O
sofrimento e a destruição
causados pela ofensiva de Israel contra
o Hezbollah, que atinge sobretudo a população
civil, começam a mudar a visão
que o mundo tem desse conflito. A questão,
que fica cada vez mais aguda, é:
por mais que tenha os motivos certos para
retaliar seus agressores, Israel não
pode lutar uma guerra suja.
Introdução
Existem
razões justas, baseadas na lei
moral e nas regras internacionais, para
iniciar uma guerra. Israel as teve todas
ao revidar as agressões dos terroristas
islâmicos instalados no seu vizinho
do norte, o Líbano. O trágico
é que, por mais justas e embasadas
que sejam as razões para disparar
os canhões, quando eles começam
a vomitar fogo o inferno se instala e
consome igualmente vidas inocentes e de
combatentes. Em sua terceira semana, o
conflito entre Israel e a milícia
do Hezbollah, o "Partido de Deus",
parece estar apenas no começo.
Apesar do nome, o Hezbollah nada tem de
sagrado. É uma falange sanguinária
montada com dinheiro do Irã e armas
fornecidas pela Síria. Seu objetivo
imediato é matar israelenses, sendo-lhes
indiferente se os alvos são civis
ou militares. Seu objetivo final é
converter ou matar todos os que não
pensem como seus líderes. O duplamente
trágico no atual estágio
da guerra iniciada por Israel deriva do
fato de que, mesmo sem ser esse seu objetivo,
as ações militares de Israel
estão matando civis inocentes e,
aos olhos do mundo, os justos começam
a se assemelhar aos sicários que
eles se propuseram a punir.
O
número de mortos cresce, e não
existe até agora um claro vencedor.
Os civis pagam o preço mais alto.
Pelas estimativas da sexta-feira passada,
800.000 libaneses, numa população
de 4 milhões, foram forçados
a abandonar suas casas e mais de 400 foram
mortos. As cidades costeiras de Tiro e
Sidon estão abarrotadas com mais
de 100.000 refugiados. Israel sofre também,
ainda que seu total de mortos seja dez
vezes menor que o libanês. Ao menos
2.300 mísseis e foguetes lançados
pelo Hezbollah já caíram
em cidades e povoados israelenses, obrigando
mais de 1 milhão de pessoas a procurar
os abrigos antiaéreos. O balanço
desproporcional em número de vítimas
e nas dimensões da destruição
está agora no centro de um complicado
dilema ético que vai além
do habitual debate entre Israel e seus
detratores. Diz respeito ao seguinte:
uma guerra continua justa se for lutada
de modo sujo?
Do
ponto de vista das regras internacionais,
todo Estado tem o direito e o dever de
preservar a vida de seus cidadãos
de ataques externos. A ofensiva israelense
no território libanês é
justa, ao menos no que diz respeito a
sua motivação. Se o Hezbollah
atravessou uma fronteira internacional
e seqüestrou dois soldados (como
fez três semanas atrás) e
há anos lança regularmente
foguetes sobre as cidades israelenses,
é um direito de Israel usar a força
para tentar eliminar esse grupo ou, pelo
menos, reduzir sua campanha terrorista.
A moralidade da ofensiva torna-se nebulosa,
contudo, quando Israel usa bombas de fragmentação
em áreas populosas, ataca estradas
e centrais elétricas que, apesar
de terem algum uso militar, são
vitais para a população
civil. A quase universal compreensão
com que o Estado judeu contou nos primeiros
dias de confronto, até mesmo em
alguns países árabes, está
agora virada de cabeça para baixo.
A mudança deve-se exclusivamente
ao sofrimento imposto à população
do Líbano, da qual o Hezbollah
representa apenas uma ínfima parcela.
Pelas
normas internacionais, a maneira de fazer
uma guerra é considerada justa
quando preenche três requisitos:
a resposta deve ser proporcional à
ameaça ou agressão, não
se pode usar força excessiva e
os ataques têm de ser direcionados
aos combatentes inimigos, e não
aos civis. A proporcionalidade de um conflito
não é julgada apenas pela
agressão sofrida. Há dois
outros fatores igualmente importantes.
O primeiro são as dimensões
da ameaça (a chuva de foguetes
e mísseis lançados contra
o território israelense dá
a dimensão do enorme perigo representado
pelo Hezbollah). O segundo leva em conta
a destruição que a guerra
causa, em comparação aos
benefícios que pode trazer. Se
o Hezbollah for destruído ou contido,
argumentam os israelenses, os benefícios
serão enormes. Não apenas
para Israel, mas também para o
Líbano e para os outros países
da região, ameaçados pelo
extremismo islâmico patrocinado
pelo Irã.
A
questão da proporcionalidade cobre
apenas uma parte da discussão ética.
Desde o fim da II Guerra, o mundo tem
colocado ênfase na diplomacia e
na jurisprudência para a solução
de litígios. O conceito moderno
é que a guerra deve ser o último
recurso, depois de todos os outros terem
se esgotado. Uma série de acordos
internacionais – a Convenção
de Genebra é a mais conhecida –
tenta colocar ordem numa questão
que já era discutida nos tempos
da conquista da Gália por Júlio
César: na guerra vale tudo? A resposta
ética é não. Mesmo
que se entenda que o soldado, no meio
da balaceira, não hesite em usar
sua arma mais poderosa, certas regras
separam a civilização da
barbárie. As questões essenciais
são a imunidade do não combatente,
a proteção aos feridos e
a garantia de bom tratamento aos prisioneiros.
Essas
regras básicas surgiram no século
IV, nas obras de Santo Agostinho, que
tratou do conceito da guerra justa de
acordo com a moralidade cristã.
Quem transformou o assunto em uma questão
de direito, lançando as bases do
que seria uma "lei da guerra",
foi o jurista holandês Hugo Grotius,
no século XVII. Grotius defendeu
a necessidade de alguma moderação
nos conflitos, recomendando práticas
como a preservação das riquezas
arquitetônicas e obras de arte encontradas
no território inimigo e o cuidado
com a vida dos civis. Se não respeitar
essas regras, Israel se igualará
a seus inimigos, os terroristas. Na sexta-feira
passada, surgiu o primeiro fio de esperança:
um plano de cessar-fogo proposto pelos
Estados Unidos e por outros países,
que deverá ser submetido ao Conselho
de Segurança das Nações
Unidas nesta semana. O resultado dessa
iniciativa depende de várias questões
fundamentais, alinhadas a seguir.
O
CULPADO PELO COMEÇO DA GUERRA É
O HEZBOLLAH
Nem
sempre é fácil identificar
o responsável por um novo surto
de violência no Oriente Médio.
Na guerra no Líbano, no entanto,
há o consenso de que o Hezbollah
bateu primeiro. Em 12 de julho, seus guerrilheiros
cruzaram a fronteira, mataram três
soldados israelenses e seqüestraram
dois. Desde que se retirou do sul do Líbano,
há seis anos, o Exército
israelense reagia com moderação
às provocações do
Hezbollah.
A
ESTRATÉGIA MILITAR DE ISRAEL É
DUVIDOSA
O
primeiro-ministro Ehud Olmert persegue
dois objetivos principais no Líbano.
O primeiro é usar o poderio aéreo
para causar o maior estrago possível
na estrutura militar, nas vias de transporte
e de comunicação do Hezbollah
antes de arriscar a vida de soldados israelenses
em combates de infantaria. O segundo objetivo
é demonstrar de forma enfática
o poder de fogo israelense, de forma a
persuadir o inimigo de que não
vale a pena insistir em futuras agressões.
Ambas as metas esbarram no mesmo problema:
a dificuldade de derrotar uma força
guerrilheira que conhece bem o campo de
batalha e tem o apoio da população.
O
HEZBOLLAH, O HAMAS E A AL QAEDA REZAM
PELA MESMA CARTILHA
O
Hezbollah, o Hamas e a Al Qaeda compartilham
a abominável estratégia
do homem-bomba. Em princípio, esses
movimentos radicais islâmicos querem
a destruição do Estado de
Israel e a construção de
Estados teocráticos. Aí
começam as diferenças. A
Al Qaeda é um movimento global,
sem vínculos territoriais ou nacionais.
Seu objetivo é um califado mundial
e a destruição de seu pior
inimigo, a vertente xiita do Islã.
O Hezbollah representa a comunidade xiita
do Líbano, tem um braço
político, com participação
no governo libanês, e outro social.
O Hamas ganhou as últimas eleições
palestinas. Apesar da atual aliança
tática e do inimigo em comum, a
tensão entre o Hamas e o Hezbollah
é grande e reflete o profundo racha
dentro do mundo muçulmano. O Hezbollah
é uma criação dos
aiatolás do Irã. O Hamas
foi financiado pelos xeques sunitas da
Arábia Saudita, cujo maior inimigo
são exatamente os xiitas iranianos.
RETIRADAS UNILATERAIS FORAM UMA
BOA IDÉIA, MAS NÃO DERAM
CERTO
Israel
deixou a faixa de segurança que
ocupava no sul do Líbano em 2000.
No ano passado saiu da Faixa de Gaza,
depois de 38 anos de ocupação.
O governo israelense promoveu todos esses
recuos de forma unilateral. Resultado:
o Hezbollah, que passou dezoito anos combatendo
a presença de tropas israelenses
no território libanês, saiu
do episódio com pose de vencedor.
Desde então Israel assistiu impotente
à corrida do Hezbollah para construir
bunkers, abrigos e armar-se com a ajuda
do Irã. Na Faixa de Gaza, sem os
israelenses para combater, seis ou sete
grupos armados passaram a lutar uns com
os outros, levando o caos à região.
Hoje se vêem confirmadas as previsões
pessimistas dos críticos tanto
da direita quanto da esquerda israelense.
ACORDO NO LÍBANO É
POSSÍVEL, MESMO SEM SOLUÇÃO
PARA A ENCRENCA PALESTINA
Oficialmente,
Israel e Líbano estão em
estado de guerra desde 1948. Ambos assinaram
o armistício de 1949, que estabeleceu
as fronteiras entre os dois países.
Com uma grande minoria cristã e
forte influência ocidental, o Líbano
pode ser considerado o menos hostil e
o mais fraco vizinho árabe de Israel.
Na verdade, as invasões e os ataques
israelenses nunca foram exatamente contra
o Estado libanês, mas contra o Estado
dentro do Estado criado pelos palestinos,
em 1982, e agora contra o Estado dentro
do Estado criado pelo Hezbollah. O governo
libanês sempre repete que será
o último país árabe
a assinar a paz com Israel, para não
ser acusado de traidor pelos demais. Por
sua vez, o Hezbollah condiciona a convivência
pacífica com os israelenses à
solução do problema palestino.
Objetivamente, Israel e Líbano
podem chegar a um compromisso em torno
de assuntos concretos sem um tratado formal
de paz.
A GUERRA NO LÍBANO REFLETE
A DIVISÃO NO MUNDO MUÇULMANO
Qualquer
solução para afastar o perigo
do Hezbollah provavelmente teria o apoio
de três influentes países
de maioria sunita: o Egito, a Arábia
Saudita e a Jordânia. Os governos
desses três países apressaram-se,
logo de início, a criticar o ataque
do grupo xiita libanês que deu início
à guerra. O governo do Irã,
de maioria xiita, tem se empenhado em
aumentar seu poder regional influenciando
grupos da mesma facção islâmica,
como o Hezbollah, no Líbano, e
os políticos xiitas que atualmente
dominam o governo iraquiano.
O
EQUILÍBRIO CONFESSIONAL
NO LÍBANO ESTÁ AMEAÇADO
O
equilíbrio entre dezessete
confissões religiosas era
a grande façanha daquele
país até meses atrás.
Agora, há dúvidas
se o delicado equilíbrio
pode sobreviver à guerra
provocada pelo Hezbollah. No Líbano,
há cinco subdivisões
entre os muçulmanos, e
doze entre os cristãos.
Um em cada dez habitantes é
refugiado palestino. Na guerra
civil, que castigou o país
de 1975 a 1990 e causou a morte
de 150.000 pessoas, as rixas entre
os grupos sectários foram
alimentadas por interesses externos.
A Síria, os palestinos
e Israel tomaram partido e acabaram
por participar diretamente do
conflito. O acordo de paz que
pôs fim à guerra
foi sacramentado por um líder
carismático, o primeiro-ministro
Rafik Hariri, assassinado no início
de 2005. Muçulmano sunita,
Hariri assumiu a chefia do governo
em 1992. Sob o seu comando, Beirute
voltou a atrair turistas e investimentos
estrangeiros. Sobrou uma encrenca
sem solução: todas
as milícias foram desarmadas,
exceto o Hezbollah.
TROPAS
DE PAZ NUNCA DERAM CERTO NO ORIENTE
MÉDIO
A
proposta de cessar-fogo que os
Estados Unidos e outros países
devem apresentar, nesta semana,
ao Conselho de Segurança
das Nações Unidas
prevê o envio de tropas
internacionais para o sul do Líbano.
A missão dessas forças
seria ajudar o governo libanês
a desarmar o Hezbollah e garantir
a chegada de ajuda humanitária.
A solução é
atraente mas de difícil
execução. Se a guerra
parar agora, a guerrilha xiita
conserva boa parte de sua força
militar e de seu prestígio
popular e político. Em
outras palavras, só entregará
as armas se quiser.
SÓ
A VITÓRIA INCONTESTE INTERESSA
A ISRAEL
Israel
embarcou nesta guerra para impor
sua autoridade no sul do Líbano.
Seu objetivo é claro: destruir
a capacidade ofensiva do Hezbollah
de tal maneira que o grupo leve
anos para se recuperar e, de preferência,
nunca o faça. Que alternativa
poderia ser considerada uma vitória
para Israel? Talvez um acordo
de cessar-fogo para desarmar o
Hezbollah aos poucos e restituir
ao Estado libanês o controle
de todo o seu território.
Isso dificilmente poderia ser
feito sem a supervisão
de uma força internacional
e sem a concordância tácita
da Síria.
SE O HEZBOLLAH VENCER
A GUERRA, O ORIENTE MÉDIO
MUDA PARA PIOR
Quanto
mais a guerra se estende e o número
de baixas israelenses aumenta,
mais o Hezbollah ganha crédito
como a única força
árabe a derrotar os israelenses.
Se isso acontecer, será
um desastre para o Oriente Médio.
Os terroristas do Hamas e da Jihad
Islâmica interpretariam
o sucesso do Hezbollah como se
fosse deles próprios. Isso
estimularia novos atentados palestinos
e o crescimento do extremismo
islâmico na Jordânia,
no Egito e na Arábia Saudita,
países aliados dos Estados
Unidos. O governo de Israel fez
uma aposta pesada ao mergulhar
tão fundo na guerra contra
o Hezbollah. Se fracassar, o mundo
todo terá o que lamentar.
ESFORÇOS
EM VÃO
Quatro
presidentes americanos se empenharam,
com pouco sucesso, na busca de
uma solução para
o conflito no Oriente Médio
JIMMY
CARTER
• Ajudou Israel e o Egito
a assinar o acordo de paz, em
1978
O
QUE ACONTECEU:
• Israel retirou-se da Península
do Sinai e os dois países
estão em paz até
hoje
RONALD
REAGAN
• Enviou tropas de paz durante
a guerra civil no Líbano
O
QUE ACONTECEU:
• 241 soldados americanos
foram mortos num atentado do Hezbollah,
em 1983. Com isso, os EUA abandonaram
o país
GEORGE
BUSH (pai)
• Promoveu negociações
entre Israel e os países
árabes em Madri, em 1991
O
QUE ACONTECEU:
• Ambos os lados solaparam
as conversações,
que não deram em nada
BILL
CLINTON
• Ajudou Israel e a OLP
a assinar o reconhecimento mútuo
em 1993
O
QUE ACONTECEU:
• A tentativa de um acordo
definitivo fracassou em 2000,
dando início à segunda
intifada
Fonte:
Revista Veja - Edição
1967 - 2 de agosto de 2006