ofm
O primeiro rosto do franciscanismo que eu
conheci foi feminino. No ano de 1991, chegaram à minha
pequena e interiorana cidade natal na região serrana
do estado do Espírito Santo quatro irmãs da
Congregação das Irmãs Franciscanas da
Imaculada Conceição: Leocádia, Rosa
Nair, Raquel e Joana. Irmã Leocádia foi
substituída pouco depois por Ir. Odélia.
Irmã Raquel já se encontra na bem-aventurança
eterna, depois de uma luta contra um câncer que a vitimou
ainda jovem. Joana deixou a vida religiosa e trabalha como
enfermeira. Rosa está, neste momento em que escrevo,
em missão na Costa do Marfim. Carrego em meu coração
em relação a todas e a cada uma delas um afeto
e um carinho que, apesar da distância geográfica
e cronológica, mantêm-se acesos e aquecem o meu
coração.
À distância, sentado junto às oliveiras
da igrejinha de São Damião, em Assis, com o
mesmo sibilar do vento no meio das árvores e o mesmo
canto dos pássaros do tempo de Clara e de Francisco,
pergunto-me o que havia de tão marcante naquele grupo
de religiosas a ponto de, com poucos meses de pura convivência
e proximidade com elas, ter dado uma mudança de 180
graus na minha vida de universitário e ter abraçado,
também eu, a vida franciscana? Houve algo naquelas
mulheres que, em conjunto e individualmente, transformou a
minha vida. Havia um perfume, um cheiro de algo diferente
no ar que tocou as cordas do meu coração de
uma maneira que eu teria dificuldade em descrever. Que perfume
era esse? A resposta a essa pergunta é importante para
que eu possa compreender e viver, como elas, aquilo que, acredito,
sejam alguns elementos que ajudam a formar a identidade e
o carisma franciscanos.
A primeira nota daquele perfume que carrego em minha memória
afetiva é o acolhimento. Desde o meu primeiro contato
com elas, fui prontamente acolhido. Quando eu estava na cidade
- e, naquele ano, foram pelo menos três meses, devido
a uma prolongada greve de professores da universidade - encontrava
um tempo para estar com elas: tomar um cafezinho, jogar conversa
fora, tomar juntos o jantar, rezar junto com elas uma oração
complicada para mim, na altura, chamada Liturgia das Horas.
Com elas rezei, pela primeira vez, uma celebração
de nome estranho chamada Trânsito de São Francisco.
Da boca da Raquel saíram as palavras que despertaram
em mim o desejo transformado em determinação
de ir para a missão ad gentes. Com Joana descobri que
a alegria do Reino de Deus já pode ser vivida nesta
vida. Foi essa a percepção imediata vinda delas,
como a primeira sensação provocada em nosso
olfato assim que se abre um pequeno frasco de perfume.
Depois que esse aroma assentou, comecei a notar algo mais
sutil, uma nota diferente e mais persistente naquele perfume:
bom humor e uma certa finesse, a versão feminina do
cavalheirismo. Aquele era um grupo de irmãs bem-humoradas.
Volta e meia, reunidos em torno da mesa, estávamos
rindo de situações cotidianas, como na ocasião
em que a Ir. Leocádia, aflita, precisando levar reserva
eucarística para um culto que seria celebrado em uma
comunidade rural, teve que enfrentar a birra do zeloso monsenhor
Aníbal, que escondera a chave do sacrário. Onde
já viu, comunhão sem missa e, pior ainda, sem
confissão antes, raciocinava ele, em seu genuíno
zelo e santidade tridentinos. Se o humor é amor com
h - e eu acredito que seja - aquele era um grupo de irmãs
que se amavam e amavam as demais pessoas que com elas conviviam.
Aquele bom humor trazia uma certa leveza, mas, jamais, superficialidade
a elas. Ao bom humor associava-se uma finesse que dava uma
certa elegância a elas. Com a Ir. Rosa aprendi que há
uma maneira adequada de descarcar a banana e a laranja. Com
a Ir. Odélia aprendi que há uma ordem precisa
entre homem e mulher ao subir e descer escadas. Ao subir,
homem à frente da mulher. Ao descer, mulher à
frente do homem. Descobri, depois, que se tratava de uma regra
lógica do tempo em que todas as mulheres usavam saias
e o decoro era tão grande quanto as saias que elas
usavam. Mudou-se o tempo, permaneceu o costume. Hoje, tais
memórias me causam um certo riso, por parecerem antiquadas.
Mas, recordo-me de Francisco de Assis, que aqui pertinho,
nas ruelas de Assis, após a sua conversão, continuou
a cantar em francês o amor de Deus, mantendo um certo
espírito cavalheiresco. Lembro-me, também, da
necessidade de comportarmo-nos de maneira adequada, de acordo
com a ocasião: seja em um jantar formal servido por
um embaixador, seja em uma refeição familiar
no interior da África, onde as mãos substituem
os talheres, de acordo com o costume. Entre judeus ou gregos,
devemos nos adequar à realidade com naturalidade e
bom humor.
Finalmente, uma terceira nota, a mais persistente delas nesse
perfume franciscano, é a unidade fraterna. Aquela era
uma fraternidade de verdade. É certo que, como todo
grupo social, pequeno ou grande, havia situações
de conflito e tensão entre elas. Tais ocasiões
devem ter sido administradas de maneira adequada, pois eu,
como uma pessoa de fora, nunca percebi os sinais de tensão
entre elas, ou mesmo a murmuração de uma em
relação à outra. Em um momento particularmente
tenso na vida da comunidade paroquial, em que, a começar
pelo pároco, todos ficaram doentes e muito distantes
do evangelho proclamado e ouvido na igreja, aquelas irmãs
representaram o único elemento de estabilidade naquela
comunidade em ruptura com o evangelho. Nesse sentido, olhando
para trás, percebo como foi providencial a ida e a
presença delas em minha cidade naquele momento preciso.
É interessante notar, em um contexto mais amplo da
Igreja, um certo desprezo com que muitas comunidades de irmãs
são vistas pelos membros do clero, um desprezo mal
disfarçado que beira à misoginia. Em muitas
situações de conflitos e de instabilidades decorrentes
de uma parte do clero com personalidade doentia, são
elas que, junto com os demais fiéis, mantém
viva a chama da fé e da unidade da Igreja. E aquela
era uma comunidade que rezava. Uma recordação
ficou marcada em mim: nas férias de fim de ano do meu
postulantado franciscano, houve uma reunião com o representante
enviado pelo bispo, no momento em que a tensão na comunidade
chegou ao ápice com a remoção do pároco.
Diante dos ânimos exaltados dos membros daquela comunidade
dividida, reunidos no salão bem ao lado da residência
das irmãs, Ir. Odélia chamou-me: vamos para
a capela rezar juntos, pois, diante de tanta insensatez, somente
Deus.
É claro que as irmãs faziam algo. Faziam o trabalho
samaritano de enfermeiras na Santa Casa local e trabalhavam
todas na pastoral paroquial, tanto nas comunidades rurais,
quanto na sede. Também nesses trabalhos transparecia
esse perfume franciscano, isto é, o que elas eram.
Olhando o que descrevi, podemos pensar de maneira acertada:
não parece haver nesse modo de ser nada que não
seja comum a qualquer grupo de irmãs, de qualquer ramo
de congregação ou espiritualidade que seja.
Na verdade, não se trata nem mesmo do modo de ser particular
da vida consagrada na Igreja. O que elas eram e são
deve ser o projeto de vida de qualquer batizado. Isso significa,
então, que não há um perfume em que possamos
colocar no rótulo do seu frasco perfume franciscano
e que seja distinto de um perfume carmelita ou jesuíta?
Já não me encontro mais em Assis, mas, no Monte
Alverne. Sentado aqui em um descampado aos pés do monte,
onde o bosque cede espaço à relva misturada
às flores, tenho diante de mim Francisco estigmatizado
na gruta lá encima. O monte Alverne foi, na vida de
Francisco, o ápice da sua identificação
com o Cristo crucificado. Depois do Alverne, só restava
a Francisco um último passo: ser consumido pelo Amor
Trinitário na ressurreição. Olhando para
trás, para todo o itinerário da vida de Francisco,
o que encontramos? Nada de excepcional, sob certo ponto de
vista: a compaixão com os leprosos, os mais excluídos
do seu tempo, o amor fraterno entranhado pelos seus primeiros
companheiros e por Clara, uma profunda reverência pelo
Criador diante da beleza das suas criaturas, como estas que
tenho diante dos olhos, o sentido de comunhão com a
Igreja e com os seus pastores, a reverência pelos sacramentos,
um desejo ardente de seguimento e de identificação
com o Cristo encarnado e crucificado. Tudo isso harmonizou-se
de forma única aqui nas terras da Umbria, da Toscana
e do Lascio, na pessoa de Francisco. Nele, a humanidade aflorou
em um grau tal que podemor afirmar como São Boaventura:
Francisco tornou-se um alter Christus, um outro Cristo, que
é o humano por excelência. Em seu sermão
sobre os estigmas de Sao Francisco, Pe. Antônio Vieira
dirá o mesmo que Boaventura: vestis a Cristo e tereis
Francisco; desnudais Francisco e tereis Cristo. E é
exatamente isso que aquelas irmãs despertaram em mim:
um senso de humanidade, uma busca de humanização
como o único caminho possível em direção
a Deus, tal e qual nos foi revelado pela encarnação
do Verbo.
Talvez seja esse o nome do rótulo do perfume franciscano:
humanização. Mas, esse é, voltamos a
afirmar, o rótulo do próprio cristianismo. A
nossa cristificação coincide com a nossa humanização.
Essa humanização não é um processo
egocêntrico e solitário. É um processo
feito de mãos dadas com todas as criaturas que o Senhor
nos confia: com os leprosos e os crucificados do tempo de
Francisco e de todos os tempos, com o lírios dos campos
da Galileia e dos vales de Assis, com os campos sem lírios
e as cidades sem pássaros do nosso tempo, com os irmãos
e irmãs que o Senhor vai nos concedendo ao longo da
vida.
Aqui em cima, no Monte Alverne, olhando para Francisco, tudo
parece tão simples. O olhar vislumbra, num clarão
de graça, o caminho de simplificação
e de humanização do nosso ser inteiro. E compreendemos
a simplicidade dos versos de Fernando Pessoa, que disse pela
boca do seu heterônimo Alberto Caeiro:
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Nós como as árvores são árvores
E como os regatos são regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos...
E não nos dará mais nada, porque dar-nos mais
seria tirar-nos mais.
E é simples assim o meu afeto por cada uma daquelas
quatro mulheres e mais a Raquel, que já se encontra
mergulhada no rio do amor trinitário.
Postado por Frei Fabiano Aguilar Satler, ofm às 01:23
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