Matemática

Introdução


Indicações bibliográficas
As Matemáticas na Antiguidade e na Idade Média
A entrada das Matemáticas na Península hispânica
Programa dêste livro


O objecto dêste livro é a história da cultura das Matemáticas em Portugal desde a fundação do Reino até meados do século XIX e das relações desta cultura com a evolução política do país. Para se apreciar o estado dos estudos daquela história no momento em que êste livro aparece, vamos mencionar e analisar sucintamente os trabalhos publicados a êste respeito anteriormente; e, para colocar o assunto especial, que é objecto do livro, no quadro da história geral do pensamento matemático, descreveremos em seguida a traços largos a evolução dêste pensamento desde a antiguidade até ao desabrochar das referidas ciências em Portugal. São estes os assuntos de que vamos ocupar-nos nesta Introdução.

As Matemáticas puras estão estreitamente ligadas a Cosmologia, que elas iluminam, e a Filosofia, que dirige o pensamento científico; por isso à história daquelas ciências juntaremos a história da Astronomia, ciência que em Portugal representou um grande papel na náutica, e, de espaço a espaço, algumas noções da história da Física e da Filosofia.

 

Indicações bibliográficas

O mais antigo escrito consagrado à história da cultura das ciências exactas pelos portugueses é o Ensaio Histórico sôbre a origem e progressos das Matemáticas em Portugal, publicado em 1819, em Paris, por Francisco de Borja Garção Stockler, livro que contém a história das referidas ciências desde a fundação do Reino até ao século XVIII. É um trabalho interessante e bem escrito, e o seu assunto principal é seguido de notas eruditas que o valorizam; mas, como o seu título indica, é muito resumido e é pouco profundo na apreciação de algumas das obras consideradas. Além disso, a parte que se refere às aplicações das Matemáticas à náutica é incompleta e algumas vezes inexacta, por não dispor o autor dos documentos que actualmente se conhecem sôbre o assunto. Para o estudo desta última questão, temos hoje dois trabalhos importantes: LÁstronomie nautique en Portugal à l'occasion des grandes découvertes, livro publicado em l912 por Joaquim Bensaúde, e um artigo sôbre o modo de navegar dos nautas lusos nos séculos XV e XVI, publicado pelo Dr. Luciano Pereira da Silva na obra monumental intitulada Colonização do Brasil pelos portugueses, organizada por Malheiro Dias para celebrar o quinto centenário da descoberta dêste país.

O livro de Bensaúde é fundamental no estudo da história da Astronomia aplicada à Náutica lusa, porque são substituídas nêle lendas, tradições e hipóteses por factos demonstrados. O Dr. Pereira da Silva, na sua Memória, segue e continua magistralmente aquele autor nas suas indagações.

É um subsídio valioso, sob o ponto de vista bibliográfico, para a história da cultura das Matemáticas em Portugal, o catálogo das obras de autores portugueses publicado pelo engenheiro Rodolfo Guimarães sob o título: Les Mathématiques en Portugal. Os títulos das obras são geralmente acompanhados neste catálogo de curtas notícias sôbre os seus assuntos e algumas vezes ligeiras apreciações; mas estas apreciações parecem resultar de leituras superficiais e não podem ser aceites sem o exame cuidadoso das obras a que se referem. E não é isto estranhável, porque é muito grande o número das obras e assuntos que o autor do livro teve de estudar para o compor.

Mencionarei também aqui os excelentes opúsculos sôbre a história das Matemáticas puras e da Astronomia em Portugal publicado recentemente pelos Doutores Pedro José da Cunha e Francisco Miranda da Costa Lobo, opúsculos que fazem parte de uma colecção de monografias sobre diversas manifestações da actividade portuguesa, apresentadas na Exposição Íbero-Americana de Sevilha.

Convém ainda assinalar a Memória histórica da Faculdade de Matemática da Universidade de Coimbra, publicada pelo Dr. Francisco de Castro Freire na ocasião da celebração do primeiro centenário da criação desta Faculdade. Contém êste livro, além da descrição da vida da Faculdade durante o primeiro século da sua existência, biografias resumidas dos professores que se tornaram notáveis pela publicação de trabalhos de mérito, sem todavia fazer a análise dêstes trabalhos, lacuna que procurarei preencher.

Eu próprio me ocupei da história das Matemáticas em Portugal num livro intitulado Panegíricos e Conferências, publicado em 1925 pela Academia das Ciências de Lisboa, onde fiz os elogios históricos de Pedro Nunes, Monteiro da Rocha, Anastácio da Cunha e Daniel da Silva.

São estes sábios ilustres as principais figuras da matemática portuguesa e a simples reünião dos quatro elogios quási equivale a uma história completa das Matemáticas em Portugal. Farei neste livro esta reunião, ajuntando porém os resultados de estudos do assunto feitos depois da publicação daqueles elogios e entrando mais fundamente na análise dos métodos que aqueles matemáticos empregaram e das demonstrações com que estabeleceram os teoremas que descobriram. Não se deve, pois, estranhar que faça numerosas transcrições da obra mencionada. Quando o novo estudo que fiz dos assuntos considerados nela, não me levou a modificar o meu pensamento, alterar o modo de os expor seria fazer trabalho inútil. Dou às doutrinas a disposição sistemática que o novo modo de as considerar determina, melhoro-as quanto posso e ajunto outras, mas não altero com nova redacção o que não é necessário alterar.

Em suma, este livro é como uma nova edição das passagens relativas à história das Matemáticas em Portugal dispersas pelo anterior, refundidas de modo a formarem um todo harmónico, ampliadas com novas doutrinas e melhoradas por novos estudos das matérias contidas no primitivo livro.

Nas revistas científicas portuguesas encontram-se ainda muitos artigos sôbre pontos especiais da mesma história, que não mencionarei agora, mas que citarei quando o julgar oportuno.

Também há numerosas referências à Matemática lusa em livros e artigos de sábios estrangeiros.

Em particular, na Histoire de l'Astronomie de Delambre, são larga e profundamente analisados os trabalhos astronómicos de Pedro Nunes. Pena é que o grande astrónomo francês se desvie em algumas ocasiões do seu papel de historiador, e, em vez de nos apresentar as demonstrações do matemático português em linguagem analítica moderna, prefira mostrar-nos o seu próprio engenho, apresentando novas demonstrações suas das proposições inventadas por Nunes.

 

As Matemáticas na Antigüidade e na Idade-Média

A história das Matemáticas em Portugal está estreitamente ligada à história das Matemáticas na Espanha e ambas estão intimamente ligadas à história destas ciências entre os Gregos, Índios e Árabes.

Antes pois de entrar nos assuntos especiais dêste livro, convém que consagre algumas palavras à descrição, a traços largos, do estado das referidas ciências na ocasião da sua introdução na Península hispânica e do modo como esta introdução se fêz (1).


(1) Para o estudo desenvolvido da história das Matemáticas entre os Gregos, Índios e Árabes, não é felizmente necessário em Portugal recorrer-se a livros estrangeiros, porque temos para isso em língua portuguesa um Manual excelente, intitulado: História das Matemáticas na Antiguidade, de que é autor o sr. Fernando de Vasconcelos, professor no Instituto Superior de Agronomia.

 

Ao terminar a civilização dos Helenos, povo admirável que soube dar às ciências, às letras e às artes as suas formas mais belas, os seus filósofos e sábios tinham analisado o mundo físico e fundado as ciências, tinham analisado a linguagem e constituído a Gramática, tinham analisado os costumes e fundado a Moral, tinham-se analisado a si próprios e fundado a Lógica e a Psicologia, tinham aberto a filosofia das religiões, que mais tarde se chamou Teodiceia, e, a coroar poeticamente o seu edifício filosófico, tinham pôsto a sonhadora Metafísica, com as suas hipóteses, com os seus idealismos, com as suas aspirações a penetrar nos mistérios das causas primeiras do Universo.

Legaram-nos estes sábios e estes filósofos métodos rigorosos para o estudo do mundo interior e do mundo físico, que aplicaram admiravelmente a constituição de ciência, quando tinham os elementos necessários para o fazer; quando os não tinham, levados pela ambição de tudo explicar, constituíram teorias hipotéticas, que os sábios modernos tiveram algumas vezes de regeitar, mas nunca deixaram de admirar (2).


(2) Panegíricos e Conferências, pág. 59.

 

De facto, em tudo o que em filosofia e ciência nos legou a velha Grécia, o pensamento e a arte aparecem admiravelmente unidos. Como dissemos em outro lugar,.«o povo helénico deu arte à ciência e pensamento à arte; nos seus variados escritos, como nas suas estátuas, há vida; estas falam, aqueles palpitam de génio; as obras científicas e filosóficas que nos deixou, são grandiosas e belas como os templos famosos por êle levantados aos Deuses do paganismo».

Berço sagrado das letras, a Grécia criou com a epopeia, a tragédia e a ode, superiormente representadas por Homero, Eschilo e Píndaro, as formas mais sublimes da poesia, assombrou os homens com a eloqüência de Demóstenes e abriu a história com Heródoto e Xenofonte; berço das artes, deslumbrou o mundo com os seus maravilhosos templos, estátuas e esculturas; berço dourado da filosofia, deu à humanidade, como presente opulento, em Platão o mais poeta dos filósofos e o mais sábio em Aristóteles.

Platão e Aristóteles, os príncipes da filosofia antiga, associaram nas suas cogitações, sob formas diversas, o Cosmos, a Alma humana e Deus, e nestas cogitações aplicaram a Matemática a iluminar o estudo do pensamento e o estudo da natureza.

Enciclopedista inigualável, Aristóteles assombrou o mundo com a vastidão e altura dos seus conhecimentos e engenho das suas indagações; espiritualista subtil, Platão encantou-o com a sublimidade dos seus pensamentos. Em especial, na Mecânica, o primeiro inventou o princípio da alavanca e o princípio do paralelogramo das fôrças, e teve a visão do princípio das velocidades virtuais; o segundo, seguindo na ciência dos astros um caminho aberto por Pitágoras, esboçou o mais antigo Sistema astronómico que nos legaram os sábios gregos, Sistema que foi depois aperfeiçoado por Eudoxo e Aristóteles e na Idade-Média por Alpetrágio e que por fim caíu, substituído por outros mais perfeitos.

Notemos ainda que as doutrinas filosóficas de Platão e Aristóteles aparecem misturadas a assuntos de Teologia cristã nos estudos das escolas medievais, constituindo a Escolástica, que tomou duas formas diversas, uma entre os filósofos que se encostaram mais a Aristóteles, outra entre os que seguiram principalmente Platão.

Em conclusão, nas obras helénicas de filosofia, de ciência, de literatura e de arte, há beleza que deslumbra, engenho que encanta e grandeza que assombra.

Por isso, Mileto, Samos, Tarento, Atenas, Siracusa, Alexandria, ... são nomes da geografia da Terra, focos da ciência antiga, que ainda hoje, passados numerosos séculos, se pronunciam com a emoção que produz o que é sagrado.

 

 

No que respeita às Matemáticas, cuja fundação constitue a mais sólida glória do povo helénico, legou-nos êle a Aritmética, a Álgebra, a Geometria, a Mecânica e a Astronomia, e os trabalhos que sôbre estas ciências nos deixou, são, pela finura da arte e pelos primores de imaginação a Ilíada de tais ciências; e são ainda, pela essência, a base em que assentou o que depois se escreveu sôbre elas.

Com as palavras célebres: Deus fêz o Mundo por conta, pêso e medida, pôs Salomão um problema imenso que os Gregos começaram a estudar sistemàticamente, criando a ciência dos números. Abriu-a Tales de Mileto; continuaram na Pitágoras e Platão, que proclamou a sua importância, escrevendo à porta da sua Escola: aqui não entra quem não fôr geómetra; desenvolveu-a Eudoxo de Cnido; fizeram-na brilhar com esplendor Euclides, Archimedes, Apolónio, Diofante e Papo; aplicaram-na com engenho Hiparco, Herão e Ptolomeu.

É bom notar, antes de prosseguir, que a fundação da ciência dos números tinha sido preparada principalmente por sacerdotes do Egipto e da Caldêa com factos e regras aritméticas e com medidas geométricas e astronómicas, que conhecemos por meio de documentos antigos e de particularidades arquitectónicas dos monumentos que construiram. Esta Matemática empírica foi a alvorada da Matemática teórica que depois nasceu.

Encanta o espírito recordar o que há de grande e belo nos teoremas, hipóteses e teorias da ciência dos Helenos e é isto mesmo necessário a quem quiser apreciar como, continuando a sua obra, se subiu das doutrinas dos gigantes da ciência antiga às dos gigantes da ciência moderna, das doutrinas de Euclides, Apolónio e Diofante às de Viete, Descartes, Pascal e Fermat, das doutrinas de Híparco e Ptolomeu às de Copernico e Kepler, das doutrinas de Aristóteles, Archimedes e Herão às de Galileu, Huigens, Leibniz e Newton ligando assim o período áureo da ciência do passado ao famoso século XVII, o período áureo da ciência moderna.

Enumeremos pois aqui as obras dos matemáticos e físicos helénicos que mais influência tiveram sôbre a ciência dos povos que vieram depois, e lhe serviram de fundamento.

Recordemos em primeiro lugar os Elementos de Geometria de Euclides, reünião sistemática das proposições sôbre esta ciência que no seu tempo se conheciam e de outras que êle próprio inventou; obra admirada pelos matemáticos e filósofos de todos os países e de todos os tempos pela pureza do estilo geométrico e pela concisão luminosa da forma; modêlo lógico para tôdas as ciências físicas pelo rigor das demonstrações e pela maneira como são postas as bases da Geometria em conceitos fundamentais, apresentados sob o nome de definições, axiomas e postulados.

Nesta mesma obra aparece, sob forma geométrica, a origem da Álgebra, com a resolução das equações do segundo grau. É bem sabido que os antigos matemáticos gregos, tendo a noção de grandeza incomensurável, mas não tendo a noção correspondente de número irracional, constituiram a Matemática sob forma geométrica, considerando em vez de números, segmentos de recta, para assim abrangerem nas suas teorias as grandezas comensuráveis, e portanto os números racionais e as grandezas incomensuráveis.

As últimas páginas do livro segundo dos Elementos do grande lógico de Alexandria contêm, com efeito, os teoremas necessários para a construção das raizes das equações do segundo grau definidas geomètricamente. Foram estes os primeiros vagidos da Álgebra, que depois, tomando forma algarítmica e crescendo mais e mais, levou nas suas asas às alturas, em vôos soberbos, a Geometria, a mãe que a criara.

São muito raros os livros que têm sido tão espalhados em edições, traduções e comentários como os Elementos de Geometria de Euclides. Na antiga Grécia foi esta obra comentada por Proclo, Herão, Simplício, etc., na Idade-Média foi traduzida em latim e árabe e, após a descoberta da imprensa, fizeram-se dela numerosas edições em tôdas as línguas europeias. A primeira destas edições foi a de Campano, em latim, publicada em 1482, edição usada pelo nosso Pedro Nunes, que a citou numerosas vezes nas suas obras.

Em Portugal, publicou Angelo Brunelli em 1768 uma tradução na nossa língua dos seis primeiros livros, do undecimo e do duodecimo. Para esta tradução serviu-se da versão latina de Frederico Comandino e fê-la seguir de algumas notas com que Roberto Sinson tinha ilustrado esta versão. 0 livro de que nos estamos ocupando, foi outr’ora muito usado nas escolas portuguesas, e por isso fizeram-se novas edições da tradução de Brunelli em 1790, 1792, 1824, 1835, 1839, 1852, 1855 e 1862.

Constituiram também os Gregos uma Geometria das figuras formadas na superfície da esfera por círculos máximos, análoga à Geometria das figuras formadas no plano por linhas rectas. Foram os principais organizadores daquela Geometria: Teodósio, que compôs sôbre ela um tratado intitulado Esféricas, que ficou clássico, e Menelau, que escreveu sôbre o mesmo assunto e com o mesmo título um tratado mais profundo e original do que o daquele geómetra. Notam-se neste último livro uma relação entre os seis segmentos de três círculos máximos determinados por um quarto círculo máximo que os corte, que ficou célebre sob a designação de Teorema de Menelau, e uma doutrina dos triângulos esféricos análoga à de Euclides sôbre os triângulos planos. Teodósio e Menelau aparecem citados nas obras de Pedro Nunes, o primeiro numerosas vezes, o segundo algumas vezes.

 

Continuando na enumeração das obras mais importantes dos matemáticos gregos, mencionarei agora o Tratado das secções do cone de Apolónio de Perga, obra notável pela elegância do seu estilo geométrico e pelo modo desenvolvido como são nêle estudadas estas curvas, com as suas propriedades mais importantes e mais belas.

As mesmas curvas tinham sido já consideradas por Menecmo, que abrira a sua teoria e as aplicara à resolução do problema célebre das duas médias proporcionais, generalização do problema da duplicação do cubo(3).


(3) Veja-se no tômo VII das minhas Obras sôbre Matemática a história dêstes problemas.

 

Assim nasceu em berço dourado uma doutrina que, esquecida ou quási esquecida depois durante longos tempos, renasceu no século XVII, sob novas formas, com Descartes e Pascal, e conquistou depois foros de esplêndida nobreza, quando Kepler descobriu o seu papel no estudo do Cosmos.

 

Recordemos também aqui Archimedes, o maior geómetra da antiguidade, o criador da Estática dos corpos sólidos, fundada no princípio da alavanca, o criador da Estática dos fluídos, fundada no famoso princípio que ficou a glorificar o seu nome, o fundador da Geometria infinitesimal, que inspirou mais tarde os inventores do método dos indivisíveis e foi o primeiro lampejo de um sol que depois, sob o nome de Cálculo dos infinitamente pequenos, iluminou brilhantemente o firmamento das ciências exactas.

Convém ainda lembrar aqui que, no domínio da Geometria elementar, êste grande matemático relacionou a área e o volume da esfera com a área do seu círculo máximo e deu um método para calcular esta última área com a aproximação que se quiser.

Pitágoras e Platão abriram e Aristóteles continuou o estudo do imenso livro intitulado: Natureza, livro numèricamente escrito e que a Matemática ensina a ler. No estudo dêste livro, ninguém na antiguidade subiu tão alto como Archimedes e, para depois encontrar alguém que o iguale, é necessário seguir a história da ciência até ao século XVII, em que deslumbrou o mundo o génio sublime de Newton.

 

Foram os principais continuadores da obre geométrica e mecânica de Euclides e Archimedes, primeiramente, Eratóstenes, que abriu a Geodesia, determinando a grandeza da Terra por meio da medida do arco do meridiano compreendido entre Alexandria e Siena, e, mais tarde, Herão de Alexandria, que, na sua Dioptrica e nas suas Métricas, se ocupou com sucesso da solução de vários problemas de Geometria e de Mecânica prática por meio de instrumentos engenhosos da sua invenção.

E foi o último grande geómetra das Escolas helénicas Papo, alexandrino, que percorreu nas suas Colecções Matemáticas quási todos os assuntos de Geometria e de Mecânica tratados pelos geómetras que o precederam, e ainda outros novos, deixando em todos vestígios do seu génio.

 

Cultivaram ainda os matemáticos gregos, para os usos ordinários da vida, uma arte de cálculo numérico, a que deram o nome de Logística, aplicável às razões comensuráveis e por aproximações às razões incomensuráveis.

A Logística era para êles uma arte terrena e humilde para as contas domésticas e do comércio e para uso do agrimensor e do arquitecto; a (Geometria era a verdadeira ciência, era um presente precioso feito pelos Deuses aos homens para estudo do Cosmos. Olhavam com desdem para aquela arte, com respeito religioso para esta ciência.

Mais tarde a Logística começou a tomar forma científica com Diofante, que na sua Aritmética resolveu engenhosamente problemas difíceis que o levaram a equações determinadas e indeterminadas, do primeiro e do segundo grau, com coeficientes racionais e procurou as soluções racionais dêstes problemas, empregando demonstrações independentes de considerações geométricas e dos números especiais que considera.

Com a sua obra, abriu Diofante a Álgebra algorítmica, mas esta Álgebra não ficou ainda independente da Geometria, porque as doutrinas do grande matemático eram só estabelecidas para as grandezas comensuráveis e, para as estender às grandezas incomensuráveis era necessária ainda a demonstração pela Geometria dos resultados obtidos.

A autonomia da Álgebra só se realizou completamente quando nos tempos modernos, se fixou definitivamente a equivalência entre operações numéricas e geométricas e se teve uma noção clara de número irracional.

A linguagem fixa, auxilia e dirige o pensamento, verdadeira conversa da alma comsigo mesmo, e auxilia-o tanto mais quanto mais simples ela é. Ora, a Álgebra algorítmica tem uma língua própria, de uma simplicidade expressiva surpreendente, motivo da sua fôrça. A formação desta língua foi iniciada por Diofante, que representou por letras ou sinais a incógnita dos problemas e suas potências, a subtracção e a relação de igualdade de expressões numéricas. Não empregava sinal algum para designar a soma, mas separava as parcelas por um intervalo, o que equivale a um sinal. Depois de Diofante, a língua da Álgebra evolucionou, como acontece às línguas ordinárias, até tomar a forma que hoje admiramos. Foi um forte motivo para o seu progresso a mudança do sistema de numeração. Tais sistemas representam um papel primordial na língua das Matemáticas e a substituïção do inexpressivo sistema helénico pelo engenhoso sistema de posição, atribuído aos Índios, foi um grande progresso para aquela língua.

 

A ciência aberta por Diofante, passando à Índia, que desde a expedição de Alexandre Magno estava aberta à ciência helénica, ali se desenvolveu, dando origem, pela fixação de regras para as transformações das equações e pelo emprêgo do sistema de numeração mencionado, a uma Álgebra inteiramente numérica, menos rigorosa do que a Álgebra geométrica dos Gregos, mas mais simples e de aplicação mais fácil.

Na Grécia, a Álgebra caminhava pela mão de sua mãe, a Geometria, que solícita e rígida, a não deixava correr, com receio de que caísse. Na Índia, a filha desprendeu-se da mãe e fugiu-lhe, mas dirigia-a um como instinto vidente, e por isso não caíu. Êste instinto vidente, o génio, tinham-no também os matemáticos gregos, mesmo em maior grau do que os matemáticos índios, mas aqueles eram severos na lógica e por isso não desprendiam a quantidade discreta da quantidade contínua.

Representaram os principais papéis na cultura da Álgebra entre os Índios: Aryabhatta, Bramagupta e, por fim, Bhaskara, que a personificou poèticamente em uma mulher formosa, Lilavati, a quem propõe em verso problemas desta ciência, que ela resolve por meio de regras enunciadas também em verso Há nas obras destes dois últimos matemáticos ideias finas. Assim, por exemplo, no livro do último é dada, talvez pela primeira vez, a interpretação das soluções negativas das equações.

 

 

Acabamos de inventariar as principais riquezas do espólio opulento dos helenos nos domínios das Matemáticas puras, jóias de lógica e arte que ficaram clássicas e continuarão a sê-lo pelos séculos, como fundamentos essenciais do grandioso edifício matemático levantado pelo génio de arquitectos célebres de todos os tempos.

Nos domínios das aplicações da Matemática pura à Astronomia, legaram-nos os Gregos, além de observações preciosas dos astros, que foram depois aproveitadas, hipóteses engenhosas no Sistema astronómico dos Orbes homocêntricos de Platão e de Eudoxo de Cnido(4) e no sistema dos Orbes excêntricos de Ptolomeu.


(4) Ver Panegíricos e Conferências, pág. 235.

 

A êste respeito, importa nos em especial mencionar aqui a famosa Sintaxe matemática, obra onde o grande astrónomo de Alexandria reuniu os resultados das suas indagações sôbre os movimentos dos astros e os que herdara dos astrónomos que o precederam, em especial do grande Hiparco, principal fundador da Astronomia científica, que antes dêle fôra apenas esboçada.

Como dissemos em outro lugar, o Sistema geométrico exposto na obra mencionada para representar os movimentos planetários, satisfazia de tal modo às observações e permetia prever com tanta aproximação os fenómenos celestes, que, traduzida em árabe sob o título de Almagesto e mais tarde em latim, foi ela o código dos astrónomos durante cêrca de quatorze séculos, até que o génio de Kepler descobriu as suas famosas leis dos movimentos planetários.

Convém notar que Apolónio de Perga tinha inventado o Sistema dos Epiciclos, para representar o movimento dos astros, e que Hiparco o tinha aplicado. Ptolomeu primeiramente adoptou-o e completou-o, mas mais tarde substituiu-o pelo Sistema dos Orbes exposto no Almagesto, para se conformar com as doutrinas da Física de Aristóteles.

Encontram-se no Almagesto algumas passagens importantes relativas às Trigonometrias plana e esférica. Ptolomeu, seguindo ainda Hiparco, o fundador das ditas Trigonometrias, tomou nelas, para a determinação dos ângulos, a corda em vez do seno e deu as propriedades das cordas correspondentes ao teorema de adição do seno e seus corolários e as regras para construir tábuas das cordas correspondentes a ângulos dados. A substituïção do seno à corda e a introdução das tangentes dos ângulos foi obra dos Árabes. Sôbre Trigonometria esférica, deu o mesmo astrónomo duas das regras hoje clássicas para a resolução dos triângulos rectângulos, que obteve por meio do teorema de Menelau, e, quando nas suas obras teve de resolver triângulos esféricos oblíquos, reduziu a resolução à de dois triângulos rectângulos.

Veremos adiante que o Almagesto foi profundamente estudado em Espanha por Afonso o Sábio e seus astrónomos e em Portugal por Pedro Nunes, que o comentaram e em alguns pontos o continuaram.

Ajuntaremos ainda, a respeito do mesmo livro, que Delambre procurou distinguir, na sua Histoire de l'Astronomie, o que nêle pertence a Ptolomeu do que êste herdara de Hiparco.

 

Devemos também recordar aqui que o mesmo Ptolomeu escreveu um precioso tratado de Geografia, que grandes serviços prestou aos geógrafos e navegadores medievais, apesar dos seus numerosos defeitos na colocação dos lugares da Terra; defeitos resultantes das dificuldades que teve o autor em conseguir informações exactas das distâncias daqueles lugares, informações obtidas de viajantes, na maior parte das vezes inexperientes, que as avaliavam por simples estimativa, quási sempre sujeita a influência do seu estado de alma, que os levava a engrandecê-las ou a encurtá-las.

Nos seus mapas, empregou Ptolomeu os dois sistemas de representações chamados triangular e rectangular.

No sistema triangular, faz-se primeiramente corresponder a uma zona da Terra a superfície de um tronco de cone tangente à esfera terrestre ao longo do paralelo que a divide ao meio e cuja generatriz seja igual ao comprimento do arco do meridiano compreendido entre os paralelos que a limitam. Planificando depois êste cone, temos a carta triangular, em que os paralelos da Terra são representados por círculos com o vértice no ponto correspondente ao vértice do cone e os meridianos por linhas rectas que passam por aquele ponto.

No sistema rectangular, faz-se, primeiramente, corresponder a uma zona da Terra a superfície de um cilindro recto que passe pelo paralelo que a divide ao meio e cuja generatriz seja igual ao comprimento do arco do meridiano compreendido entre os paralelos que a limitam. Planificando depois êste cilindro, temos a carta rectangular, em que os paralelos e os meridianos da Terra são representados por dois sistemas de rectas paralelas, sendo as rectas do primeiro sistema perpendiculares às do segundo. Êste sistema de cartas geográficas tinha já sido empregado por Marino de Tiro. Ptolomeu notou os seus defeitos, mas empregou-o, por não se conhecer então outro melhor.

Também devo notar aqui que, entre nós, Pedro Nunes estudou profundamente o tratado de Geografia de Ptolomeu, aproveitou-o muitas vezes, anotou algumas passagens e traduziu do latim para português a Primeira parte.

 

Escreveu ainda Ptolomeu, sob o título de Sintaxe astrológica, um código de juízos para uso dos astrólogos, tirados dos aspectos do céu. Mencionamos aqui êste livro, a-pesar-de carecer de bases científicas, porque a Astrologia influiu consideràvelmente no progresso da Astronomia, dando aos astrónomos os meios pecuniários de que careciam para viver e trabalhar em assuntos sérios de ciência. Dizia a êste respeito Kepler: a Astronomia tem uma filha muito louca, chamada Astrologia, mas a mãe não engeita a filha, porque esta é rica e sustenta a mãe, que é pobre.

Resumindo o que a respeito da história da Astrologia dissemos nos nossos Panegíricos e Conferências (pág. 58 e pág. 252), recordemos que o astrólogo, que muitas vezes se tem confundido com o astrónomo, atribuía aos astros não só influências físicas sôbre a Terra, e portanto sôbre o corpo humano, mas ainda sôbre o pensamento, vontade e sorte dos homens, e mesmo sôbre o futuro das nações.

As ideias e práticas astrológicas nasceram na Caldeia e de lá passaram ao Egito e à Grécia, onde foram fàcilmente aceites, por se conformarem com as doutrinas da Física de Aristóteles.

Êste grande filósofo considerava os astros como potências inteligentes e incorruptíveis, que, actuando sobre a Terra, onde tudo é corruptível, produziam os diversos fenómenos que nela se observam.

Estas ideias foram seguidas pelos filósofos peripatéticos e depois pelos filósofos escolásticos até que, com o despontar da filosofia moderna, caíram com as doutrinas físicas do grande Stagirista. Mas destas ideias ficaram sempre vestígios, que ainda hoje se notam.

Uma conseqüência da crença nas influências dos astros sôbre os seres terrestres e na possibilidade de as prever, estudando-as convenientemente, era a necessidade para os médicos de conhecer a prática da Astrologia, a fim de apreciarem pelos astros o prognóstico das doenças e a ocasião de aplicarem os remédios. Por isso estudavam a Astronomia e, nas suas livrarias, ao lado de obras consagradas às hervas e às drogas, havia outras consagradas às práticas astrológicas.

O número dos crentes nos vaticínios da Astrologia era outrora tão grande e a fé nêles tão viva, que mesmo os médicos que não acreditavam nestes vaticínios, eram obrigados a estudá-la, a-fim-de terem fregueses e tirarem proveito material da sua profissão.

Dêste modo a Medicina concorreu para que se estudasse a Astronomia, que poucos cultores poderia ter naqueles tempos sem o seu uso na clínica astrológica.

Nas lições consagradas à história das Matemáticas em Portugal, encontraremos exemplos notáveis de médicos a representar papel importante com seus trabalhos astronómicos nas navegações lusitanas.

 

Entrando agora no domínio da Física, recordemos, pelo grande papel que representou na cultura científica e filosófica medieval, o tratado consagrado por Aristóteles àquela ciência, mistura genial de conceitos finos e subtis, que ficaram, e de paradoxos engenhosos, que desapareceram, aurora de uma ciência que se está a formar há mais de dois mil anos e que, substituindo a observação e a experiência a hipóteses metafísicas, subiu depois, com o auxílio da Matemática, a alturas que deslumbram.

Aristóteles mostrou neste livro ser um observador maravilhoso dos fenómenos naturais, mas as observações de um só homem não poderiam bastar para se constituirem teorias seguras sôbre fenómenos tão complexos e misteriosos, e por isso uma grande parte das doutrinas expostas no seu livro caíram. É que, na Física, as teorias vão sendo constantemente substituídas por outras que melhor satisfazem às observações e experiências, ligando geralmente as últimas e as anteriores algumas das suas ideias.

O físico peripatético observava os fenómenos naturais, procurava hipóteses para os explicar, relacionava-os qualitativamente, etc.; o físico moderno, além de observar, como aquele, os fenómenos, submete-os a experiências convenientemente preparadas para ver como se passam, mede-os, relaciona-os numèricamente e procura constituir teorias que os abranjam e os liguem. É na experimentação e no emprêgo do cálculo matemático que está a fôrça dos métodos modernos para o estudo da natureza e é no modo de preparar a experimentação e de constituir as teorias matemáticas dos fenómenos estudados que se revelam o engenho e a habilidade do físico.

As doutrinas físicas e astronómicas dos Helenos caíram diante das novas observações da natureza, feitas com perfeição sempre crescente, mas as grandes obras em que foram expostas, das quais acabamos de mencionar as duas principais, o Almagesto de Ptolomeu e a Física de Aristóteles, não ficaram esquecidas na vala comum do Cemitério da história, mas sim admiradas no Panteão das grandes produções da imaginação humana.

 

A maior parte dos matemáticos até agora mencionados pertenceram à famosa Escola de Alexandria ou a ela estiveram ligados. Esta Escola brilhou com esplendor durante o govêrno dos Lagides, começou a declinar quando Alexandria passou ao domínio dos Romanos e terminou quando esta cidade caíu no poder dos exércitos árabes do Califa Omar.

Concorreu muito para a decadência daquela Escola a luta travada entre os Cristãos e os Pagãos da cidade, depois que o Cristianismo aí se firmou, luta que se tornou algumas vezes belicosa. A Escola ficou prêsa à antiga religião helénica e procurou aproximar-se nas doutrinas filosóficas que ensinava, das doutrinas de Cristo, adoptando a filosofia de Platão, que era dos sistemas filosóficos helenos o que mais se aproximava da filosofia dos padres cristãos. A-pesar-disso, os adoradores de Jesus odiaram-na, combateram-na e concorreram para o seu enfraquecimento. Uma conseqüência desta luta foi a morte trágica de Hipatia, que ensinava filosofia na Escola, mulher formosa, eloqüente e sábia, em que estava encarnado o maior espírito de mulher de que fala a história antiga(5).


(5) Pode ver-se a biografia desta mulher célebre nos nossos Panegíricos e Conferências, pág. 197.

 

A Escola de Atenas, que brilhara explêndidamente com Platão e Aristóteles e adquirira um certo prestígio quando a de Alexandria decaía, estava naqueles tempos já apagada. Apagara-a no século VI o imperador Justiniano, proibindo nela o ensino da filosofia pagã.

Extintas assim as Escolas de Alexandria e Atenas, os dois mais luminosos faróis da filosofia e da ciência antiga, ficou como último refúgio da ciência helénica a Escola de Bisâncio; mas em breve surgiram entre os Árabes novos centros de estudo, onde as obras científicas dos Gregos reapareceram com brilho, como vamos ver.

 

 

Foram principais herdeiros das obras de ciência e filosofia dos Helenos a mencionada Escola de Bisâncio, que as conservou como relíquias preciosas, sem fazer progredir sensivelmente os assuntos considerados nelas, e os Árabes, raça nova e forte, que então começava a dominar e a quem a cultura científica era vivamente recomendada pelos livros do seu Profeta, os quais as estudaram, comentaram e continuaram.

O povo romano, conquistador do povo grego, foi grande na literatura, inspirada na literatura helénica foi grande na arte da guerra, foi grande na arte política, mas foi mediocre nas ciências exactas.

Na história da sua cultura científica, aparecem nomes de naturalistas ilustrados, mas não aparece nome algum de sábio que tenha feito avançar as Matemáticas de um modo notável. Não viam nestas ciências o que elas têm de belo sob o ponto de vista filosófico, viam sòmente o que têm de pràticamente útil as suas medidas e cálculos. Os seus cultores das Matemáticas, com Boécio à frente, limitaram-se a ensinar as doutrinas mais simples da Matemática grega, principalmente as que eram aplicáveis à vida individual e colectiva ordinária.

Com a queda do Império romano ocidental pelas invasões dos Bárbaros, tôdas as ciências desapareceram completamente da parte invadida da Europa, mas continuaram a luzir, ainda que muito frouxamente, no Império oriental.

Mais tarde, quando os Romanos e os Bárbaros, os vencidos e os vencedores, se fundiram, estabelecendo novos estados e constituindo uma nova civilização de amor, que, por influência do Cristianismo, substituíu a sanguinária civilização pagã da velha Roma, começaram elas a despontar de novo nesta parte da Europa, por acção e influência da igreja católica. Foram primeiramente cultivadas pelos monges beneditinos, que juntaram a obrigação do estudo aos outros deveres impostos pela regra da sua Ordem. Depois, pela influência directa dos Papas, criaram-se escolas junto de algumas catedrais e fundaram-se universidades, onde se estudava, além da Teologia, tudo o que é necessário para fazer sacerdotes regularmente cultos e das quais saíram alguns homens notáveis pela inteligência e sabedoria.

Nas escolas em que se ensinavam as ciências, expunham-se principalmente as doutrinas físicas de Aristóteles e o ensino delas era misturado ao ensino das doutrinas dos outros ramos da filosofia. Às mais célebres destas escolas concorriam numerosos estudantes de diversos países para ouvir os filósofos afamados. O ensino era oral. Ordinàriamente o mestre lia ou explicava e o aluno ouvia e tomava apontamentos. Só no fim da Idade Média começou, com a invenção da imprensa, o ensino pelo livro a espalhar as doutrinas dos grandes mestres, sem ser necessário freqüentar escolas.

 

A entrada das Matemáticas na Península hispânica

As ciências entraram na Península hispânica por duas vias: primeiro, sob forma rudimentar, pelo norte, trazidas do Oriente principalmente por sacerdotes cristãos; depois pelo sul, sob forma levantada, trazidas pelos Árabes que invadiram as Espanhas.

Entre os homens ilustres que as receberam pela primeira via, distinguiu-se no século VI Santo Isidoro, Bispo de Sevilha, varão notável pela imensa erudição manifestada na sua enciclopédia sôbre a Origem das coisas, vasta reünião de variadíssimos assuntos, entre os quais estão compreendidos muitos que se referem aos rudimentos das ciências matemáticas.

Esta obra, espalhada pela Europa, foi um guia dos estudiosos até à introdução nas Espanhas da ciência mais alta bebida pelos Árabes nas fontes helénicas.

Recordei aqui esta enciclopédia, porque é muito própria para se ver quanto a ciência latina era inferior à ciência introduzida mais tarde pelos Árabes nas cidades da Betica, depois senhores do império gótico das Espanhas.

A ciência vinda das bandas de Bisâncio era sêca, terrena, utilitária; a ciência trazida pelos Árabes às Espanhas era filosófica e desinteressada, era música da razão, era glória do espírito humano.

Pelo que respeita às Matemáticas, foram as suas doutrinas, depois de entrarem na nossa Península, cultivadas com sucesso primeiramente por sábios islamitas em Córdova, Sevilha, Granada, etc. e mais tarde por sábios cristãos e judeus em Toledo e Salamanca.

Os seus principais cultores na Espanha muçulmana foram enumerados, com indicação dos assuntos de que se ocuparam, pelo sábio matemático espanhol sr. Sanches Peres em uma excelente memória premiada e publicada pela Academia das Ciências de Madrid.

Seja-me permitido recordar aqui os seguintes:

1.°—Alpetrágio, que deu para representar os movimentos do Sol, da Lua e dos Planetas então conhecidos um Sistema de Orbes homocêntricos com a Terra diferente do que imaginara Eudoxo de Cnido, Sistema que denota muito saber astronómico e notável engenho geométrico e que teve grande sucesso entre os Escolásticos medievais. Alpetrágio é memorado com louvores em todos os escritos que apareceram desde o seu tempo sôbre os sistemas cosmológicos dos antigos sábios helénicos, e o nosso Pedro Nunes menciona e examina resultados de observações feitas pelo ilustre astrónomo árabe em uma notícia histórica e crítica sôbre o tríplo movimento da oitava esfera do Sistema de Ptolomeu, publicada no tratado De arte atque ratione navigandi.
2.°—Outro matemático notável da Espanha muçulmana foi Geber (Gabir ihn Aflak), natural de Sevilha. Comentou o Almagesto dando demonstrações novas de alguns teoremas desta obra e continuou a doutrina de Ptolomeu sôbre a resolução dos triângulos esféricos rectângulos, dando a relação entre os dois ângulos oblíquos e um lado oposto a um dêles, caso que aquele geómetra não considerara . Dá um carácter notável à obra do célebre Matemático de Sevilha o papel que nela representa a Álgebra algorítmica, posta ao serviço de assuntos geométricos.
3.°—Recordemos também Azarquiel ou Al-Zarkali, de 'I'oledo, que no século XI, procurou a curva descrita por Mercúrio à roda do Sol, pondo assim um problema que foi mais tarde resolvido por Kepler sôbre o planeta Marte. O resultado gráfico obtido pelo astrónomo árabe tem a forma de oval alongada. Para obter a definição geométrica desta oval, seria necessário comparar a linha gráfica obtida por Azarquiel com curvas hipotéticas, convenientemente escolhidas, que se aproximassem dela na forma. Ora, como bem disse Rico y Sinobas no seu comentário aos Libros del saber de Afonso X, Azarquiel teria provàvelmente experimentado a elipse, se conhecesse a obra de Apolónio sôbre as secções do cone, então ainda não divulgada na Europa.
Mas, o que deu mais celebridade a êste grande astrónomo, foi a sua doutrina sôbre o movimento de trepidação dos equinócios, que substitue a antiga doutrina de Hiparco e Ptolomeu, que atribuiam aos equinócios um deslocamento em sentido constante, e a doutrina do astrónomo árabe Tabit, que lhes atribuía um movimento de avanço e retrocesso, por outra doutrina, muito engenhosa, em que há continuïdade no sentido do movimento daqueles pontos, e que dá ao seu autor o direito a figurar como um precursor de Bradley na teoria da nutação do eixo da Terra.
4.°—Recordemos os aritméticos Bem-Albani, que ligou o cálculo com o abaco ao cálculo com algarismos, e Alkalradi, que escreveu no século XV uma obra notável sôbre Aritmética e Álgebra, que foi traduzida em francês por Woepcke e publicada no tômo XII das Atti dell'Academia dei Nuovi Lincei (Roma, 1839).
5.°—Mencionarei emfim Avempace e Averroes, os maiores filósofos árabes medievais, que combateram vigorosamente a Astronomia ptolomaica, por não se harmonizar com os postulados da Física peripatética.

Recordei aqui estes nomes de sábios islamitas, porque a êles foram beber doutrinas os nossos matemáticos, os nossos astrónomos e os nossos filósofos.

Dos matemáticos árabes pertencentes ao império, oriental, mencionarei aqui primeiramente Albaténio que viveu na passagem do século IX para o século X e trabalhou em Bagdad, e cujas observações, tábuas e doutrinas astronómicas e trigonométricas influíram na ciência hispânica e depois na portuguesa. Foi o principal continuador de Ptolomeu em Astronomia e em Trigonometria esférica, deu regras para resolver os triângulos gerais, no caso de serem dados dois lados e o ângulo compreendido entre êles e se pedir o terceiro lado, e no caso de serem dados os três lados e se pedirem os três ângulos, regras que coïncidem com as que correspondem ao chamado teorema fundamental da trigonometria esférica. O Observatório Astronómico de Milão publicou, há poucos anos, uma bela edição em árabe e latim das obras dêste astrónomo, sob o título de Opus astronomicum.

Mencionarei também Alhazen, que viveu na passagem do século X para o século Xl, o qual se tornou notável por trabalhos de Óptica, um dos quais, relativo aos crepúsculos, de que adiante falaremos, foi o ponto de partida dos estudos do nosso Pedro Nunes sôbre estes fenómenos.

E mencionarei finalmente Nassir-Eddin, um dos matemáticos a quem se atribui o teorema dos quatro senos da Trigonometria esférica (o outro é Abul-Wafa) e a quem se deve o emprêgo do triângulo polar na resolução dos triângulos esféricos; e Alkarismi, que escreveu um tratado de Álgebra em que são consideradas as equações do primeiro e do segundo grau e numerosos problemas, tratado que teve muita influência na divulgação das doutrinas algébricas dos Gregos e Índios.

 

 

As Matemáticas começaram a luzir na Espanha muçulmana depois da divisão do enorme império árabe fundado por Mahomet e seus sucessores em dois: um, o oriental, com a capital em Bagdad, outro, o ocidental, com a capital em Córdova. Então a Escola de ciências desta última cidade tornou-se rival da Escola célebre que Abul-Abbas tinha fundado em Bagdad quando, tendo vencido e expulso a dinastia dos Omíadas do primitivo império árabe, transferira a sua capital de Damasco para aquela cidade.

Mais tarde, a Escola de Córdova atingiu um alto grau de esplendor, quando Abdurrahamam III, cercando-se de sábios muçulmanos vindos de diversas terras, fêz da capital do seu império um centro famoso de cultura intelectual. Pelo que respeita às Matemáticas, nesta cidade foi não só estudada com sucesso a Astronomia, mas foi também esboçada a aplicação da Álgebra à Geometria, que mais tarde, seguindo de progresso em progresso, havia de fazer da ciência da extensão um ramo formoso da Análise matemática .

Este facto deve ser notado. O que caracteriza a Matemática helénica é a sua pureza geométrica; o que caracteriza a Matemática indiana é a audácia na Álgebra; a Matemática árabe é caracterizada pela ligação das duas qualidades.

É crível que os matemáticos gregos já tivessem feito aplicações daquela natureza nas suas indagações, sem terem a franqueza de o dizer, apresentando depois os resultados obtidos com vestes novas, para os apresentar sob forma geométrica indiscutível. Este modo de ver é expressivamente apresentado por Pedro Nunes na passagem seguinte da sua Álgebra:

 

«Oh ! que bom fôra se os autores que escreveram nas ciências matemáticas nos deixassem escritas as suas invenções pelos mesmos discursos que fizeram até que as encontraram. E não como Aristóteles diz dos artífices que mostram na máquina que fizeram o que está de fora e escondem o artifício, para parecerem admiráveis. É a invenção muito diferente da tradição em qualquer arte, nem penseis que aquelas tantas proposições de Euclides e Arquimedes foram tôdas achadas pela mesma via pela qual as trouxeram até nós».

 

Estas palavras aplicam-se em especial às questões em que intervêm quantidades indefinidamente decrescentes, nas quais os geómetras helenos recorriam ao chamado método de exaustão, para descobrir os teoremas, e depois, para os firmar, empregavam longas demonstrações por absurdo, que encobriam os meios de os achar. Arquimedes é assombroso em questões difíceis desta natureza, e não se podem explicar os triunfos que obteve na resolução de questões relativas à medida de volumes de sólidos, de áreas de superfícies planas e curvas e de determinações de centros de gravidade, sem admitir que empregava métodos aritméticos, para inventar os seus teoremas, e que depois os apresentava vestidos de roupagens geométricas, para satisfazer às exigências de rigor dos matemáticos do seu tempo. E foi assim que procederam, como vimos, os matemáticos índios.

O pensamento mencionado de Pedro Nunes tem sido repetido por autores modernos, e está confirmado por uma carta dirigida pelo grande geómetra de Siracusa a Eratóstenes encontrada em 1907 por Heiberg, em Constantinopla.

Agora, antes de prosseguir, convém notar que a ciência dos árabes não entrou na Europa só pela Espanha; entrou também pela Itália, onde no século XIII a Álgebra heleno-indiana foi introduzida por Leonardo Fibonacci, de Pisa, que a estudara entre os Árabes em viagens pelo Mediterrâneo. A obra—Liber Abaci,—do célebre matemático, ficou esquecida por muito tempo, mas as suas doutrinas foram mais tarde, no século XV, ampliadas e divulgadas por Frei Lucas de Burgo, e tiveram um progresso notável com Tartáglia, que resolveu no século XVI a equação geral do terceiro grau.

A notícia dos trabalhos dêstes matemáticos insignes foi espalhada na nossa Península, no mesmo século XVI, principalmente pelo aritmético português Gaspar Nícolau, que se ocupou de alguns problemas estudados por Frei Lucas, depois por Marco Aurel, alemão domiciliado em Espanha, que ensinou doutrinas do mesmo Frei Lucas, e enfim por Pedro Nunes, que expôs, de um modo amplo as teorias algébricas do célebre matemático italiano e fêz conhecer as de Tartáglia sôbre a equação do terceiro grau, como veremos.

É interessante notar que esta influência da ciência italiana sôbre a ciência lusa se estendeu nos mesmos tempos às literaturas dos dois países.

 

 

As escolas andaluzas de ciência atingiram o auge do seu esplendor, quando o império árabe ocidental subiu ao auge do seu poderio e grandeza. Depois declinaram, os clarões que imitiam afrouxaram, tornaram-se luz crepúscular, por fim desapareceram. Quando os cristãos, depois de lutas violentas e tenazes, arrastaram os agarenos até às suas terras de África, não levaram estes comsigo a ciência que tinham introduzido nas Espanhas. Os seus faróis de alta cultura tinham-se apagado e os seus sábios tinham desaparecido. Deixaram porém, como opulentos despojos, aos vencedores a herança científica que tinham recebido dos Helenos, com os aumentos preciosos que êles próprios lhe tinham feito.

De facto, todas estas riquezas se vinham reünindo no interposto de Toledo desde o ano em que a suberba capital da velha Gotia, voltando a ser capital de um estado cristão, se tornara, primeiramente, um centro prestigioso de divulgação da ciência heleno-árabe e, depois, o mais alto centro medieval de investigação astronómica. Em tudo isto representaram um grande papel os Judeus, raça activa e inteligente, que entrara nas Espanhas após a invasão dos Mouros, e que, ávida de possuir uma pátria, aqui se fixou e aqui estabeleceu os seus lares.

Quando ainda estava sob o domínio muçulmano, já Toledo era um centro notável de cultura. Nesta cidade viveu, no século XI, e teve o seu observatório Azarquiel, o célebre astrónomo árabe há pouco mencionado, e crê-se que nela compôs as famosas tábuas astronómicas conhecidas pela designação de Tábuas de Toledo.

Na mesma cidade, depois de passar ao domínio de Castela, tiveram as ciências e a filosofia um protector no Arcebispo D. Raimundo, que mandou traduzir por João de Luna e Gerardo de Cremona algumas obras mais importantes dos Gregos e dos Árabes, traduções que espalhadas por cópias e mais tarde pela imprensa, concorreram notàvelmente para o progresso das doutrinas a que são consagradas.

E, ainda na mesma cidade, foi depois a Astronomia cultivada com brilho por Afonso X, o Sábio, e pelos seus colaboradores na organização e calculo das chamadas Tábuas Afonsinas e na redacção dos Libros del saber de Astronomia com que aquele monarca enriqueceu esta ciência.

Para realizar o seu grande plano de reorganização completa das tábuas e doutrinas astronómicas, chamou Afonso X à sua côrte os astrónomos mais afamados do seu tempo, cristãos, judeus e maometanos, fêz traduzir alguns tratados árabes importantes que convinha estudar, e mandou construir por artistas escolhidos os instrumentos até êsses tempos usados para a observação do céu, fazendo assim do seu Paço uma verdadeira Academia de ciências astronómicas e uma Oficina-escola ao serviço das mesmas ciências.

É belo imaginar o filho de Fernando-o-Santo, com a sua tolerância de filósofo, cercado de seguidores de três religiões diferentes, a estudar e a admirar com êles nas maravilhas da obra da criação a grandeza suprema de um Deus, que no seu culto vêm sob três aspectos diversos.

São todos homens inteligentes e cultos, e, no meio dêles, o monarca castelhano, com a cabeça coroada do duplo diadema de filósofo e de rei, é o génio que os dirige e a vontade que os manda.

As Tábuas Afonsinas e os Libros del saber de Astronomia constituem o monumento mais importante que sôbre esta ciência nos legou a Idade-Média, e foram uma das bases principais dos progressos que ela teve nos séculos seguintes. Nestas obras são melhoradas as Tábuas para o conhecimento dos lugares dos astros na esfera celeste, são minuciosamente descritos e estudados os instrumentos astronómicos, são dados preceitos aos artistas para construir e aperfeiçoar estes instrumentos e aos astrónomos para bem os empregar e são considerados numerosos problemas postos nos tempos anteriores desde a mais alta antiguidade e apresentados outros novos.

Deu uma importância especial às Tábuas mencionadas a circunstância de na sua edição latina ser considerado o movimento da linha dos equinócios como resultante do movimento de precessão segundo Ptolomeu e do movimento de trepidação segundo Azarquiel. Assim, a oitava Esfera ptolomaica, a Esfera das Estrêlas, aparece na obra dos astrónomos de Toledo dotada de três movimentos: o movimento diurno à roda do eixo do Mundo, o movimento à roda do eixo da Eclíptica, a produzir a trepidação, e o movimento muito lento à roda de uma outra recta que passa também pelo centro da Terra, e à roda do qual gira o eixo da Eclíptica, a produzir a precessão dos equinócios. Foi esta a forma mais perfeita que a doutrina do movimento da linha dos equinócios tomou antes de Bradley e isto explica o sucesso das Tábuas do rei Afonso

Para dar a esta doutrina uma forma compatível com a Física peripatética, introduziram mais tarde os Escolásticos duas novas esferas sem astros, a produzir os dois movimentos dos equinócios. Os matemáticos não precisavam de tais esferas e, geralmente, não falam delas: falam, sim, do movimento triplo da Oitava Esfera.

Não nos deteremos mais tempo a falar dos trabalhos da Escola astronómica de Toledo. Não é necessário. Foram êles desenvolvidamente analisados por Rico y Sinobas no seu notável comentário a estes trabalhos e o distinto historiador espanhol D. Francisco Vera consagrou-lhe um longo e interessante capítulo do segundo volume .da História da Matemática em Espanha, que está a publicar.

Encontra-se em particular neste volume da obra do sr. Vera uma lista de referências instrutivas de astrónomos ilustres às Tábuas afonsinas. A esta lista podemos juntar as de Pedro Nunes, que no seu tratado De arte atque rationale navigandi e nas suas Annotationes à teoria dos Planetas de Purbachio, se ocupou de algumas passagens das referidas Tábuas, como em outro lugar veremos.

As Tábuas afonsinas foram muito empregadas pelos astrólogos para os seus vaticínios, mas não foi para êles que o rei Afonso as mandou compor. O espírito dêste monarca, que chamava para si os sábios e repelia os astrólogos e escolásticos do seu tempo, via alto de mais para se ocupar com superstições e quimeras astrológicas ou com hipóteses arbitrárias e aspirava ao conhecimento dos segredos do Universo.

Diz uma tradição ou lenda que Afonso X se queixava de Deus por ter complicado muito a Máquina do Mundo. Isto significa que ao seu espírito de filósofo repugnava aceitar, como correspondendo a obra divina, o complexo Sistema matemático inventado por Ptolomeu para explicar os movimentos dos astros, Sistema que êle e os seus colaboradores foram obrigados a complicar mais, associando no cálculo das Tábuas astronómicas o movimento de precessão segundo Ptolomeu ao movimento de trepidação segundo Azarquiel. Mais tarde Kepler deu-lhe razão, banindo da ciência o Sistema ptolomaico, que passou para a história, onde continua a brilhar como recordação de um grande passado.

Com a composição das suas Tábuas e dos Libros del saber de Astronomia prestou Afonso X um grande serviço à nossa Península, que em Portugal se sentiu mais tarde, como veremos, e outro lhe fêz com a fundação de uma cadeira de Astronomia na Universidade de Salamanca, que era naqueles tempos o primeiro centro de estudos da Espanha cristã.

A Escola astronómica de Toledo deu grande honra à Espanha e foi precursora da Escola brilhante que se formou mais tarde na Alemanha, a Escola dos Purbachios, dos Regiomontanos, dos Ticho-Brahe e dos Kepler.

As Tábuas afonsinas aparecem sempre nos trabalhos dos astrónomos posteriores à sua composição, até à reforma astronómica de Kepler, como um complemento da doutrina do Almagesto de Ptolomeu sôbre o movimento dos astros.

É certo que houve quem pretendesse apoucar a obra de Afonso X, dizendo que êle não conhecia os trabalhos de Albaténio, indispensáveis a quem quisesse continuar a obra dos astrónomos gregos e Árabes, por não estarem ainda traduzidas em latim. Esta afirmação é falsa. Segundo diz o nosso Pedro Nunes no capítulo IV do tratado De arte atque rationale navigandi, existia no seu tempo na Biblioteca de Alcalá de Henares um manuscrito onde se encontravam, ao lado das Tábuas afonsinas, as Tábuas de Ptolomeu e de Albaténio, para que se pudessem comparar.

 

Convém agora que, antes de terminar êste assunto, o complete, consagrando algumas palavras ao papel, sob o ponto de vista geral, dos Judeus da Espanha no progresso da Astronomia.

Na passagem dos Helenos para os Árabes perdera a cultura científica no seu espírito filosófico e mais perdeu na passagem dos Árabes para os Judeus. Estes cultivaram a princípio a Astronomia quási sòmente com o fim religioso, para fixarem as datas das festas, e com o fim utilitário, para a aplicarem à Medicina. Por isso, entregues das riquezas que legou a Escola de Toledo, os astrónomos judeus da Península Hispânica anteriores ao século XVI pouco mais fizeram do que aperfeiçoar as tábuas e as regras para a determinação das posições dos astros e para o computo do tempo, sem procurarem penetrar nos mistérios da mecânica dos céus. Mas, com a sua vida errante, espalharam aquelas riquezas e as que tinham recebido dos Árabes por tôda a nossa Península, levaram-nas, além dos Pirenéus, até à Provença, e, quando mais tarde foram expulsos da Espanha por Isabel-a-Católica e de Portugal por D. Manuel I, levaram-nas como presente aos países onde foram procurar um asilo, uma nova pátria de empréstimo.

 

Programa dêste livro

Ao terminar esta Introdução, demos, como programa do livro, um resumo das doutrinas que vão ser expostas nas páginas seguintes.

A história das Matemáticas em Portugal pode ser dividida em cinco períodos(6). O primeiro o período de formação, principia no reinado de D.João I e vai até à morte de D. João II. Começa então o segundo período, o período de brilho, que vai até aos fins do século XVI. A estes períodos seguiu-se outro, o de pobreza, que vai até meados do século XVIII. Então, com a reorganização dos estudos na Universidade de Coimbra pelo Marquês de Pombal e com a fundação da Academia das Ciências de Lisboa, começou o quarto período, que estenderemos até meados do século XIX, em que começou o período actual.

 


(6) Ver Panegíricos e Conferências, pág. 158..

 

No primeiro período, que coïncide com os tempos áureos do povo luso, tôda a nossa cultura matemática girou à roda de uma idea fundamental: preparar os elementos científicos necessários para as grandes navegações no mar alto. Ocuparam-se desta preparação sábios de Portugal e da Espanha, entre os quais se eleva gloriosa a grande figura de Pedro Nunes, o príncipe dos matemáticos da Península Ibérica. Foram estes sábios que, aplicando o Astronomia à Náutica, deram aos nossos pilotos as luses necessárias para conduzir as naus por mares misteriosos, entre perigos e dificuldades sem conta, até às praias desconhecidas do Brasil e até às águas longínquas do Pacífico, fazendo de Lisboa a raínha gloriosa dos mares.

O terceiro período da história das Matemáticas em Portugal coïncide com o período de maior brilho da ciência europeia. Foi neste período que Viete fundou a Álgebra moderna, que Kepler e Galileu fizeram as suas famosas descobertas físico--matemáticas, que Descartes e Fermat inventaram a Geometria analítica, que Newton e Leibniz inventaram o cálculo dos infinitamente pequenos; e foi ainda no mesmo período que Newton, com a mais sublime das descobertas que até hoje pôde fazer o espírito humano, transformou a velha Astronomia em um ramo maravilhoso da Mecânica racional.

Mas de tão intensos clarões, nem um ténue lampejo parece ter atravessado nesses tempos as fronteiras de Portugal.

No quarto período entrou no nosso país a ciência dos sábios estrangeiros do século XVII e dos seus continuadores do século XVIII. Na lista dos matemáticos ilustres que tivemos neste período, brilham principalmente Monteiro da Rocha e Anastácio da Cunha, que o abriram, e depois dêles alguns dos seus discípulos e continuadores.

O quinto período, o período moderno, começou nos tempos que se seguiram às campanhas da liberdade, nos meados do século XIX, e vai continuando no nosso tempo. Neste período entraram em Portugal as doutrinas de Poncelet, Chasles, Poinsot, Gauss, Cauchy, Abel, Jacobi e de outros gigantes da ciência, que, não podendo resolver com os métodos herdados dos grandes geómetras dos séculos anteriores os novos problemas que se lhes apresentaram, descobriram novos métodos para penetrar nos mistérios dos números e com êles abriram nas Matemáticas novos caminhos, estenderam teorias antigas e construíram teorias novas. Abriu êste período Daniel da Silva, que será o último geómetra considerado na nossa rápida viagem pela história das Matemáticas em Portugal.

Fonte e complementação do artigo: http://www.mat.uc.pt/~jaimecs/livrogt/indice.html


 

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