Histórias
Infantis
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De Platão a Comte, os pensadores tradicionais incentivaram os homens a cultivar o melhor em si mesmo, seguindo modelos pré-idealizados que visavam o interesse comum. O Eu era imperfeito e necessitava de auto-controle severo. Quem ousasse discordar das regras estabelecidas sofria desprezo, humilhações, exílio e até a morte. Na contramão da cultura, pensadores como Nietszche denunciavam o que diziam ser uma técnica de antropometria a escravizar o espírito humano; defendendo o direito à liberdade e à felicidade pessoal. O Eu é perfeito, necessitando apenas florescer, manifestar-se, sendo-lhe impossível tornar-se um Eu diverso ou melhor.
Eis que, nas últimas décadas do século XX, o individual vem ganhando cada vez mais espaço, em detrimento de valores tradicionais. Divórcio,homossexualismo, celibato, tolerância religiosa (ao menos em nosso abençoado Brasil), nada escandaliza a sociedade atual, que através de suas leis trata de garantir os direitos fundamentais.
Tempos mais felizes aguardam as crianças que são criadas com estórias como À Procura de Nemo e Shrek I e II.
Nessas estórias, a tônica é a manifestação do Eu, a aceitação da individualidade, a que se reconhece o direito de SER em um mundo mutante aberto a infinitas possibilidades.
No conto de fadas tradicional o herói (o príncipe, ou seja, o filho) tem uma missão a cumprir e seu mérito é a vitória. Nas novas estórias o mérito é a persistência. Na estória de Nemo, o herói está invertido: não é o filho que parte para salvar o pai, e sim o pai que parte para salvar o filho. Quando este pai não chega a tempo – pensa que fracassou –continua simpático ao expectador e merecedor de todo o apoio de seus aliados (os pelicanos, a peixinha).
O conto de fadas tradicional parece querer moldar o espírito infantil para o sacrifício e a busca de valores pré-estabelecidos. Seus heróis perdem partes do corpo, renunciam a prazeres, trabalham arduamente, conquistam princesas, animais encantados ou objetos de ouro enclausurados em torres ou palácios, sob a guarda de ferozes dragões, bruxas ou encantamentos.
Já as estórias atuais abandonam esta simbologia para explicitamente valorizar a determinação de atingir sua meta, a coragem de assumir suas peculiaridades e a capacidade de adaptação a um ambiente instável.
A figura do mentor, símbolo da força interior do herói, desaparece, e ao invés de santos disfarçados, gênios ou fadas madrinha, o companheiro do herói é um igual, imperfeito. Em Nemo, a peixinha distraída, em Shrek, o asno solitário. Os objetos mágicos dão lugar a conselhos práticos: ‘continue nadando’, ‘faça alguma coisa’, ‘qualquer coisa!’, enfim, persista.
Observamos na estória de Nemo uma inversão genial – o pai parte para a aventura, o pai se modifica ao final e o pai é o responsável pelos deslizes do filho.
Diz a peixinha “que coisa estranha para se desejar a um filho, que nada lhe aconteça, pois, se nada lhe acontecer, sua vida será muito sem graça”.
Nemo é uma estória para pais superprotetores e ansiosos ante a fragilidade dos filhos, que, superprotegidos, tendem a ficar cada vez mais frágeis. Este comportamento é prejudicial à criança, gera nela sentimentos de raiva e estimula a rebeldia. Injustamente acusado pelo pai, Nemo foge para o mar aberto, o que segundos antes nem se atreveria a pensar, é capturado e tem início a saga paterna. O pai vê-se obrigado a confrontar seus medos, a superar suas limitações, a expor-se a novas possibilidades; neste processo torna-se autoconfiante. Ao final, o filho é aceito e até estimulado a participar da alegre aventura da vida.
É fácil para a criança identificar-se com Nemo; ela é a parte mais fraca da relação pai-filho, com pouco poder de negociação, e desejosa de ser vista como alegre, bonita e meiga como o peixinho.
Já a identificação com Shrek ocorre pelo lado sofrido da infância. O ogro é criticado, desengonçado, feio, socialmente inadequado, sem controle do próprio corpo: arrota, peida, suja-se todo. Ora, estes desastres a criança conhece bem, principalmente a da cidade, sem direito ao contato saudável com a terra, a lama, o rio, os bichos, a ‘sujeira’, enfim; obrigada a um precoce treinamento higiênico em creches e pré-escolas. A maior parte de nossa crianças desconhece a agradável manipulação da natureza, ou tem acesso a ela em horários rigidamente regulados, como a ida à praia aos domingos pela manhã, mas ‘lave bem as mãos’ e ‘não coloque o dedo sujo de areia na boca, senão...’.Ora. em Shrek, a sujeira não é necessariamente ruim, pode ser divertida, e o ogrozinho se enlameia, transforma sapos em bolas de gás, faz caretas etc
Shrek é o herói que não se encaixa nas expectativas, não é o certinho; é rude, sacode a princesa, recusa o beijo de amor, demonstra sua boa índole através de atitudes bem estranhas, como fazer um churrasco de ratos, brincar de empurrar ou presentear com sapos a sua amada.
Já o príncipe, o certinho (em ShrekII em 3D), é visto com ressalvas, por ser vaidoso, superficial e sem vontade própria. Está obedecendo à vontade da mãe e chega atrasado à torre!
Nessas novas estórias, a princesa, não mais uma figura decorativa, tem a opção de escolher seu destino. É corajosa, luta karatê, questiona seus pretendentes e pode decidir-se entre ser princesa ou ogra, assumindo seu lado individual e criativo.
Se no conto tradicional o beijo de amor leva ao plano ideal e quebra o encanto, no conto moderno o beijo de amor leva ao plano real e reafirma o encanto. (ogra) Interessante é notar a conotação da expressão ‘quebrar o encanto’, pois quebrar o encanto deixa tudo sem graça, previsível.
O conto tradicional convida o leitor a renunciar à individualidade em nome de um ideal coletivo. O conto moderno estimula o indivíduo a aceitar-se e a buscar a própria felicidade. Não importa se você é um ogro, em algum lugar haverá uma ogrinha esperando por você.
Se no conto tradicional os valores estão de antemão estabelecidos e consagrados, no moderno os valores apresentados são rejeitados e ousa-se buscar a liberdade, a autenticidade, a criatividade. Em um século em que a informação e a tecnologia evoluem minuto a minuto, as barreiras geográficas desaparecem e a comunicação é praticamente instantânea, esta ousadia é a diferença entre o sucesso e o fracasso.
Resumindo, o conto de fadas tradicional nos diz: Siga as regras para ser feliz.
O conto infantil moderno aconselha, de maneira muito simpática: Seja você sem medo de ser feliz.
Sonia
Regina Rocha Rodrigues - Escritora e médica pediatra. Santos/SP/Brasil
sonia_aniger@yahoo.com.br - Site: http://alegriadeler.blogspot.com