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Indicações bibliográficas
As Matemáticas na Antiguidade e na Idade
Média
A entrada das Matemáticas na Península
hispânica
Programa dêste livro
O objecto dêste livro é a história da cultura
das Matemáticas em Portugal desde a fundação
do Reino até meados do século XIX e
das relações desta cultura com a evolução
política do país. Para se apreciar o estado
dos estudos daquela história no momento em
que êste livro aparece, vamos mencionar
e analisar sucintamente os trabalhos publicados
a êste respeito anteriormente; e, para colocar
o assunto especial, que é objecto do livro,
no quadro da história geral do pensamento
matemático, descreveremos em seguida a traços
largos a evolução dêste pensamento desde a
antiguidade até ao desabrochar das referidas
ciências em Portugal. São estes os assuntos
de que vamos ocupar-nos nesta Introdução.
As Matemáticas puras estão estreitamente
ligadas a Cosmologia, que elas iluminam, e
a Filosofia, que dirige o pensamento científico;
por isso à história daquelas ciências juntaremos
a história da Astronomia, ciência que em Portugal
representou um grande papel na náutica, e,
de espaço a espaço, algumas noções da história
da Física e da Filosofia.
Indicações bibliográficas
O mais antigo escrito consagrado à história
da cultura das ciências exactas pelos portugueses
é o Ensaio Histórico sôbre a origem e progressos
das Matemáticas em Portugal, publicado
em 1819, em Paris, por Francisco de Borja
Garção Stockler, livro que contém a história
das referidas ciências desde a fundação do
Reino até ao século XVIII. É um trabalho interessante
e bem escrito, e o seu assunto principal é
seguido de notas eruditas que o valorizam;
mas, como o seu título indica, é muito resumido
e é pouco profundo na apreciação de algumas
das obras consideradas. Além disso, a parte
que se refere às aplicações das Matemáticas
à náutica é incompleta e algumas vezes inexacta,
por não dispor o autor dos documentos que
actualmente se conhecem sôbre o assunto. Para
o estudo desta última questão, temos hoje
dois trabalhos importantes: LÁstronomie
nautique en Portugal à l'occasion des grandes
découvertes, livro publicado em l912 por
Joaquim Bensaúde, e um artigo sôbre o modo
de navegar dos nautas lusos nos séculos XV
e XVI, publicado pelo Dr. Luciano Pereira
da Silva na obra monumental intitulada Colonização
do Brasil pelos portugueses, organizada por
Malheiro Dias para celebrar o quinto centenário
da descoberta dêste país.
O livro de Bensaúde é fundamental no estudo
da história da Astronomia aplicada à Náutica
lusa, porque são substituídas nêle lendas,
tradições e hipóteses por factos demonstrados.
O Dr. Pereira da Silva, na sua Memória,
segue e continua magistralmente aquele autor
nas suas indagações.
É um subsídio valioso, sob o ponto de vista
bibliográfico, para a história da cultura
das Matemáticas em Portugal, o catálogo das
obras de autores portugueses publicado pelo
engenheiro Rodolfo Guimarães sob o título:
Les Mathématiques en Portugal. Os títulos
das obras são geralmente acompanhados neste
catálogo de curtas notícias sôbre os seus
assuntos e algumas vezes ligeiras apreciações;
mas estas apreciações parecem resultar de
leituras superficiais e não podem ser aceites
sem o exame cuidadoso das obras a que se referem.
E não é isto estranhável, porque é muito grande
o número das obras e assuntos que o autor
do livro teve de estudar para o compor.
Mencionarei também aqui os excelentes opúsculos
sôbre a história das Matemáticas puras e da
Astronomia em Portugal publicado recentemente
pelos Doutores Pedro José da Cunha e Francisco
Miranda da Costa Lobo, opúsculos que fazem
parte de uma colecção de monografias sobre
diversas manifestações da actividade portuguesa,
apresentadas na Exposição Íbero-Americana
de Sevilha.
Convém ainda assinalar a Memória histórica
da Faculdade de Matemática da Universidade
de Coimbra, publicada pelo Dr. Francisco
de Castro Freire na ocasião da celebração
do primeiro centenário da criação desta Faculdade.
Contém êste livro, além da descrição da vida
da Faculdade durante o primeiro século da
sua existência, biografias resumidas dos professores
que se tornaram notáveis pela publicação de
trabalhos de mérito, sem todavia fazer a análise
dêstes trabalhos, lacuna que procurarei preencher.
Eu próprio me ocupei da história das Matemáticas
em Portugal num livro intitulado Panegíricos
e Conferências, publicado em 1925 pela
Academia das Ciências de Lisboa, onde fiz
os elogios históricos de Pedro Nunes, Monteiro
da Rocha, Anastácio da Cunha e Daniel da Silva.
São estes sábios ilustres as principais figuras
da matemática portuguesa e a simples reünião
dos quatro elogios quási equivale a uma história
completa das Matemáticas em Portugal. Farei
neste livro esta reunião, ajuntando porém
os resultados de estudos do assunto feitos
depois da publicação daqueles elogios e entrando
mais fundamente na análise dos métodos que
aqueles matemáticos empregaram e das demonstrações
com que estabeleceram os teoremas que descobriram.
Não se deve, pois, estranhar que faça numerosas
transcrições da obra mencionada. Quando o
novo estudo que fiz dos assuntos considerados
nela, não me levou a modificar o meu pensamento,
alterar o modo de os expor seria fazer trabalho
inútil. Dou às doutrinas a disposição sistemática
que o novo modo de as considerar determina,
melhoro-as quanto posso e ajunto outras, mas
não altero com nova redacção o que não é necessário
alterar.
Em suma, este livro é como uma nova edição
das passagens relativas à história das Matemáticas
em Portugal dispersas pelo anterior, refundidas
de modo a formarem um todo harmónico, ampliadas
com novas doutrinas e melhoradas por novos
estudos das matérias contidas no primitivo
livro.
Nas revistas científicas portuguesas encontram-se
ainda muitos artigos sôbre pontos especiais
da mesma história, que não mencionarei agora,
mas que citarei quando o julgar oportuno.
Também há numerosas referências à Matemática
lusa em livros e artigos de sábios estrangeiros.
Em particular, na Histoire de l'Astronomie
de Delambre, são larga e profundamente analisados
os trabalhos astronómicos de Pedro Nunes.
Pena é que o grande astrónomo francês se desvie
em algumas ocasiões do seu papel de historiador,
e, em vez de nos apresentar as demonstrações
do matemático português em linguagem analítica
moderna, prefira mostrar-nos o seu próprio
engenho, apresentando novas demonstrações
suas das proposições inventadas por Nunes.
As Matemáticas na
Antigüidade e na Idade-Média
A história das Matemáticas em Portugal está
estreitamente ligada à história das Matemáticas
na Espanha e ambas estão intimamente ligadas
à história destas ciências entre os Gregos,
Índios e Árabes.
Antes pois de entrar nos assuntos especiais
dêste livro, convém que consagre algumas palavras
à descrição, a traços largos, do estado das
referidas ciências na ocasião da sua introdução
na Península hispânica e do modo como esta
introdução se fêz (1).
(1)
Para o estudo desenvolvido
da história das Matemáticas entre
os Gregos, Índios e Árabes, não é
felizmente necessário em Portugal
recorrer-se a livros estrangeiros,
porque temos para isso em língua portuguesa
um Manual excelente, intitulado: História
das Matemáticas na Antiguidade, de
que é autor o sr. Fernando de Vasconcelos,
professor no Instituto Superior de
Agronomia.
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Ao terminar a civilização dos Helenos, povo
admirável que soube dar às ciências, às letras
e às artes as suas formas mais belas, os seus
filósofos e sábios tinham analisado o mundo
físico e fundado as ciências, tinham analisado
a linguagem e constituído a Gramática, tinham
analisado os costumes e fundado a Moral, tinham-se
analisado a si próprios e fundado a Lógica
e a Psicologia, tinham aberto a filosofia
das religiões, que mais tarde se chamou Teodiceia,
e, a coroar poeticamente o seu edifício filosófico,
tinham pôsto a sonhadora Metafísica, com as
suas hipóteses, com os seus idealismos, com
as suas aspirações a penetrar nos mistérios
das causas primeiras do Universo.
Legaram-nos estes sábios e estes filósofos
métodos rigorosos para o estudo do mundo interior
e do mundo físico, que aplicaram admiravelmente
a constituição de ciência, quando tinham os
elementos necessários para o fazer; quando
os não tinham, levados pela ambição de tudo
explicar, constituíram teorias hipotéticas,
que os sábios modernos tiveram algumas vezes
de regeitar, mas nunca deixaram de admirar
(2).
(2)
Panegíricos e Conferências,
pág. 59.
|
De facto, em tudo o que em filosofia e ciência
nos legou a velha Grécia, o pensamento e a
arte aparecem admiravelmente unidos. Como
dissemos em outro lugar,.«o povo helénico
deu arte à ciência e pensamento à arte; nos
seus variados escritos, como nas suas estátuas,
há vida; estas falam, aqueles palpitam de
génio; as obras científicas e filosóficas
que nos deixou, são grandiosas e belas como
os templos famosos por êle levantados aos
Deuses do paganismo».
Berço sagrado das letras, a Grécia criou
com a epopeia, a tragédia e a ode, superiormente
representadas por Homero, Eschilo e Píndaro,
as formas mais sublimes da poesia, assombrou
os homens com a eloqüência de Demóstenes e
abriu a história com Heródoto e Xenofonte;
berço das artes, deslumbrou o mundo com os
seus maravilhosos templos, estátuas e esculturas;
berço dourado da filosofia, deu à humanidade,
como presente opulento, em Platão o mais poeta
dos filósofos e o mais sábio em Aristóteles.
Platão e Aristóteles, os príncipes da filosofia
antiga, associaram nas suas cogitações, sob
formas diversas, o Cosmos, a Alma humana e
Deus, e nestas cogitações aplicaram a Matemática
a iluminar o estudo do pensamento e o estudo
da natureza.
Enciclopedista inigualável, Aristóteles assombrou
o mundo com a vastidão e altura dos seus conhecimentos
e engenho das suas indagações; espiritualista
subtil, Platão encantou-o com a sublimidade
dos seus pensamentos. Em especial, na Mecânica,
o primeiro inventou o princípio da alavanca
e o princípio do paralelogramo das fôrças,
e teve a visão do princípio das velocidades
virtuais; o segundo, seguindo na ciência dos
astros um caminho aberto por Pitágoras, esboçou
o mais antigo Sistema astronómico que nos
legaram os sábios gregos, Sistema que foi
depois aperfeiçoado por Eudoxo e Aristóteles
e na Idade-Média por Alpetrágio e que por
fim caíu, substituído por outros mais perfeitos.
Notemos ainda que as doutrinas filosóficas
de Platão e Aristóteles aparecem misturadas
a assuntos de Teologia cristã nos estudos
das escolas medievais, constituindo a Escolástica,
que tomou duas formas diversas, uma entre
os filósofos que se encostaram mais a Aristóteles,
outra entre os que seguiram principalmente
Platão.
Em conclusão, nas obras helénicas de filosofia,
de ciência, de literatura e de arte, há beleza
que deslumbra, engenho que encanta e grandeza
que assombra.
Por isso, Mileto, Samos, Tarento, Atenas,
Siracusa, Alexandria, ... são nomes da geografia
da Terra, focos da ciência antiga, que ainda
hoje, passados numerosos séculos, se pronunciam
com a emoção que produz o que é sagrado.
No que respeita às Matemáticas, cuja fundação
constitue a mais sólida glória do povo helénico,
legou-nos êle a Aritmética, a Álgebra, a Geometria,
a Mecânica e a Astronomia, e os trabalhos
que sôbre estas ciências nos deixou, são,
pela finura da arte e pelos primores de imaginação
a Ilíada de tais ciências; e são ainda, pela
essência, a base em que assentou o que depois
se escreveu sôbre elas.
Com as palavras célebres: Deus fêz o Mundo
por conta, pêso e medida, pôs Salomão
um problema imenso que os Gregos começaram
a estudar sistemàticamente, criando a ciência
dos números. Abriu-a Tales de Mileto; continuaram
na Pitágoras e Platão, que proclamou a sua
importância, escrevendo à porta da sua Escola:
aqui não entra quem não fôr geómetra;
desenvolveu-a Eudoxo de Cnido; fizeram-na
brilhar com esplendor Euclides, Archimedes,
Apolónio, Diofante e Papo; aplicaram-na com
engenho Hiparco, Herão e Ptolomeu.
É bom notar, antes de prosseguir, que a fundação
da ciência dos números tinha sido preparada
principalmente por sacerdotes do Egipto e
da Caldêa com factos e regras aritméticas
e com medidas geométricas e astronómicas,
que conhecemos por meio de documentos antigos
e de particularidades arquitectónicas dos
monumentos que construiram. Esta Matemática
empírica foi a alvorada da Matemática teórica
que depois nasceu.
Encanta o espírito recordar o que há de grande
e belo nos teoremas, hipóteses e teorias da
ciência dos Helenos e é isto mesmo necessário
a quem quiser apreciar como, continuando a
sua obra, se subiu das doutrinas dos gigantes
da ciência antiga às dos gigantes da ciência
moderna, das doutrinas de Euclides, Apolónio
e Diofante às de Viete, Descartes, Pascal
e Fermat, das doutrinas de Híparco e Ptolomeu
às de Copernico e Kepler, das doutrinas de
Aristóteles, Archimedes e Herão às de Galileu,
Huigens, Leibniz e Newton ligando assim o
período áureo da ciência do passado ao famoso
século XVII, o período áureo da ciência moderna.
Enumeremos pois aqui as obras dos matemáticos
e físicos helénicos que mais influência tiveram
sôbre a ciência dos povos que vieram depois,
e lhe serviram de fundamento.
Recordemos em primeiro lugar os Elementos
de Geometria de Euclides, reünião sistemática
das proposições sôbre esta ciência que no
seu tempo se conheciam e de outras que êle
próprio inventou; obra admirada pelos matemáticos
e filósofos de todos os países e de todos
os tempos pela pureza do estilo geométrico
e pela concisão luminosa da forma; modêlo
lógico para tôdas as ciências físicas pelo
rigor das demonstrações e pela maneira como
são postas as bases da Geometria em conceitos
fundamentais, apresentados sob o nome de definições,
axiomas e postulados.
Nesta mesma obra aparece, sob forma geométrica,
a origem da Álgebra, com a resolução das equações
do segundo grau. É bem sabido que os antigos
matemáticos gregos, tendo a noção de grandeza
incomensurável, mas não tendo a noção correspondente
de número irracional, constituiram a Matemática
sob forma geométrica, considerando em vez
de números, segmentos de recta, para assim
abrangerem nas suas teorias as grandezas comensuráveis,
e portanto os números racionais e as grandezas
incomensuráveis.
As últimas páginas do livro segundo dos Elementos
do grande lógico de Alexandria contêm, com
efeito, os teoremas necessários para a construção
das raizes das equações do segundo grau definidas
geomètricamente. Foram estes os primeiros
vagidos da Álgebra, que depois, tomando forma
algarítmica e crescendo mais e mais, levou
nas suas asas às alturas, em vôos soberbos,
a Geometria, a mãe que a criara.
São muito raros os livros que têm sido tão
espalhados em edições, traduções e comentários
como os Elementos de Geometria de Euclides.
Na antiga Grécia foi esta obra comentada por
Proclo, Herão, Simplício, etc., na Idade-Média
foi traduzida em latim e árabe e, após a descoberta
da imprensa, fizeram-se dela numerosas edições
em tôdas as línguas europeias. A primeira
destas edições foi a de Campano, em latim,
publicada em 1482, edição usada pelo nosso
Pedro Nunes, que a citou numerosas vezes nas
suas obras.
Em Portugal, publicou Angelo Brunelli em
1768 uma tradução na nossa língua dos seis
primeiros livros, do undecimo e do duodecimo.
Para esta tradução serviu-se da versão latina
de Frederico Comandino e fê-la seguir de algumas
notas com que Roberto Sinson tinha ilustrado
esta versão. 0 livro de que nos estamos ocupando,
foi outr’ora muito usado nas escolas portuguesas,
e por isso fizeram-se novas edições da tradução
de Brunelli em 1790, 1792, 1824, 1835, 1839,
1852, 1855 e 1862.
Constituiram também os Gregos uma Geometria
das figuras formadas na superfície da esfera
por círculos máximos, análoga à Geometria
das figuras formadas no plano por linhas rectas.
Foram os principais organizadores daquela
Geometria: Teodósio, que compôs sôbre ela
um tratado intitulado Esféricas, que
ficou clássico, e Menelau, que escreveu sôbre
o mesmo assunto e com o mesmo título um tratado
mais profundo e original do que o daquele
geómetra. Notam-se neste último livro uma
relação entre os seis segmentos de três círculos
máximos determinados por um quarto círculo
máximo que os corte, que ficou célebre sob
a designação de Teorema de Menelau,
e uma doutrina dos triângulos esféricos análoga
à de Euclides sôbre os triângulos planos.
Teodósio e Menelau aparecem citados nas obras
de Pedro Nunes, o primeiro numerosas vezes,
o segundo algumas vezes.
Continuando na enumeração das obras mais
importantes dos matemáticos gregos, mencionarei
agora o Tratado das secções do cone
de Apolónio de Perga, obra notável pela elegância
do seu estilo geométrico e pelo modo desenvolvido
como são nêle estudadas estas curvas, com
as suas propriedades mais importantes e mais
belas.
As mesmas curvas tinham sido já consideradas
por Menecmo, que abrira a sua teoria e as
aplicara à resolução do problema célebre das
duas médias proporcionais, generalização do
problema da duplicação do cubo(3).
(3)
Veja-se no tômo VII das minhas
Obras sôbre Matemática a história
dêstes problemas.
|
Assim nasceu em berço dourado uma doutrina
que, esquecida ou quási esquecida depois durante
longos tempos, renasceu no século XVII, sob
novas formas, com Descartes e Pascal, e conquistou
depois foros de esplêndida nobreza, quando
Kepler descobriu o seu papel no estudo do
Cosmos.
Recordemos também aqui Archimedes, o maior
geómetra da antiguidade, o criador da Estática
dos corpos sólidos, fundada no princípio da
alavanca, o criador da Estática dos fluídos,
fundada no famoso princípio que ficou a glorificar
o seu nome, o fundador da Geometria infinitesimal,
que inspirou mais tarde os inventores do método
dos indivisíveis e foi o primeiro lampejo
de um sol que depois, sob o nome de Cálculo
dos infinitamente pequenos, iluminou brilhantemente
o firmamento das ciências exactas.
Convém ainda lembrar aqui que, no domínio
da Geometria elementar, êste grande matemático
relacionou a área e o volume da esfera com
a área do seu círculo máximo e deu um método
para calcular esta última área com a aproximação
que se quiser.
Pitágoras e Platão abriram e Aristóteles
continuou o estudo do imenso livro intitulado:
Natureza, livro numèricamente escrito
e que a Matemática ensina a ler. No estudo
dêste livro, ninguém na antiguidade subiu
tão alto como Archimedes e, para depois encontrar
alguém que o iguale, é necessário seguir a
história da ciência até ao século XVII, em
que deslumbrou o mundo o génio sublime de
Newton.
Foram os principais continuadores da obre
geométrica e mecânica de Euclides e Archimedes,
primeiramente, Eratóstenes, que abriu a Geodesia,
determinando a grandeza da Terra por meio
da medida do arco do meridiano compreendido
entre Alexandria e Siena, e, mais tarde, Herão
de Alexandria, que, na sua Dioptrica e
nas suas Métricas, se ocupou com sucesso
da solução de vários problemas de Geometria
e de Mecânica prática por meio de instrumentos
engenhosos da sua invenção.
E foi o último grande geómetra das Escolas
helénicas Papo, alexandrino, que percorreu
nas suas Colecções Matemáticas quási
todos os assuntos de Geometria e de Mecânica
tratados pelos geómetras que o precederam,
e ainda outros novos, deixando em todos vestígios
do seu génio.
Cultivaram ainda os matemáticos gregos, para
os usos ordinários da vida, uma arte de cálculo
numérico, a que deram o nome de Logística,
aplicável às razões comensuráveis e por aproximações
às razões incomensuráveis.
A Logística era para êles uma arte terrena
e humilde para as contas domésticas e do comércio
e para uso do agrimensor e do arquitecto;
a (Geometria era a verdadeira ciência, era
um presente precioso feito pelos Deuses aos
homens para estudo do Cosmos. Olhavam com
desdem para aquela arte, com respeito religioso
para esta ciência.
Mais tarde a Logística começou a tomar forma
científica com Diofante, que na sua Aritmética
resolveu engenhosamente problemas difíceis
que o levaram a equações determinadas e indeterminadas,
do primeiro e do segundo grau, com coeficientes
racionais e procurou as soluções racionais
dêstes problemas, empregando demonstrações
independentes de considerações geométricas
e dos números especiais que considera.
Com a sua obra, abriu Diofante a Álgebra
algorítmica, mas esta Álgebra não ficou ainda
independente da Geometria, porque as doutrinas
do grande matemático eram só estabelecidas
para as grandezas comensuráveis e, para as
estender às grandezas incomensuráveis era
necessária ainda a demonstração pela Geometria
dos resultados obtidos.
A autonomia da Álgebra só se realizou completamente
quando nos tempos modernos, se fixou definitivamente
a equivalência entre operações numéricas e
geométricas e se teve uma noção clara de número
irracional.
A linguagem fixa, auxilia e dirige o pensamento,
verdadeira conversa da alma comsigo mesmo,
e auxilia-o tanto mais quanto mais simples
ela é. Ora, a Álgebra algorítmica tem uma
língua própria, de uma simplicidade expressiva
surpreendente, motivo da sua fôrça. A formação
desta língua foi iniciada por Diofante, que
representou por letras ou sinais a incógnita
dos problemas e suas potências, a subtracção
e a relação de igualdade de expressões numéricas.
Não empregava sinal algum para designar a
soma, mas separava as parcelas por um intervalo,
o que equivale a um sinal. Depois de Diofante,
a língua da Álgebra evolucionou, como acontece
às línguas ordinárias, até tomar a forma que
hoje admiramos. Foi um forte motivo para o
seu progresso a mudança do sistema de numeração.
Tais sistemas representam um papel primordial
na língua das Matemáticas e a substituïção
do inexpressivo sistema helénico pelo engenhoso
sistema de posição, atribuído aos Índios,
foi um grande progresso para aquela língua.
A ciência aberta por Diofante, passando à
Índia, que desde a expedição de Alexandre
Magno estava aberta à ciência helénica, ali
se desenvolveu, dando origem, pela fixação
de regras para as transformações das equações
e pelo emprêgo do sistema de numeração mencionado,
a uma Álgebra inteiramente numérica, menos
rigorosa do que a Álgebra geométrica dos Gregos,
mas mais simples e de aplicação mais fácil.
Na Grécia, a Álgebra caminhava pela mão de
sua mãe, a Geometria, que solícita e rígida,
a não deixava correr, com receio de que caísse.
Na Índia, a filha desprendeu-se da mãe e fugiu-lhe,
mas dirigia-a um como instinto vidente, e
por isso não caíu. Êste instinto vidente,
o génio, tinham-no também os matemáticos gregos,
mesmo em maior grau do que os matemáticos
índios, mas aqueles eram severos na lógica
e por isso não desprendiam a quantidade discreta
da quantidade contínua.
Representaram os principais papéis na cultura
da Álgebra entre os Índios: Aryabhatta, Bramagupta
e, por fim, Bhaskara, que a personificou poèticamente
em uma mulher formosa, Lilavati, a quem propõe
em verso problemas desta ciência, que ela
resolve por meio de regras enunciadas também
em verso Há nas obras destes dois últimos
matemáticos ideias finas. Assim, por exemplo,
no livro do último é dada, talvez pela primeira
vez, a interpretação das soluções negativas
das equações.
Acabamos de inventariar as principais riquezas
do espólio opulento dos helenos nos domínios
das Matemáticas puras, jóias de lógica e arte
que ficaram clássicas e continuarão a sê-lo
pelos séculos, como fundamentos essenciais
do grandioso edifício matemático levantado
pelo génio de arquitectos célebres de todos
os tempos.
Nos domínios das aplicações da Matemática
pura à Astronomia, legaram-nos os Gregos,
além de observações preciosas dos astros,
que foram depois aproveitadas, hipóteses engenhosas
no Sistema astronómico dos Orbes homocêntricos
de Platão e de Eudoxo de Cnido(4)
e no sistema dos Orbes excêntricos de Ptolomeu.
(4)
Ver Panegíricos e Conferências,
pág. 235.
|
A êste respeito, importa nos em especial
mencionar aqui a famosa Sintaxe matemática,
obra onde o grande astrónomo de Alexandria
reuniu os resultados das suas indagações sôbre
os movimentos dos astros e os que herdara
dos astrónomos que o precederam, em especial
do grande Hiparco, principal fundador da Astronomia
científica, que antes dêle fôra apenas esboçada.
Como dissemos em outro lugar, o Sistema geométrico
exposto na obra mencionada para representar
os movimentos planetários, satisfazia de tal
modo às observações e permetia prever com
tanta aproximação os fenómenos celestes, que,
traduzida em árabe sob o título de Almagesto
e mais tarde em latim, foi ela o código dos
astrónomos durante cêrca de quatorze séculos,
até que o génio de Kepler descobriu as suas
famosas leis dos movimentos planetários.
Convém notar que Apolónio de Perga tinha
inventado o Sistema dos Epiciclos, para representar
o movimento dos astros, e que Hiparco o tinha
aplicado. Ptolomeu primeiramente adoptou-o
e completou-o, mas mais tarde substituiu-o
pelo Sistema dos Orbes exposto no Almagesto,
para se conformar com as doutrinas da Física
de Aristóteles.
Encontram-se no Almagesto algumas passagens
importantes relativas às Trigonometrias plana
e esférica. Ptolomeu, seguindo ainda Hiparco,
o fundador das ditas Trigonometrias, tomou
nelas, para a determinação dos ângulos, a
corda em vez do seno e deu as propriedades
das cordas correspondentes ao teorema de adição
do seno e seus corolários e as regras para
construir tábuas das cordas correspondentes
a ângulos dados. A substituïção do seno à
corda e a introdução das tangentes dos ângulos
foi obra dos Árabes. Sôbre Trigonometria esférica,
deu o mesmo astrónomo duas das regras hoje
clássicas para a resolução dos triângulos
rectângulos, que obteve por meio do teorema
de Menelau, e, quando nas suas obras teve
de resolver triângulos esféricos oblíquos,
reduziu a resolução à de dois triângulos rectângulos.
Veremos adiante que o Almagesto foi
profundamente estudado em Espanha por Afonso
o Sábio e seus astrónomos e em Portugal por
Pedro Nunes, que o comentaram e em alguns
pontos o continuaram.
Ajuntaremos ainda, a respeito do mesmo livro,
que Delambre procurou distinguir, na sua Histoire
de l'Astronomie, o que nêle pertence a
Ptolomeu do que êste herdara de Hiparco.
Devemos também recordar aqui que o mesmo
Ptolomeu escreveu um precioso tratado de Geografia,
que grandes serviços prestou aos geógrafos
e navegadores medievais, apesar dos seus numerosos
defeitos na colocação dos lugares da Terra;
defeitos resultantes das dificuldades que
teve o autor em conseguir informações exactas
das distâncias daqueles lugares, informações
obtidas de viajantes, na maior parte das vezes
inexperientes, que as avaliavam por simples
estimativa, quási sempre sujeita a influência
do seu estado de alma, que os levava a engrandecê-las
ou a encurtá-las.
Nos seus mapas, empregou Ptolomeu os dois
sistemas de representações chamados triangular
e rectangular.
No sistema triangular, faz-se primeiramente
corresponder a uma zona da Terra a superfície
de um tronco de cone tangente à esfera terrestre
ao longo do paralelo que a divide ao meio
e cuja generatriz seja igual ao comprimento
do arco do meridiano compreendido entre os
paralelos que a limitam. Planificando depois
êste cone, temos a carta triangular, em que
os paralelos da Terra são representados por
círculos com o vértice no ponto correspondente
ao vértice do cone e os meridianos por linhas
rectas que passam por aquele ponto.
No sistema rectangular, faz-se, primeiramente,
corresponder a uma zona da Terra a superfície
de um cilindro recto que passe pelo paralelo
que a divide ao meio e cuja generatriz seja
igual ao comprimento do arco do meridiano
compreendido entre os paralelos que a limitam.
Planificando depois êste cilindro, temos a
carta rectangular, em que os paralelos e os
meridianos da Terra são representados por
dois sistemas de rectas paralelas, sendo as
rectas do primeiro sistema perpendiculares
às do segundo. Êste sistema de cartas geográficas
tinha já sido empregado por Marino de Tiro.
Ptolomeu notou os seus defeitos, mas empregou-o,
por não se conhecer então outro melhor.
Também devo notar aqui que, entre nós, Pedro
Nunes estudou profundamente o tratado de Geografia
de Ptolomeu, aproveitou-o muitas vezes, anotou
algumas passagens e traduziu do latim para
português a Primeira parte.
Escreveu ainda Ptolomeu, sob o título de
Sintaxe astrológica, um código de juízos
para uso dos astrólogos, tirados dos aspectos
do céu. Mencionamos aqui êste livro, a-pesar-de
carecer de bases científicas, porque a Astrologia
influiu consideràvelmente no progresso da
Astronomia, dando aos astrónomos os meios
pecuniários de que careciam para viver e trabalhar
em assuntos sérios de ciência. Dizia a êste
respeito Kepler: a Astronomia tem uma filha
muito louca, chamada Astrologia, mas a mãe
não engeita a filha, porque esta é rica e
sustenta a mãe, que é pobre.
Resumindo o que a respeito da história da
Astrologia dissemos nos nossos Panegíricos
e Conferências (pág. 58 e pág. 252), recordemos
que o astrólogo, que muitas vezes se tem confundido
com o astrónomo, atribuía aos astros não só
influências físicas sôbre a Terra, e portanto
sôbre o corpo humano, mas ainda sôbre o pensamento,
vontade e sorte dos homens, e mesmo sôbre
o futuro das nações.
As ideias e práticas astrológicas nasceram
na Caldeia e de lá passaram ao Egito e à Grécia,
onde foram fàcilmente aceites, por se conformarem
com as doutrinas da Física de Aristóteles.
Êste grande filósofo considerava os astros
como potências inteligentes e incorruptíveis,
que, actuando sobre a Terra, onde tudo é corruptível,
produziam os diversos fenómenos que nela se
observam.
Estas ideias foram seguidas pelos filósofos
peripatéticos e depois pelos filósofos escolásticos
até que, com o despontar da filosofia moderna,
caíram com as doutrinas físicas do grande
Stagirista. Mas destas ideias ficaram sempre
vestígios, que ainda hoje se notam.
Uma conseqüência da crença nas influências
dos astros sôbre os seres terrestres e na
possibilidade de as prever, estudando-as convenientemente,
era a necessidade para os médicos de conhecer
a prática da Astrologia, a fim de apreciarem
pelos astros o prognóstico das doenças e a
ocasião de aplicarem os remédios. Por isso
estudavam a Astronomia e, nas suas livrarias,
ao lado de obras consagradas às hervas e às
drogas, havia outras consagradas às práticas
astrológicas.
O número dos crentes nos vaticínios da Astrologia
era outrora tão grande e a fé nêles tão viva,
que mesmo os médicos que não acreditavam nestes
vaticínios, eram obrigados a estudá-la, a-fim-de
terem fregueses e tirarem proveito material
da sua profissão.
Dêste modo a Medicina concorreu para que
se estudasse a Astronomia, que poucos cultores
poderia ter naqueles tempos sem o seu uso
na clínica astrológica.
Nas lições consagradas à história das Matemáticas
em Portugal, encontraremos exemplos notáveis
de médicos a representar papel importante
com seus trabalhos astronómicos nas navegações
lusitanas.
Entrando agora no domínio da Física, recordemos,
pelo grande papel que representou na cultura
científica e filosófica medieval, o tratado
consagrado por Aristóteles àquela ciência,
mistura genial de conceitos finos e subtis,
que ficaram, e de paradoxos engenhosos, que
desapareceram, aurora de uma ciência que se
está a formar há mais de dois mil anos e que,
substituindo a observação e a experiência
a hipóteses metafísicas, subiu depois, com
o auxílio da Matemática, a alturas que deslumbram.
Aristóteles mostrou neste livro ser um observador
maravilhoso dos fenómenos naturais, mas as
observações de um só homem não poderiam bastar
para se constituirem teorias seguras sôbre
fenómenos tão complexos e misteriosos, e por
isso uma grande parte das doutrinas expostas
no seu livro caíram. É que, na Física, as
teorias vão sendo constantemente substituídas
por outras que melhor satisfazem às observações
e experiências, ligando geralmente as últimas
e as anteriores algumas das suas ideias.
O físico peripatético observava os fenómenos
naturais, procurava hipóteses para os explicar,
relacionava-os qualitativamente, etc.; o físico
moderno, além de observar, como aquele, os
fenómenos, submete-os a experiências convenientemente
preparadas para ver como se passam, mede-os,
relaciona-os numèricamente e procura constituir
teorias que os abranjam e os liguem. É na
experimentação e no emprêgo do cálculo matemático
que está a fôrça dos métodos modernos para
o estudo da natureza e é no modo de preparar
a experimentação e de constituir as teorias
matemáticas dos fenómenos estudados que se
revelam o engenho e a habilidade do físico.
As doutrinas físicas e astronómicas dos Helenos
caíram diante das novas observações da natureza,
feitas com perfeição sempre crescente, mas
as grandes obras em que foram expostas, das
quais acabamos de mencionar as duas principais,
o Almagesto de Ptolomeu e a Física
de Aristóteles, não ficaram esquecidas
na vala comum do Cemitério da história, mas
sim admiradas no Panteão das grandes produções
da imaginação humana.
A maior parte dos matemáticos até agora mencionados
pertenceram à famosa Escola de Alexandria
ou a ela estiveram ligados. Esta Escola brilhou
com esplendor durante o govêrno dos Lagides,
começou a declinar quando Alexandria passou
ao domínio dos Romanos e terminou quando esta
cidade caíu no poder dos exércitos árabes
do Califa Omar.
Concorreu muito para a decadência daquela
Escola a luta travada entre os Cristãos e
os Pagãos da cidade, depois que o Cristianismo
aí se firmou, luta que se tornou algumas vezes
belicosa. A Escola ficou prêsa à antiga religião
helénica e procurou aproximar-se nas doutrinas
filosóficas que ensinava, das doutrinas de
Cristo, adoptando a filosofia de Platão, que
era dos sistemas filosóficos helenos o que
mais se aproximava da filosofia dos padres
cristãos. A-pesar-disso, os adoradores de
Jesus odiaram-na, combateram-na e concorreram
para o seu enfraquecimento. Uma conseqüência
desta luta foi a morte trágica de Hipatia,
que ensinava filosofia na Escola, mulher formosa,
eloqüente e sábia, em que estava encarnado
o maior espírito de mulher de que fala a história
antiga(5).
(5)
Pode ver-se a biografia desta
mulher célebre nos nossos Panegíricos
e Conferências, pág. 197.
|
A Escola de Atenas, que brilhara explêndidamente
com Platão e Aristóteles e adquirira um certo
prestígio quando a de Alexandria decaía, estava
naqueles tempos já apagada. Apagara-a no século
VI o imperador Justiniano, proibindo nela
o ensino da filosofia pagã.
Extintas assim as Escolas de Alexandria e
Atenas, os dois mais luminosos faróis da filosofia
e da ciência antiga, ficou como último refúgio
da ciência helénica a Escola de Bisâncio;
mas em breve surgiram entre os Árabes novos
centros de estudo, onde as obras científicas
dos Gregos reapareceram com brilho, como vamos
ver.
Foram principais herdeiros das obras de ciência
e filosofia dos Helenos a mencionada Escola
de Bisâncio, que as conservou como relíquias
preciosas, sem fazer progredir sensivelmente
os assuntos considerados nelas, e os Árabes,
raça nova e forte, que então começava a dominar
e a quem a cultura científica era vivamente
recomendada pelos livros do seu Profeta, os
quais as estudaram, comentaram e continuaram.
O povo romano, conquistador do povo grego,
foi grande na literatura, inspirada na literatura
helénica foi grande na arte da guerra, foi
grande na arte política, mas foi mediocre
nas ciências exactas.
Na história da sua cultura científica, aparecem
nomes de naturalistas ilustrados, mas não
aparece nome algum de sábio que tenha feito
avançar as Matemáticas de um modo notável.
Não viam nestas ciências o que elas têm de
belo sob o ponto de vista filosófico, viam
sòmente o que têm de pràticamente útil as
suas medidas e cálculos. Os seus cultores
das Matemáticas, com Boécio à frente, limitaram-se
a ensinar as doutrinas mais simples da Matemática
grega, principalmente as que eram aplicáveis
à vida individual e colectiva ordinária.
Com a queda do Império romano ocidental pelas
invasões dos Bárbaros, tôdas as ciências desapareceram
completamente da parte invadida da Europa,
mas continuaram a luzir, ainda que muito frouxamente,
no Império oriental.
Mais tarde, quando os Romanos e os Bárbaros,
os vencidos e os vencedores, se fundiram,
estabelecendo novos estados e constituindo
uma nova civilização de amor, que, por influência
do Cristianismo, substituíu a sanguinária
civilização pagã da velha Roma, começaram
elas a despontar de novo nesta parte da Europa,
por acção e influência da igreja católica.
Foram primeiramente cultivadas pelos monges
beneditinos, que juntaram a obrigação do estudo
aos outros deveres impostos pela regra da
sua Ordem. Depois, pela influência directa
dos Papas, criaram-se escolas junto de algumas
catedrais e fundaram-se universidades, onde
se estudava, além da Teologia, tudo o que
é necessário para fazer sacerdotes regularmente
cultos e das quais saíram alguns homens notáveis
pela inteligência e sabedoria.
Nas escolas em que se ensinavam as ciências,
expunham-se principalmente as doutrinas físicas
de Aristóteles e o ensino delas era misturado
ao ensino das doutrinas dos outros ramos da
filosofia. Às mais célebres destas escolas
concorriam numerosos estudantes de diversos
países para ouvir os filósofos afamados. O
ensino era oral. Ordinàriamente o mestre lia
ou explicava e o aluno ouvia e tomava apontamentos.
Só no fim da Idade Média começou, com a invenção
da imprensa, o ensino pelo livro a espalhar
as doutrinas dos grandes mestres, sem ser
necessário freqüentar escolas.
A
entrada das Matemáticas na Península hispânica
As ciências entraram na Península hispânica
por duas vias: primeiro, sob forma rudimentar,
pelo norte, trazidas do Oriente principalmente
por sacerdotes cristãos; depois pelo sul,
sob forma levantada, trazidas pelos Árabes
que invadiram as Espanhas.
Entre os homens ilustres que as receberam
pela primeira via, distinguiu-se no século
VI Santo Isidoro, Bispo de Sevilha, varão
notável pela imensa erudição manifestada na
sua enciclopédia sôbre a Origem das coisas,
vasta reünião de variadíssimos assuntos, entre
os quais estão compreendidos muitos que se
referem aos rudimentos das ciências matemáticas.
Esta obra, espalhada pela Europa, foi um
guia dos estudiosos até à introdução nas Espanhas
da ciência mais alta bebida pelos Árabes nas
fontes helénicas.
Recordei aqui esta enciclopédia, porque é
muito própria para se ver quanto a ciência
latina era inferior à ciência introduzida
mais tarde pelos Árabes nas cidades da Betica,
depois senhores do império gótico das Espanhas.
A ciência vinda das bandas de Bisâncio era
sêca, terrena, utilitária; a ciência trazida
pelos Árabes às Espanhas era filosófica e
desinteressada, era música da razão, era glória
do espírito humano.
Pelo que respeita às Matemáticas, foram as
suas doutrinas, depois de entrarem na nossa
Península, cultivadas com sucesso primeiramente
por sábios islamitas em Córdova, Sevilha,
Granada, etc. e mais tarde por sábios cristãos
e judeus em Toledo e Salamanca.
Os seus principais cultores na Espanha muçulmana
foram enumerados, com indicação dos assuntos
de que se ocuparam, pelo sábio matemático
espanhol sr. Sanches Peres em uma excelente
memória premiada e publicada pela Academia
das Ciências de Madrid.
Seja-me permitido recordar aqui os seguintes:
- 1.°—Alpetrágio, que deu para representar
os movimentos do Sol, da Lua e dos Planetas
então conhecidos um Sistema de Orbes homocêntricos
com a Terra diferente do que imaginara Eudoxo
de Cnido, Sistema que denota muito saber
astronómico e notável engenho geométrico
e que teve grande sucesso entre os Escolásticos
medievais. Alpetrágio é memorado com louvores
em todos os escritos que apareceram desde
o seu tempo sôbre os sistemas cosmológicos
dos antigos sábios helénicos, e o nosso
Pedro Nunes menciona e examina resultados
de observações feitas pelo ilustre astrónomo
árabe em uma notícia histórica e crítica
sôbre o tríplo movimento da oitava esfera
do Sistema de Ptolomeu, publicada no tratado
De arte atque ratione navigandi.
-
- 2.°—Outro matemático notável da Espanha
muçulmana foi Geber (Gabir ihn Aflak), natural
de Sevilha. Comentou o Almagesto dando
demonstrações novas de alguns teoremas desta
obra e continuou a doutrina de Ptolomeu
sôbre a resolução dos triângulos esféricos
rectângulos, dando a relação entre os dois
ângulos oblíquos e um lado oposto a um dêles,
caso que aquele geómetra não considerara
. Dá um carácter notável à obra do célebre
Matemático de Sevilha o papel que nela representa
a Álgebra algorítmica, posta ao serviço
de assuntos geométricos.
-
- 3.°—Recordemos também Azarquiel ou Al-Zarkali,
de 'I'oledo, que no século XI, procurou
a curva descrita por Mercúrio à roda do
Sol, pondo assim um problema que foi mais
tarde resolvido por Kepler sôbre o planeta
Marte. O resultado gráfico obtido pelo astrónomo
árabe tem a forma de oval alongada. Para
obter a definição geométrica desta oval,
seria necessário comparar a linha gráfica
obtida por Azarquiel com curvas hipotéticas,
convenientemente escolhidas, que se aproximassem
dela na forma. Ora, como bem disse Rico
y Sinobas no seu comentário aos Libros
del saber de Afonso X, Azarquiel teria
provàvelmente experimentado a elipse, se
conhecesse a obra de Apolónio sôbre as secções
do cone, então ainda não divulgada na Europa.
-
- Mas, o que deu mais celebridade a êste
grande astrónomo, foi a sua doutrina sôbre
o movimento de trepidação dos equinócios,
que substitue a antiga doutrina de Hiparco
e Ptolomeu, que atribuiam aos equinócios
um deslocamento em sentido constante, e
a doutrina do astrónomo árabe Tabit, que
lhes atribuía um movimento de avanço e retrocesso,
por outra doutrina, muito engenhosa, em
que há continuïdade no sentido do movimento
daqueles pontos, e que dá ao seu autor o
direito a figurar como um precursor de Bradley
na teoria da nutação do eixo da Terra.
-
-
- 4.°—Recordemos os aritméticos Bem-Albani,
que ligou o cálculo com o abaco ao cálculo
com algarismos, e Alkalradi, que escreveu
no século XV uma obra notável sôbre Aritmética
e Álgebra, que foi traduzida em francês
por Woepcke e publicada no tômo XII das
Atti dell'Academia dei Nuovi Lincei
(Roma, 1839).
-
-
- 5.°—Mencionarei emfim Avempace e Averroes,
os maiores filósofos árabes medievais, que
combateram vigorosamente a Astronomia ptolomaica,
por não se harmonizar com os postulados
da Física peripatética.
Recordei aqui estes nomes de sábios islamitas,
porque a êles foram beber doutrinas os nossos
matemáticos, os nossos astrónomos e os nossos
filósofos.
Dos matemáticos árabes pertencentes ao império,
oriental, mencionarei aqui primeiramente Albaténio
que viveu na passagem do século IX para o
século X e trabalhou em Bagdad, e cujas observações,
tábuas e doutrinas astronómicas e trigonométricas
influíram na ciência hispânica e depois na
portuguesa. Foi o principal continuador de
Ptolomeu em Astronomia e em Trigonometria
esférica, deu regras para resolver os triângulos
gerais, no caso de serem dados dois lados
e o ângulo compreendido entre êles e se pedir
o terceiro lado, e no caso de serem dados
os três lados e se pedirem os três ângulos,
regras que coïncidem com as que correspondem
ao chamado teorema fundamental da trigonometria
esférica. O Observatório Astronómico de Milão
publicou, há poucos anos, uma bela edição
em árabe e latim das obras dêste astrónomo,
sob o título de Opus astronomicum.
Mencionarei também Alhazen, que viveu na
passagem do século X para o século Xl, o qual
se tornou notável por trabalhos de Óptica,
um dos quais, relativo aos crepúsculos, de
que adiante falaremos, foi o ponto de partida
dos estudos do nosso Pedro Nunes sôbre estes
fenómenos.
E mencionarei finalmente Nassir-Eddin, um
dos matemáticos a quem se atribui o teorema
dos quatro senos da Trigonometria esférica
(o outro é Abul-Wafa) e a quem se deve o emprêgo
do triângulo polar na resolução dos triângulos
esféricos; e Alkarismi, que escreveu um tratado
de Álgebra em que são consideradas as equações
do primeiro e do segundo grau e numerosos
problemas, tratado que teve muita influência
na divulgação das doutrinas algébricas dos
Gregos e Índios.
As Matemáticas começaram a luzir na Espanha
muçulmana depois da divisão do enorme império
árabe fundado por Mahomet e seus sucessores
em dois: um, o oriental, com a capital em
Bagdad, outro, o ocidental, com a capital
em Córdova. Então a Escola de ciências desta
última cidade tornou-se rival da Escola célebre
que Abul-Abbas tinha fundado em Bagdad quando,
tendo vencido e expulso a dinastia dos Omíadas
do primitivo império árabe, transferira a
sua capital de Damasco para aquela cidade.
Mais tarde, a Escola de Córdova atingiu um
alto grau de esplendor, quando Abdurrahamam
III, cercando-se de sábios muçulmanos vindos
de diversas terras, fêz da capital do seu
império um centro famoso de cultura intelectual.
Pelo que respeita às Matemáticas, nesta cidade
foi não só estudada com sucesso a Astronomia,
mas foi também esboçada a aplicação da Álgebra
à Geometria, que mais tarde, seguindo de progresso
em progresso, havia de fazer da ciência da
extensão um ramo formoso da Análise matemática
.
Este facto deve ser notado. O que caracteriza
a Matemática helénica é a sua pureza geométrica;
o que caracteriza a Matemática indiana é a
audácia na Álgebra; a Matemática árabe é caracterizada
pela ligação das duas qualidades.
É crível que os matemáticos gregos já tivessem
feito aplicações daquela natureza nas suas
indagações, sem terem a franqueza de o dizer,
apresentando depois os resultados obtidos
com vestes novas, para os apresentar sob forma
geométrica indiscutível. Este modo de ver
é expressivamente apresentado por Pedro Nunes
na passagem seguinte da sua Álgebra:
- «Oh ! que bom fôra se os autores que escreveram
nas ciências matemáticas nos deixassem escritas
as suas invenções pelos mesmos discursos
que fizeram até que as encontraram. E não
como Aristóteles diz dos artífices que mostram
na máquina que fizeram o que está de fora
e escondem o artifício, para parecerem admiráveis.
É a invenção muito diferente da tradição
em qualquer arte, nem penseis que aquelas
tantas proposições de Euclides e Arquimedes
foram tôdas achadas pela mesma via pela
qual as trouxeram até nós».
Estas palavras aplicam-se em especial às
questões em que intervêm quantidades indefinidamente
decrescentes, nas quais os geómetras helenos
recorriam ao chamado método de exaustão, para
descobrir os teoremas, e depois, para os firmar,
empregavam longas demonstrações por absurdo,
que encobriam os meios de os achar. Arquimedes
é assombroso em questões difíceis desta natureza,
e não se podem explicar os triunfos que obteve
na resolução de questões relativas à medida
de volumes de sólidos, de áreas de superfícies
planas e curvas e de determinações de centros
de gravidade, sem admitir que empregava métodos
aritméticos, para inventar os seus teoremas,
e que depois os apresentava vestidos de roupagens
geométricas, para satisfazer às exigências
de rigor dos matemáticos do seu tempo. E foi
assim que procederam, como vimos, os matemáticos
índios.
O pensamento mencionado de Pedro Nunes tem
sido repetido por autores modernos, e está
confirmado por uma carta dirigida pelo grande
geómetra de Siracusa a Eratóstenes encontrada
em 1907 por Heiberg, em Constantinopla.
Agora, antes de prosseguir, convém notar
que a ciência dos árabes não entrou na Europa
só pela Espanha; entrou também pela Itália,
onde no século XIII a Álgebra heleno-indiana
foi introduzida por Leonardo Fibonacci, de
Pisa, que a estudara entre os Árabes em viagens
pelo Mediterrâneo. A obra—Liber Abaci,—do
célebre matemático, ficou esquecida por muito
tempo, mas as suas doutrinas foram mais tarde,
no século XV, ampliadas e divulgadas por Frei
Lucas de Burgo, e tiveram um progresso notável
com Tartáglia, que resolveu no século XVI
a equação geral do terceiro grau.
A notícia dos trabalhos dêstes matemáticos
insignes foi espalhada na nossa Península,
no mesmo século XVI, principalmente pelo aritmético
português Gaspar Nícolau, que se ocupou de
alguns problemas estudados por Frei Lucas,
depois por Marco Aurel, alemão domiciliado
em Espanha, que ensinou doutrinas do mesmo
Frei Lucas, e enfim por Pedro Nunes, que expôs,
de um modo amplo as teorias algébricas do
célebre matemático italiano e fêz conhecer
as de Tartáglia sôbre a equação do terceiro
grau, como veremos.
É interessante notar que esta influência
da ciência italiana sôbre a ciência lusa se
estendeu nos mesmos tempos às literaturas
dos dois países.
As escolas andaluzas de ciência atingiram
o auge do seu esplendor, quando o império
árabe ocidental subiu ao auge do seu poderio
e grandeza. Depois declinaram, os clarões
que imitiam afrouxaram, tornaram-se luz crepúscular,
por fim desapareceram. Quando os cristãos,
depois de lutas violentas e tenazes, arrastaram
os agarenos até às suas terras de África,
não levaram estes comsigo a ciência que tinham
introduzido nas Espanhas. Os seus faróis de
alta cultura tinham-se apagado e os seus sábios
tinham desaparecido. Deixaram porém, como
opulentos despojos, aos vencedores a herança
científica que tinham recebido dos Helenos,
com os aumentos preciosos que êles próprios
lhe tinham feito.
De facto, todas estas riquezas se vinham
reünindo no interposto de Toledo desde o ano
em que a suberba capital da velha Gotia, voltando
a ser capital de um estado cristão, se tornara,
primeiramente, um centro prestigioso de divulgação
da ciência heleno-árabe e, depois, o mais
alto centro medieval de investigação astronómica.
Em tudo isto representaram um grande papel
os Judeus, raça activa e inteligente, que
entrara nas Espanhas após a invasão dos Mouros,
e que, ávida de possuir uma pátria, aqui se
fixou e aqui estabeleceu os seus lares.
Quando ainda estava sob o domínio muçulmano,
já Toledo era um centro notável de cultura.
Nesta cidade viveu, no século XI, e teve o
seu observatório Azarquiel, o célebre astrónomo
árabe há pouco mencionado, e crê-se que nela
compôs as famosas tábuas astronómicas conhecidas
pela designação de Tábuas de Toledo.
Na mesma cidade, depois de passar ao domínio
de Castela, tiveram as ciências e a filosofia
um protector no Arcebispo D. Raimundo, que
mandou traduzir por João de Luna e Gerardo
de Cremona algumas obras mais importantes
dos Gregos e dos Árabes, traduções que espalhadas
por cópias e mais tarde pela imprensa, concorreram
notàvelmente para o progresso das doutrinas
a que são consagradas.
E, ainda na mesma cidade, foi depois a Astronomia
cultivada com brilho por Afonso X, o Sábio,
e pelos seus colaboradores na organização
e calculo das chamadas Tábuas Afonsinas
e na redacção dos Libros del saber de Astronomia
com que aquele monarca enriqueceu esta ciência.
Para realizar o seu grande plano de reorganização
completa das tábuas e doutrinas astronómicas,
chamou Afonso X à sua côrte os astrónomos
mais afamados do seu tempo, cristãos, judeus
e maometanos, fêz traduzir alguns tratados
árabes importantes que convinha estudar, e
mandou construir por artistas escolhidos os
instrumentos até êsses tempos usados para
a observação do céu, fazendo assim do seu
Paço uma verdadeira Academia de ciências astronómicas
e uma Oficina-escola ao serviço das mesmas
ciências.
É belo imaginar o filho de Fernando-o-Santo,
com a sua tolerância de filósofo, cercado
de seguidores de três religiões diferentes,
a estudar e a admirar com êles nas maravilhas
da obra da criação a grandeza suprema de um
Deus, que no seu culto vêm sob três aspectos
diversos.
São todos homens inteligentes e cultos, e,
no meio dêles, o monarca castelhano, com a
cabeça coroada do duplo diadema de filósofo
e de rei, é o génio que os dirige e a vontade
que os manda.
As Tábuas Afonsinas e os Libros
del saber de Astronomia constituem o monumento
mais importante que sôbre esta ciência nos
legou a Idade-Média, e foram uma das bases
principais dos progressos que ela teve nos
séculos seguintes. Nestas obras são melhoradas
as Tábuas para o conhecimento dos lugares
dos astros na esfera celeste, são minuciosamente
descritos e estudados os instrumentos astronómicos,
são dados preceitos aos artistas para construir
e aperfeiçoar estes instrumentos e aos astrónomos
para bem os empregar e são considerados numerosos
problemas postos nos tempos anteriores desde
a mais alta antiguidade e apresentados outros
novos.
Deu uma importância especial às Tábuas mencionadas
a circunstância de na sua edição latina ser
considerado o movimento da linha dos equinócios
como resultante do movimento de precessão
segundo Ptolomeu e do movimento de trepidação
segundo Azarquiel. Assim, a oitava Esfera
ptolomaica, a Esfera das Estrêlas, aparece
na obra dos astrónomos de Toledo dotada de
três movimentos: o movimento diurno à roda
do eixo do Mundo, o movimento à roda do eixo
da Eclíptica, a produzir a trepidação, e o
movimento muito lento à roda de uma outra
recta que passa também pelo centro da Terra,
e à roda do qual gira o eixo da Eclíptica,
a produzir a precessão dos equinócios. Foi
esta a forma mais perfeita que a doutrina
do movimento da linha dos equinócios tomou
antes de Bradley e isto explica o sucesso
das Tábuas do rei Afonso
Para dar a esta doutrina uma forma compatível
com a Física peripatética, introduziram mais
tarde os Escolásticos duas novas esferas sem
astros, a produzir os dois movimentos dos
equinócios. Os matemáticos não precisavam
de tais esferas e, geralmente, não falam delas:
falam, sim, do movimento triplo da Oitava
Esfera.
Não nos deteremos mais tempo a falar dos
trabalhos da Escola astronómica de Toledo.
Não é necessário. Foram êles desenvolvidamente
analisados por Rico y Sinobas no seu notável
comentário a estes trabalhos e o distinto
historiador espanhol D. Francisco Vera consagrou-lhe
um longo e interessante capítulo do segundo
volume .da História da Matemática em Espanha,
que está a publicar.
Encontra-se em particular neste volume da
obra do sr. Vera uma lista de referências
instrutivas de astrónomos ilustres às Tábuas
afonsinas. A esta lista podemos juntar as
de Pedro Nunes, que no seu tratado De arte
atque rationale navigandi e nas suas Annotationes
à teoria dos Planetas de Purbachio, se
ocupou de algumas passagens das referidas
Tábuas, como em outro lugar veremos.
As Tábuas afonsinas foram muito empregadas
pelos astrólogos para os seus vaticínios,
mas não foi para êles que o rei Afonso as
mandou compor. O espírito dêste monarca, que
chamava para si os sábios e repelia os astrólogos
e escolásticos do seu tempo, via alto de mais
para se ocupar com superstições e quimeras
astrológicas ou com hipóteses arbitrárias
e aspirava ao conhecimento dos segredos do
Universo.
Diz uma tradição ou lenda que Afonso X se
queixava de Deus por ter complicado muito
a Máquina do Mundo. Isto significa que ao
seu espírito de filósofo repugnava aceitar,
como correspondendo a obra divina, o complexo
Sistema matemático inventado por Ptolomeu
para explicar os movimentos dos astros, Sistema
que êle e os seus colaboradores foram obrigados
a complicar mais, associando no cálculo das
Tábuas astronómicas o movimento de precessão
segundo Ptolomeu ao movimento de trepidação
segundo Azarquiel. Mais tarde Kepler deu-lhe
razão, banindo da ciência o Sistema ptolomaico,
que passou para a história, onde continua
a brilhar como recordação de um grande passado.
Com a composição das suas Tábuas e dos Libros
del saber de Astronomia prestou Afonso
X um grande serviço à nossa Península, que
em Portugal se sentiu mais tarde, como veremos,
e outro lhe fêz com a fundação de uma cadeira
de Astronomia na Universidade de Salamanca,
que era naqueles tempos o primeiro centro
de estudos da Espanha cristã.
A Escola astronómica de Toledo deu grande
honra à Espanha e foi precursora da Escola
brilhante que se formou mais tarde na Alemanha,
a Escola dos Purbachios, dos Regiomontanos,
dos Ticho-Brahe e dos Kepler.
As Tábuas afonsinas aparecem sempre nos trabalhos
dos astrónomos posteriores à sua composição,
até à reforma astronómica de Kepler, como
um complemento da doutrina do Almagesto
de Ptolomeu sôbre o movimento dos astros.
É certo que houve quem pretendesse apoucar
a obra de Afonso X, dizendo que êle não conhecia
os trabalhos de Albaténio, indispensáveis
a quem quisesse continuar a obra dos astrónomos
gregos e Árabes, por não estarem ainda traduzidas
em latim. Esta afirmação é falsa. Segundo
diz o nosso Pedro Nunes no capítulo IV do
tratado De arte atque rationale navigandi,
existia no seu tempo na Biblioteca de Alcalá
de Henares um manuscrito onde se encontravam,
ao lado das Tábuas afonsinas, as Tábuas de
Ptolomeu e de Albaténio, para que se pudessem
comparar.
Convém agora que, antes de terminar êste
assunto, o complete, consagrando algumas palavras
ao papel, sob o ponto de vista geral, dos
Judeus da Espanha no progresso da Astronomia.
Na passagem dos Helenos para os Árabes perdera
a cultura científica no seu espírito filosófico
e mais perdeu na passagem dos Árabes para
os Judeus. Estes cultivaram a princípio a
Astronomia quási sòmente com o fim religioso,
para fixarem as datas das festas, e com o
fim utilitário, para a aplicarem à Medicina.
Por isso, entregues das riquezas que legou
a Escola de Toledo, os astrónomos judeus da
Península Hispânica anteriores ao século XVI
pouco mais fizeram do que aperfeiçoar as tábuas
e as regras para a determinação das posições
dos astros e para o computo do tempo, sem
procurarem penetrar nos mistérios da mecânica
dos céus. Mas, com a sua vida errante, espalharam
aquelas riquezas e as que tinham recebido
dos Árabes por tôda a nossa Península, levaram-nas,
além dos Pirenéus, até à Provença, e, quando
mais tarde foram expulsos da Espanha por Isabel-a-Católica
e de Portugal por D. Manuel I, levaram-nas
como presente aos países onde foram procurar
um asilo, uma nova pátria de empréstimo.
Programa
dêste livro
Ao terminar esta Introdução, demos,
como programa do livro, um resumo das doutrinas
que vão ser expostas nas páginas seguintes.
A história das Matemáticas em Portugal pode
ser dividida em cinco períodos(6).
O primeiro o período de formação, principia
no reinado de D.João I e vai até à morte de
D. João II. Começa então o segundo período,
o período de brilho, que vai até aos fins
do século XVI. A estes períodos seguiu-se
outro, o de pobreza, que vai até meados do
século XVIII. Então, com a reorganização dos
estudos na Universidade de Coimbra pelo Marquês
de Pombal e com a fundação da Academia das
Ciências de Lisboa, começou o quarto período,
que estenderemos até meados do século XIX,
em que começou o período actual.
(6)
Ver Panegíricos e Conferências,
pág. 158..
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No primeiro período, que coïncide com os
tempos áureos do povo luso, tôda a nossa cultura
matemática girou à roda de uma idea fundamental:
preparar os elementos científicos necessários
para as grandes navegações no mar alto. Ocuparam-se
desta preparação sábios de Portugal e da Espanha,
entre os quais se eleva gloriosa a grande
figura de Pedro Nunes, o príncipe dos matemáticos
da Península Ibérica. Foram estes sábios que,
aplicando o Astronomia à Náutica, deram aos
nossos pilotos as luses necessárias para conduzir
as naus por mares misteriosos, entre perigos
e dificuldades sem conta, até às praias desconhecidas
do Brasil e até às águas longínquas do Pacífico,
fazendo de Lisboa a raínha gloriosa dos mares.
O terceiro período da história das Matemáticas
em Portugal coïncide com o período de maior
brilho da ciência europeia. Foi neste período
que Viete fundou a Álgebra moderna, que Kepler
e Galileu fizeram as suas famosas descobertas
físico--matemáticas, que Descartes e Fermat
inventaram a Geometria analítica, que Newton
e Leibniz inventaram o cálculo dos infinitamente
pequenos; e foi ainda no mesmo período que
Newton, com a mais sublime das descobertas
que até hoje pôde fazer o espírito humano,
transformou a velha Astronomia em um ramo
maravilhoso da Mecânica racional.
Mas de tão intensos clarões, nem um ténue
lampejo parece ter atravessado nesses tempos
as fronteiras de Portugal.
No quarto período entrou no nosso país a
ciência dos sábios estrangeiros do século
XVII e dos seus continuadores do século XVIII.
Na lista dos matemáticos ilustres que tivemos
neste período, brilham principalmente Monteiro
da Rocha e Anastácio da Cunha, que o abriram,
e depois dêles alguns dos seus discípulos
e continuadores.
O quinto período, o período moderno, começou
nos tempos que se seguiram às campanhas da
liberdade, nos meados do século XIX, e vai
continuando no nosso tempo. Neste período
entraram em Portugal as doutrinas de Poncelet,
Chasles, Poinsot, Gauss, Cauchy, Abel, Jacobi
e de outros gigantes da ciência, que, não
podendo resolver com os métodos herdados dos
grandes geómetras dos séculos anteriores os
novos problemas que se lhes apresentaram,
descobriram novos métodos para penetrar nos
mistérios dos números e com êles abriram nas
Matemáticas novos caminhos, estenderam teorias
antigas e construíram teorias novas. Abriu
êste período Daniel da Silva, que será o último
geómetra considerado na nossa rápida viagem
pela história das Matemáticas em Portugal.
Fonte
e complementação do artigo:
http://www.mat.uc.pt/~jaimecs/livrogt/indice.html