Ética na Política?
Da sagrada ingenuidade dos céticos ao realismo
maquiavélico
Até
que ponto a política é compatível
com a ética? A política pode ser eficiente
se incorporar a ética? Não seria puro
moralismo exigir que a política considere
os valores éticos?
Quando
se trata da relação entre ética e
política não há respostas fáceis.
Há mesmo quem considere que esta é
uma falsa questão, em outras palavras,
que ética e política são como a água
e o vinho: não se misturam. Quem pensa
assim, adota uma postura que nega
qualquer vínculo da política com a
moral: os fins justificam os meios.
O
‘realismo político’, ou seja, a busca
de resultados a qualquer preço, subtrai
os atos políticos à qualquer avaliação
moral, entendendo esta como restrita
à vida privada, dissociando o indivíduo
do coletivo.
Esta
concepção sobre a relação ética e
política desconsidera que a moral
também é um fator social e como tal
não pode se restringir ao santuário
da consciência dos indivíduos. Em
outras palavras, embora a moral se
manifeste pelo comportamento do indivíduo,
ela expressa uma exigência da sociedade
(um exemplo disso é a adoção dos diversos
"códigos de ética"). Ou seja, não
leva em conta que a política nega
ou afirma certa moral e que, em última
instância, a política também é avaliada
pelo comportamento e entendimento
moral das pessoas. Aliás, se a política
almeja legitimidade não pode, entre
outros fatores, dispensar o consenso
dos cidadãos — o que pressupõe o apelo
à moral.
Há
também os que, ingenuamente ou não,
adotam critérios moralizantes para
julgar os atos políticos. Por conseguinte,
condicionam a política à pureza abstrata
reservada ao ‘sagrado’ espaço da consciência
individual. Estes imaginam poder realizar
a política apenas pelos meios puros.
O
moralismo abstrato concentra a atenção
na esfera da vida privada, do indivíduo.
Portanto, aprisiona a política à moral
intimista e subjetiva deste. Ao centrar
a atenção na esfera individual, o
moralista julga o governante tão-somente
por suas virtudes e vícios, enfatizando
suas esperanças na transformação moral
dos indivíduos.
Ao
agir assim reduz um problema de teor
social e coletivo a um problema individual.
No limite, chega à conclusão de que
as questões sociais podem ser solucionadas
se convencermos os indivíduos isoladamente
a contribuírem, por exemplo, dividindo
sua riqueza como os desafortunados.
O
resultado é catastrófico: o moralista
angustia-se porque a política não
se enquadra nos seus valores morais
individuais e termina por renunciar
à própria ação política. Dessa forma,
contribui objetivamente para que prevaleça
outra política.
De
um lado o ‘realismo político’; de
outro, o moralismo absoluto. Nem tanto
mar, nem tanto terra. A política e
a moral, embora expressem esferas
de ação e de comportamento humano
específicas e distintas, são igualmente
importantes para a ação humana no
sentido da transformação social.
Política
e moral são formas de comportamento
que não se identificam (a primeira
enfatiza o coletivo; a segunda o indivíduo).
Nem a política pode absorver a moral,
nem esta pode ser reduzida à política.
Embora sejam esferas diferentes, há
a necessidade de uma relação mútua
que não anule as características particulares
de cada uma. Portanto, nem a renúncia
à política em nome da moral; nem a
exclusão absoluta da política.
Mas,
ainda fica a pergunta inicial: é possível
a ética na política? Para uma resposta
mais abrangente é preciso analisar
as diferenças entre ética e
moral (conceitos que usamos
de forma indistinta).
Ética
e moral
Em
nosso cotidiano enfrentamos problemas
morais e éticos. Por exemplo: devo
cumprir a promessa que fiz ao meu
amigo, embora venha a perceber que
fazê-lo me causará prejuízos? Sempre
devo dizer a verdade ou há ocasiões
em que a mentira não apenas se faz
necessária como será benéfica ao meu
interlocutor? Devo persistir numa
ação que moralmente é valorada como
boa, mas cujas conseqüências práticas
são extremamente prejudicais a outrem?
Se cumpro ordens posso ser julgado
do ponto de vista moral? Se meu amigo
colabora com o inimigo devo denunciá-lo?
A questão ética
é, portanto, uma questão prática que
extrapola a política — no sentido
restrito da política institucional.
É interessante como se exige ética
na política e, muitas vezes, no âmbito
da vida privada, procedemos de forma
anti-ética. Aliás, determinados casos
políticos onde se alardeia a exigência
da ética, nada tem a ver com esta:
são, em suma, meros casos de polícia.
Esta relação direta
com a realidade dos indivíduos contribui
para o entendimento comum que assemelha
ética à moral e toma uma pela outra.
Um bom exemplo desta confusão conceitual
está na expressão já consolidada no
vocabulário as diversas profissões:
os códigos de ética. Na verdade
são normas, regras procedimentos,
que configuram, digamos, um código
de moral. Observemos que mesmos
os partidos políticos têm os seus
códigos de ética!
Ética tem origem
no grego ethos, que significa
modo de ser. A palavra moral
vem do latim mos ou mores,
ou seja, costume ou costumes. A primeira
é uma ciência sobre o comportamento
moral dos homens em sociedade e está
relacionada à Filosofia, isto é, pergunta-se
sobre a fundamentação última das questões.
Sua função é a mesma de qualquer teoria:
explicar, esclarecer ou investigar
uma determinada realidade, elaborando
os conceitos correspondentes. A segunda,
como define o filósofo VÁZQUEZ (1992),
expressa "um conjunto de normas, aceitas
livre e conscientemente, que regulam
o comportamento individual dos homens".
O campo da ética
é diferente da moral: enquanto tal
não lhe cabe formular juízo valorativo,
mas sim explicar as razões e proporcionar
a reflexão. A moral pressupõe regras
de ação e imperativos materializados
em realidades históricas concretas.
A moral antecede à própria ética,
é normativa e se manifesta concretamente
nas diferentes sociedades enquanto
resposta às suas necessidades. Sua
função consiste precisamente me regulamentar
as relações entre os indivíduos e
entre estes e a comunidade, contribuindo
para a estabilidade da ordem social.
A moral não é natural.
Pelo contrário, resulta da ação do
homem enquanto ser social, histórico
e prático. Como fato histórico, a
moral corresponde aos diversos estágios
da evolução da humanidade. A ética
acompanha este desenvolvimento sem
se reduzir à moral. No entanto, ambas
se confundem porque a ética parte
de situações concretas, isto é, dos
fatos e conseqüentemente da existência
da moral.
Explicitado as relações
e diferenças entre ética e moral,
retomemos o fio da meada: é possível
a ética na política? Se seguirmos
o itinerário da política, dos gregos
à modernidade, verificaremos que não
há resposta simples nem única. De
um lado, a exigência da ética enquanto
componente da política expressa o
desejo da sua moralização. Como a
moral é essencialmente uma forma de
comportamento relacionada com a consciência
individual, seus critérios chocam-se
com a esfera da política enquanto
atividade coletiva. A política pressupõe
ainda confrontos e conflitos entre
interesses de grupos opostos e antagônicos,
o que potencializa ainda mais o choque
com os imperativos morais do indivíduo.
Na política não
é apenas o interesse individual que
está em jogo, mas também os interesses
de grupos e coletivos expressados
pelas ações dos indivíduos. É verdade
que muitas vezes aquilo que aparece
como algo pertinente à coletividade,
de fato mascara o interesse pessoal
e carreirista do político que pede
seu voto e que faz o discurso do bem
comum.
Mas, mesmo este
político está preso aos interesses
dos grupos que financiam sua eleição
e, de certa forma, precisa mediatizar
seu interesse egoísta com aquele do
grupo social do qual faz parte ou
do qual depende financeiramente para
dar vôos políticos mais altos. Além
do mais, nem que se resuma à mera
retórica, ele necessita aparentar
ser o que não é: um defensor dos anseios
coletivos, do bem-estar social da
coletividade.
Por outro lado,
a moralização da política recoloca
uma antiga problemática: a relação
entre o público e o privado. Foram
os gregos na antigüidade que inventaram
o espaço da política enquanto expressão
da vontade coletiva, isto é, enquanto
esfera da ação humana que submete
a vontade arbitrária e privada do
poder pessoal do governante às instituições
públicas. Dessa forma, cunharam a
distinção entre a autoridade pública
— expressão do coletivo — e autoridade
privada — identificada com o déspota,
o chefe de família. A condição da
política é justamente a ausência do
despotismo.
Os
fins justificam os meios?
Com Maquiavel a
política atinge a maioridade e é concebida
enquanto esfera autônoma da vida social.
A política deixa de ser pensada a
partir da ética e da religião. Neste
sentido, Maquiavel representa uma
dupla ruptura: com os clássicos da
antiguidade greco-romana e com os
valores cristãos medievais. A política
deixa de ser pensada apenas no contexto
da filosofia e se constitui enquanto
um campo de estudo independente, com
regras e dinâmica livres de considerações
privadas, morais, filosóficas ou religiosas.
Em Maquiavel, a
política identifica-se com o espaço
do poder, enquanto atividade que na
qual se assenta a existência coletiva
e que tem prioridade sobre as demais
esferas da vida humana. A política
funde-se com a realidade objetiva,
com os problemas concretos das relações
entre os homens: deixa de ser prescritiva
— em torno de uma abstração moral
e ideal — e passa a ser vista como
uma técnica, com leis próprias, atinente
ao cotidiano dos indivíduos.
Para Maquiavel a
política deve se preocupar com as
coisas como são, em toda sua crueza,
e não com as coisas como deveriam
ser, com todo o moralismo que lhe
é subjacente. Ao libertar a política
da moral religiosa, Maquiavel explicitou
seu caráter terreno e transformou-a
em algo passível de ser assimilado
pelos comuns dos mortais.
Isto teve um preço.
Não por acaso seu nome virou adjetivo
de coisa má. Maquiavelismo virou sinônimo
de uma prática política desprovida
de moral e de boa fé, um procedimento
astucioso e velhaco. De fato, o florentino
nada mais fez do que demonstrar a
hipocrisia da moral da sua época,
isto é, mostrar como, por trás de
uma moralidade que justificava a dominação
dos senhores feudais e da senhora
feudal, a Igreja Católica, a política
era cruel e friamente praticada através
de meios nada cristãos: traições,
assassinatos, guerras etc.
A política explicitada
e descrita em sua obra com dezenas
de exemplos retirados da história
mais se assemelha ao inferno dantesco
do que ao paraíso prometido aos pobres
camponeses, desde é claro, que eles
se conformassem com a exploração e
a situação de miséria em que viviam.
Ontem como hoje a recompensa ao conformismo
está no pós-morte, no além.
Maquiavel não introduziu
as práticas amorais na política. A
despeito de toda a moralidade, o ‘maquiavelismo’
que lhe imputam já se fazia presente
antes dele escrever sua obra mais
polêmica: O Príncipe. Quem
ler este livro sem levar em consideração
e estudar minuciosamente o contexto
histórico no qual ele escreveu, não
aprenderá nem fará justiça ao seu
autor.
Com Maquiavel cai
por terra a falácia da política enquanto
busca da justiça, do bem comum etc.
A fraseologia cristã-medieval fundada
na moral religiosa mascara o fundamento
da política e do Estado: a manutenção
do poder político em torno das classes
dirigentes em cada época histórica.
Conquistar e manter o poder: eis em
síntese a finalidade essencial da
política. É neste sentido que Maquiavel
cunha sua famosa e mais polêmica frase:
"Os fins justificam os meios”.
Muito já foi dito
e escrito sobre esta assertiva. E
ela permanece atual. Em primeiro lugar,
é difícil não reconhecer que há uma
relação entre fins e meios. Como diria
um revolucionário russo: "É preciso
semear um grão de trigo se se quiser
obter uma espiga de trigo".
Há uma relação dialética
entre fins e meios, no sentido de
que há uma interdependência entre
ambos. O problema é o que a afirmação
maquiaveliana encerra em si: o que
se pode e o que não se pode fazer
para atingir determinado fim? Se o
fim é justo, todos os meios justificam-se?
Esta questão não
pode ser satisfatoriamente respondida
sem equacionarmos outra que se coloca
a priori: o que justifica o fim? Ora,
a realidade social na qual vivemos
está longe de assemelhar-se ao paraíso
ou à harmonia positivista da ordem
e progresso. A ordem se mantém a ferro
e fogo, isto é, a partir da ocultação
ideológica das relações e mecanismos
de exploração e pelo uso do aparato
repressivo estatal, sempre que se
faz necessário.
Por outro lado,
este século, se pensarmos filosoficamente
e não apenas do ponto de vista tecnológico,
enterrou a ilusão positivista — mas
também iluminista e a leitura evolucionista
marxista — de que a humanidade marcharia
sempre numa direção progressista.
Duas guerras mundiais, o nazismo,
o fascismo, o stalinismo, as ditaduras
de esquerda e de direita etc., negam
qualquer idéia no sentido de uma evolução
linear positiva.
Mesmo de um ponto
de vista essencialmente capitalista,
o progresso é um fracasso pois que
toda a riqueza produzida com o desenvolvimento
tecnológico está concentrada cada
vez mais em mãos de poucos, aumentando
o fosso entre ricos e pobres — e não
precisa ser marxista para verificar
que a miséria aumenta no mundo, que
a desigualdade cresce e que as mazelas
sociais atingem até mesmo os países
mais poderosos.
Assim, a questão
dos fins está relacionada à questão
política-social. Porém, se entendemos
a política enquanto conflitos de interesses
entre grupos e classes sociais, a
justificação dos fins diz respeito
às opções que fazemos quanto ao projeto
político. Evidentemente adotar uma
ou outra opção justificará este ou
aquele fim. Numa sociedade onde impera
a desigualdade e as relações de dominação
e exploração entre as classes e grupos
sociais, os fins não são universais,
como também não o é a moral.
Justificado o fim
pelo projeto social que assumimos,
podemos então discutir se os fins
justificam os meios. Há uma tradição,
que começa com o próprio Maquiavel,
que responde afirmativamente (quanto
a este é preciso esclarecer que ele
se refere ao Estado e não aos procedimentos
morais individuais). Se pensarmos
na ação política concreta seria ingenuidade,
própria de um moralismo abstrato desligado
de contextos históricos concretos,
imaginarmos que tanto a direita quanto
a esquerda não justificou os meios
utilizados pelo fim perseguido.
Esta análise nos
coloca diante de problemas concretos.
Partindo do pressuposto que os fins
buscados são diferentes, pode a direita
e a esquerda utilizar os mesmos meios?
Quem luta pela liberdade pode usar
recursos ditatoriais, repressivos?
Quem respeita a vida humana pode adotar
procedimentos de tortura assassinatos
etc., em nome do objetivo político?
O que diferencia uma ditadura de esquerda
de outra de direita? O terrorista
que luta pela liberdade de seu país
justifica os meios que utiliza e que,
invariavelmente, vitima inocentes?
Os fins justificam
os meios, é verdade. Mas apenas na
medida em que estes meios não entram
em contradição com os fins almejados.
Quer dizer, nem tudo é permitido!
Só é aceitável aquilo que contribui
para que se atinja o fim e que não
represente a negação deste. Toda a
experiência do ‘socialismo real’ expressa
a comprovação histórica de que não
basta proclamar certos fins — por
mais justos que sejam — é preciso
encontrar os meios adequados.
Não se constrói
uma nova sociedade utilizando-se os
mesmos recursos predominantes na velha
estrutura social. Os marinheiros de
Kronstadt, os camponeses da Ucrânia
e os trabalhadores oprimidos por um
Estado e um partido que governou ditatorialmente
em seu nome que o digam. Neste caso,
os fins já são outros e muito diferentes
dos enunciados. Dialeticamente, os
meios também mudaram e justificam-se
pelos fins ora em pauta. Maquiavel
tinha razão...
Por ANTONIO OZAÍ DA SILVA
Docente na UEM e doutorando na Faculdade de Educação da Universidade
de S. Paulo.
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