Ética
na política!
Roberto Romano,
Folha de S. Paulo,
2
de janeiro, 2004
Certa
feita, na biblioteca
da Unicamp, eu lia
os pensadores antigos,
como recomenda Maquiavel.
Toca o telefone.
Era o responsável
pelo boletim periódico
do PT, de circulação
interna. Após
os salamaleques
veio o pedido: "Queremos
um artigo seu sobre
ética na
política".
Estranhei o convite:
"Não
sou filiado ao partido,
melhor falar com
acadêmicos
militantes".
Réplica:
"Desejamos
que o texto seja
feito por alguém
exterior aos quadros
partidários,
para maior isenção".
Fui
levado, na sede
do partido, para
uma sala cheia de
papéis, jornais
antigos etc. No
meio do aposento,
majestosa pilha
na qual se equilibravam
pastas de tamanhos
variados. Pediram-me
que abrisse qualquer
uma delas.
Fi-lo
e percorri o conteúdo
da maior parte.
Estupefato, segui
a ladainha das cartas
enviadas por militantes:
"Nunca pensei
que no PT ocorressem
tais coisas".
E seguiam denúncias
em administrações
petistas. Uma pasta
reunia casos de
Santo André.
Nada contra Celso
Daniel, pela primeira
vez na prefeitura,
mas denúncias
sobre integrantes
de seu governo.
Escrevi
um texto amplo,
no qual afirmava
que agremiações
humanas erram. Mesmo
no PT poderia existir
falta de ética.
O artigo suscitou
interesse e foi
citado por Carlito
Maia para potenciar
sua crítica
de outros militantes.
Muitos petistas
afirmavam que a
ética morava
só no PT.
Os demais partidos?
"Farinha do
mesmo saco."
Arrogância
é letal em
política.
Publiquei vários
textos nesta Folha
advertindo contra
o angelismo do partido.
Logo
depois ocorreu o
seminário
"O PT e o Marxismo".
Os organizadores,
após o evento,
levaram-me para
o almoço.
Aproveitei para
lhes perguntar sobre
as denúncias
que li. "Não
peço explicações
de ordem sociológica,
digam apenas o que
imaginam ser a causa
do fenômeno."
A resposta foi honesta
e forneceu algum
sentido lógico:
"Veja, professor,
muitos de nossos
políticos
têm origem
humilde, recebem
salários
pequenos, não
possuem casas próprias.
De repente, encontram-se
nos cargos, recebem
o título
de Excelência,
carros são
postos ao seu dispor,
o pagamento triplica
etc. No primeiro
mandato, normalmente,
recusam meios errados
para se reeleger.
Mas perdem as eleições,
recaem na penúria.
Aprendem".
Essa
conversa ocorreu
bem antes do poder
abençoar
o PT. Muitos "aprenderam
a lição".
A pista ajuda a
identificar a origem
dos que hoje ascendem
na escala social
usando o antigo
Partido dos Trabalhadores,
hoje "Partido
dos Cargos em Comissão".
E também
a definir o que
Francisco de Oliveira
indicou como o "ornitorrinco".
O aparelhamento
do Estado serve
aos fins dos atuais
governantes, mas
favorece os arrivistas
que ontem foram
operários,
bancários
etc. A sua voracidade
foi potenciada ao
máximo com
o controle dos palácios.
Se
eles constituem
uma nova classe
é incerto.
Mas o tamanho de
sua goela mede-se
pela violência
dos atos que protagonizam.
O Brasil não
tem mobilidade social.
O "andar de
cima" (sigo
Elio Gaspari) é
hermético.
O governo oferece
vias de acesso.
O poder gera insensibilidade
aos sofrimentos
deixados nas periferias.
O escalador social
age pior do que
os antigos palacianos.
As medidas recentes
contra idosos centenários,
obrigando-os às
filas para exibir
sua existência,
provam a anestesia
ética dos
nossos poderosos
com alma de Barry
Lindon em figura
de Macunaíma.
Extenso
número de
petistas neófitos,
velhos partícipes
da vida pública
brasileira, engrossam
(em todos os sentidos)
a "base aliada".
Se militantes heróicos
escreviam cartas
contra a quebra
da ética
em administrações
do PT, hoje a tendência
segue o rumo do
pior. Existem na
agremiação
pessoas honradas
que ocupam cargos
em governos e Legislativos
e operam na cúpula
partidária.
Conheço várias
delas pessoalmente.
Mas
é impossível
olvidar (e não
por moralismo) as
zonas cinzentas
que obnubilam o
vermelho do partido.
As reações,
nos inquéritos
sobre a morte de
Celso Daniel, são
melancólicas.
Ministério
Público e
Justiça devem
ser incentivados
pelos líderes
partidários.
Caso oposto, ficaremos
no lugar-comum:
"o medo venceu
a esperança".
Mas
ainda acredito na
esperança
que levou o eleitorado
a votar nas mudanças
éticas prometidas
pelo PT.
Roberto Romano,
57, é professor
titular de ética
e filosofia política
na Unicamp e autor
de "Moral e
Ciência -
a Monstruosidade
no Século
XVIII" (ed.
Senac/São
Paulo), entre outras
obras.
Fonte:
Consciência.net