Para defender
a política
Por
Renato Janine Ribeiro
O
caso Waldomiro Diniz
é, ao que consta,
um ato de corrupção
que requer julgamento.
Se for provada sua
culpa, ele deve
ser punido pela
lei. Mas, estando
eu fora do Brasil
e não acompanhando
os detalhes, e sim
o quadro mais amplo,
o que mais me inquieta
não é isso, mas
o esvaziamento da
dimensão política
que se produziu.
O
impeachment de Collor,
em 1992, defendido
por todo o arco
democrático brasileiro
e por este jornal,
foi decisivo em
nossa história.
Um caso de corrupção
permitiu afastar
um presidente pela
via constitucional,
sem traumas. Também
foi o sinal de que
a sociedade brasileira
não tolera mais
a corrupção. Ela
já foi aceita socialmente.
Havia graça em furar
a fila. Houve simpatia
por Sinhozinho Malta,
ícone da opressão
e do desdém pela
lei, na novela "Roque
Santeiro" (1985).
Em 19 anos de democracia,
não resgatamos a
dívida social, mas
tornamos a corrupção
detestável. Cada
vez menos gente
defende formas explícitas
de desacato à cidadania.
Mas
uma coisa é defender
ética na política,
e outra rebaixar
a ética, confundindo
o ideal de não-corrupção,
requisito necessário
porém não suficiente
da vida em sociedade,
com o cerne da discussão
política. A política
é a discussão dos
caminhos que desejamos
para a sociedade.
Esse debate social
dos nossos sonhos
é a coisa mais importante
numa coletividade.
Alguns
falam em caráter
amoral da política.
Prefiro distinguir
moral e política
de outro modo. Na
política democrática,
as divergências
são legítimas. Já
na ética, aceitamos
um arco menor de
divergências. Temos
dificuldade em considerar
decente quem age
contra nossos princípios
éticos. Mas, na
escolha das metas
para a sociedade,
na definição da
política, temos
de supor que o adversário
seja honesto.
Por
isso, é correto
os promotores serem
implacáveis contra
a corrupção. É obrigação
ética. Mas, quando
uma eleição é vista
como a luta entre
o bem e o mal, como
há anos é o caso
em São Paulo (Estado
e capital), perdemos
todos. Não ocorre
debate político.
Muitos votam num
candidato não por
suas propostas,
mas por desconfiarem
moralmente de seu
rival. A discussão
decai.
Imaginemos
uma peça sobre o
debate político
e a corrupção no
Brasil. O caso Collor
foi o primeiro ato.
Ato segundo: no
começo do segundo
mandato de Fernando
Henrique Cardoso,
as "fitas do BNDES"
apontam manipulação
de concorrências
para a compra de
estatais. Essa ação
foi errada. Mas,
com a celeuma em
torno, ejetou-se
do poder toda uma
linha que disputava
a hegemonia no governo
federal, propondo
maior desenvolvimento
e menor obsessão
com a moeda. O monetarismo
ganhou a batalha
política sem jamais
ela vir a público,
isto é, tornar-se
política. Os rumos
do Brasil entre
1998 e 2002 foram
decididos a partir
de um escândalo,
não de uma escolha
tomada na arena
pública, após debates
na imprensa e no
Congresso. O resultado
foi mau para o país.
Digo isso sem tomar
partido. Não sei
se os desenvolvimentistas
do PSDB eram melhores
que os monetaristas.
O que importa é
que não houve uma
discussão nacional
das metas a adotar.
Agora
vivemos o terceiro
ato da peça. Mudanças
importantes na política
podem decorrer das
acusações da oposição
a um ministro contra
o qual não há, que
eu saiba, sombra
de prova. E com
isso uma questão
criminal, policial,
moral, sim, mas
confinada, cresce
a ponto de calar
o debate sobre os
rumos do país. Isso
está errado.
A
política não é a
negação da moral.
Crimes devem ser
punidos. Mas precisamos
construir, no Brasil,
uma esfera propriamente
pública. Isso exige
não deixar a política
refém de uma moral
elementar, porque
óbvia. A corrupção
deve ser condenada.
Mas não basta não
ser ladrão para
governar bem. E
é justamente porque,
numa democracia,
os partidos são
legítimos que precisamos
de mais do que a
honestidade: necessitamos
de escolhas.
Nada
disso é uma defesa
deste governo ou
do anterior. É uma
defesa da política,
para retomar o título
de um livro de Marco
Aurélio Nogueira.
Ela está desprestigiada.
Muitos políticos
honestos têm responsabilidade
nisso, ao não verem
a dimensão de nosso
repúdio à corrupção.
Mas quem perde,
quando a dimensão
política é exaurida,
não são os políticos,
é a sociedade.
Voltemos
a Collor. A corrupção
permitiu afastá-lo,
mas a verdadeira
razão era que a
sociedade se cansara
de sua política
aventureira. O luxo
de sua casa deu
uma linguagem que
autorizava o processo.
No parlamentarismo,
bastaria uma votação
na Câmara para destituir
o chefe de governo.
Num regime presidencial
foi preciso mais,
isto é, a desonestidade.
Mas isso é imaturo.
Precisamos eleger
e destituir pelas
razões verdadeiras.
Se não queremos
mais um governante,
digamos isso. E
construamos regras
que levem a destituí-lo
como algo normal
e sem traumas. Pode
ser o parlamentarismo,
pode ser a imprensa
fazendo o seu papel.
O que não podemos
é acreditar no pretexto.
O
Brasil mudou de
metas, no segundo
mandato de FHC,
sem a ágora opinar.
O debate se focou
na corrupção. Hoje
corremos de novo
o risco de enfraquecer
um projeto de governo,
não porque nos descontente
em suas grandes
opções, mas por
questões laterais.
E nisso a ética
acaba sendo instrumentalizada.
Ora, respeitar a
ética exige também
respeitar a política.
Isso está faltando.
Fonte:
Renato
Janine Ribeiro