Monteiro
Lobato
Jeca
Tatu era um pobre caboclo que morava
no mato, numa casinha de sapé.
Vivia na maior pobreza, em companhia
da mulher, muito magra e feia e de
vários filhinhos pálidos
e tristes.
Jeca
Tatu passava os dias de cócoras,
pitando enormes cigarrões de
palha, sem ânimo de fazer coisa
nenhuma. Ia ao mato caçar,
tirar palmitos, cortar cachos de brejaúva,
mas não tinha idéia
de plantar um pé de couve atras
da casa. Perto um ribeirão,
onde ele pescava de vez em quando
uns lambaris e um ou outro bagre.
E assim ia vivendo.
Dava
pena ver a miséria do casebre.
Nem móveis nem roupas, nem
nada que significasse comodidade.
Um banquinho de três pernas,
umas peneiras furadas, a espingardinha
de carregar pela boca, muito ordinária,
e só.
Todos
que passavam por ali murmuravam:
Que
grandíssimo preguiçoso!
Jeca
Tatu era tão fraco que quando
ia lenhar vinha com um feixinho que
parecia
brincadeira.
E vinha arcado, como se estivesse
carregando um enorme peso.
Por
que não traz de uma vez um
feixe grande? Perguntaram-lhe um dia.
Jeca Tatu coçou a barbicha
rala e respondeu:
Não
paga a pena.
Tudo para ele não pagava a
pena. Não pagava a pena consertar
a casa, nem fazer uma horta, nem plantar
arvores de fruta, nem remendar a roupa.
Só
pagava a pena beber pinga.
Por
que você bebe, Jeca? Diziam-lhe.
Bebo para esquecer.
Esquecer o quê?
Esquecer as desgraças da vida.
E os passantes murmuravam:
Além
de vadio, bêbado...
Jeca
possuía muitos alqueires de
terra, mas não sabia aproveitá-la.
Plantava todos os anos uma rocinha
de milho, outra de feijão,
uns pés de abóbora e
mais nada. Criava em redor da casa
um ou outro porquinho e meia dúzia
de galinhas. Mas o porco e as aves
que cavassem a vida, porque Jeca não
lhes dava o que comer. Por esse motivo
o porquinho nunca engordava, e as
galinhas punham poucos ovos.
Jeca
possuía ainda um cachorro,
o Brinquinho, magro e sarnento, mas
bom companheiro e leal amigo.
Brinquinho
vivia cheio de bernes no lombo e muito
sofria com isso. Pois apesar dos ganidos
do cachorro, Jeca não se lembrava
de lhe tirar os bernes. Por que? Desânimo,
preguiça...
As
pessoas que viam aquilo franziam o
nariz.
Que
criatura imprestável! Não
serve nem para tirar berne de cachorro...
Jeca
só queria beber pinga e espichar-se
ao sol no terreiro. Ali ficava horas,
com o
cachorrinho rente; cochilando. A vida
que rodasse, o mato que crescesse
na roça, a casa que caísse.
Jeca não queria saber de nada.
Trabalhar não era com ele.
Perto
morava um italiano já bastante
arranjado, mas que ainda assim trabalhava
o dia inteiro. Por que Jeca não
fazia o mesmo?
Quando
lhe perguntavam isso, ele dizia:
Não
paga a pena plantar. A formiga come
tudo.
Mas como é que o seu vizinho
italiano não tem formiga no
sítio?
É que ele mata.
E porque você não faz
o mesmo?
Jeca coçava a cabeça,
cuspia por entre os dentes e vinha
sempre com a mesma história:
Quá!
Não paga a pena...
Além de preguiçoso,
bêbado; e além de bebado,
idiota, era o que todos diziam.
Um
dia um doutor portou lá por
causa da chuva e espantou-se de tanta
miséria. Vendo o caboclo tão
amarelo e chucro, resolveu examiná-lo.
Amigo
Jeca, o que você tem é
doença.
Pode ser. Sinto uma canseira sem fim,
e dor de cabeça, e uma pontada
aqui no peito que responde na cacunda.
Isso mesmo. Você sofre de anquilostomiase.
Anqui... o quê?
Sofre de amarelão, entende?
Uma doença que muitos confundem
com a maleita.
Essa tal maleita não é
a sezão?
Isso mesmo. Maleita, sezão,
febre palustre ou febre intermitente:
tudo é a mesma coisa, está
entendendo? A sezão também
produz anemia, moleza e esse desânimo
do amarelão; mas é diferente.
Conhece-se a maleita pelo arrepio,
ou calafrio que dá, pois é
uma febre que vem sempre em horas
certas e com muito suor. O que você
tem é outra coisa. É
amarelão.
O
doutor receitou-se o remédio
adequado; depois disse: "E trate
de comprar um par de botinas e nunca
mais me ande descalço nem beba
pinga, ouviu?"
Ouvi,
sim, senhor!
Pois é isso, rematou o doutor,
tomando o chapéu. A chuva passou
e vou-me embora. Faça o que
mandei, que ficará forte, rijo
e rico como o italiano. Na semana
que vem estarei de volta.
Até por lá, sêo
doutor!
Jeca ficou cismando. Não acreditava
muito nas palavras da ciência,
mas por fim resolveu comprar os remédios,
e também um par de botinas
ringideiras.
Nos
primeiros dias foi um horror. Ele
andava pisando em ovos. Mas acostumou-se,
afinal...
Quando
o doutor reapareceu, Jeca estava bem
melhor, graças ao remédio
tomado. O doutor mostrou-lhe com uma
lente o que tinha saído das
suas tripas.
Veja,
sêo Jeca, que bicharia tremenda
estava se criando na sua barriga!
São os tais anquilostomos,
uns bichinhos dos lugares úmidos,
que entram pelos pés, vão
varando pela carne adentro até
alcançarem os intestinos. Chegando
lá, grudam-se nas tripas e
escangalham com o freguês. Tomando
este remédio você bota
p'ra fora todos os anquilostomos que
tem no corpo. E andando sempre calçado,
não deixa que entrem os que
estão na terra. Assim fica
livre da doença pelo resto
da vida.
Jeca abriu a boca, maravilhado.
Os
anjos digam amém, sêo
doutor!
Mas
Jeca não podia acreditar numa
coisa: que os bichinhos entrassem
pelo pé. Ele era "positivo"
e dos tais que "só vendo".
O doutor resolveu abrir-lhe os olhos.
Levou-o a um lugar úmido, atrás
da casa, e disse:
Tire
a botina e ande um pouco por aí.
Jeca obedeceu.
Agora
venha cá. Sente-se. Bote o
pé em cima do joelho. Assim.
Agora examine a pela
com esta lente.
Jeca tomou a lente, olhou e percebeu
vários vermes pequeninos que
já estavam penetrando na sua
pele, através dos poros. O
pobre homem arregalou os olhos assombrado.
E
não é que é mesmo?
Quem "havera" de dizer!...
Pois é isso, sêo Jeca,
e daqui por diante não duvide
mais do que a ciência disser.
Nunca mais! Daqui por diante nha ciência
está dizendo e Jeca está
jurando em cima! T'esconjuro! E pinga,
então, nem p'ra remédio...
Tudo
o que o doutor disse aconteceu direitinho!
Três meses depois ninguém
mais conhecia o Jeca.
A
preguiça desapareceu. Quando
ele agarrava no machado, as arvores
tremiam de pavor. Era pan, pan, pan...
horas seguidas, e os maiores paus
não tinham remédio senão
cair.
Jeca,
cheio de coragem, botou abaixo um
capoeirão para fazer uma roça
de três alqueires. E plantou
eucaliptos nas terras que não
se prestavam para cultura. E consertou
todos os buracos da casa. E fez um
chiqueiro para os porcos. E um galinheiro
para as aves. O homem não parava,
vivia a trabalhar com fúria
que espantou até o seu vizinho
italiano.
Descanse
um pouco, homem! Assim você
arrebenta... diziam os passantes.
Quero ganhar o tempo perdido, respondia
ele sem largar do machado. Quero tirar
a prosa do "intaliano".
Jeca,
que era um medroso, virou valente.
Não tinha mais medo de nada,
nem de onça! Uma vez, ao entrar
no mato, ouviu um miado estranho.
Onça!
Exclamou ele. É onça
e eu aqui sem nem uma faca!...
Mas não perdeu a coragem. Esperou
a onça, de pé firme.
Quando a fera o atacou, ele ferrou-se
tamanho murro na cara, que a bicha
rolou no chão, tonta. Jeca
avançou de novo, agarrou-a
pelo pescoço e estrangulou-a
Conheceu,
papuda? Você pensa então
que está lidando com algum
pinguço opilado? Fique sabendo
que tomei remédio do bom e
uso botina ringideira...
A companheira da onça, ao ouvir
tais palavras, não quis saber
de histórias - azulou! Dizem
que até hoje está correndo...
Ele,
que antigamente só trazia três
pausinhos, carregava agora cada feixe
de lenha que metia medo. E carregava-os
sorrindo, como se o enorme peso não
passasse de brincadeira.
Amigo
Jeca, você arrebenta! Diziam-lhe.
Onde se viu carregar tanto pau de
uma vez?
Já não sou aquele de
dantes! Isto para mim agora é
canja, respondia o caboclo sorrindo.
Quando teve de aumentar a casa, foi
a mesma coisa. Derrubou no mato grossas
perobas, atorou-as, lavrou-as e trouxe
no muque para o terreiro as toras
todas. Sozinho!
Quero mostrar a esta paulama quanto
vale um homem que tomou remédio
de Nha Ciência, que usa botina
cantadeira e não bebe nem um
só martelinho de cachaça.
O italiano via aquilo e coçava
a cabeça.
Se
eu não tropicar direito, este
diabo me passa na frente, Per Bacco!
Dava
gosto ver as roças do Jeca.
Comprou arados e bois, e não
plantava nada sem primeiro afofar
a terra. O resultado foi que os milhos
vinham lindos e o feijão era
uma beleza.
O
italiano abria a boca, admirado, e
confessava nunca Ter visto roças
assim.
E
Jeca já não plantava
rocinhas como antigamente. Só
queria saber de roças grandes,
cada vez maiores, que fizessem inveja
no bairro.
E
se alguém lhe perguntava:
Mas
para que tanta roça, homem?
Ele respondia:
É que agora quero ficar rico.
Não me contento com trabalhar
para viver. Quero cultivar todas as
minhas terras, e depois formar aqui
uma enorme fazenda. E hei de ser até
coronel...
E ninguém duvidava mais. O
italiano dizia:
E
forma mesmo! E vira mesmo coronel!
Per la Madonna!...
Por
esse tempo o doutor passou por lá
e ficou admiradíssimo da transformação
do seu doente.
Esperara
que ele sarasse, mas não contara
com tal mudança.
Jeca
o recebeu de braços abertos
e apresentou-o à mulher e aos
filhos.
Os
meninos cresciam viçosos, e
viviam brincando contentes como passarinhos.
E
toda gente ali andava calçada.
O caboclo ficara com tanta fé
no calçado, que metera botinas
até nos pés dos animais
caseiros!
Galinhas,
patos, porcos, tudo de sapatinho nos
pés! O galo, esse andava de
bota e espora!
Isso
também é demais, sêo
Jeca, disse o doutor. Isso é
contra a natureza!
Bem sei. Mas quero dar um exemplo
a esta caipirada bronca. Eles aparecem
por aqui, vêem isso e não
se esquecem mais da história.
Em
pouco tempo os resultados foram maravilhosos.
A porcada aumentou de tal modo, que
vinha gente de longe admirar aquilo.
Jeca adquiriu um caminhão Ford,
e em vez de conduzir os porcos ao
mercado pelo sistema antigo, levava-os
de auto, num instantinho, buzinando
pela estrada afora, fon-fon! fon-fon!...
As
estradas eram péssimas; mas
ele consertou-as à sua custa.
Jeca parecia um doido. Só pensava
em melhoramentos, progressos, coisas
americanas. Aprendeu logo a ler, encheu
a casa de livros e por fim tomou um
professor de inglês.
Quero
falar a língua dos bifes para
ir aos Estados Unidos ver como é
lá a coisa.
O seu professor dizia:
O
Jeca só fala inglês agora.
Não diz porco; é pig.
Não diz galinha! É hen...
Mas de álcool, nada. Antes
quer ver o demônio do que um
copinho da "branca"...
Jeca
só fumava charutos fabricados
especialmente para ele, e só
corria as roças montado em
cavalos árabes de puro sangue.
Quem
o viu e quem o vê! Nem parece
o mesmo. Está um "estranja"
legítimo, até na fala.
Na sua fazenda havia de tudo. Campos
de alfafa. Pomares belíssimos
com quanta fruta há no mundo.
Até criação de
bicho da seda; Jeca formou um amoreiral
que não tinha fim.
Quero
que tudo aqui ande na seda, mas seda
fabricada em casa. Até os sacos
aqui da fazenda têm que ser
de seda, para moer os invejosos...
E ninguém duvidava de nada.
O
homem é mágico, diziam
os vizinhos. Quando assenta de fazer
uma coisa, faz mesmo, nem que seja
um despropósito...
A
fazenda do Jeca tornou-se famosa no
país inteiro. Tudo ali era
por meio do rádio e da eletricidade.
Jeca, de dentro do seu escritório,
tocava num botão e o cocho
do chiqueiro se enchia automaticamente
de rações muito bem
dosadas. Tocava outro botão,
e um repuxo de milho atraia todo o
galinhame...
Suas
roças eram ligadas por telefones.
Da cadeira de balanço, na varanda,
ele dava ordens aos feitores lá
longe.
Chegou
a mandar buscar no Estados Unidos
um telescópio.
Quero
aqui desta varanda ver tudo que
se passa em minha fazenda.
E tanto fez, que viu. Jeca instalou
os aparelhos e assim pode, da
sua varanda, com o charutão
na boca, não só
falar por meio do rádio
para qualquer ponto da fazenda,
como ainda ver, por meio do telescópio,
o que os camaradas estavam fazendo.
Ficou
rico e estimado, como era natural;
mas não parou aí.
Resolveu ensinar o caminho da
saúde aos caipiras das
redondezas. Para isso montou na
fazenda e vilas próximas
vários Postos de Maleita,
onde tratava os enfermos de sezões;
e também Postos de Anquilostomose,
onde curava os doentes de amarelão
e outras doenças causadas
por bichinhos nas tripas.
O
seu entusiasmo era enorme. "Hei
de empregar toda a minha fortuna
nesta obra de saúde geral,
dizia ele. O meu patriotismo é
este. Minha divisa: Curar gente.
Abaixo a bicharia que devora o
brasileiro..."
E
a curar gente da roça passou
Jeca toda a sua vida. Quando morreu,
aos 89 anos, não teve estátua,
nem grandes elogios nos jornais.
Mas ninguém ainda morreu
de consciência tranqüila.
Havia cumprido o seu dever até
o fim.
Meninos:
nunca se esqueçam desta
história; e, quando crescerem,
tratem de imitar o Jeca. Se forem
fazendeiros, procurem curar os
camaradas da fazenda. Além
de ser para eles um grande benefício,
é para você um alto
negócio. Você verá
o trabalho dessa gente produzir
três vezes mais.
Um
país não vale pelo
tamanho, nem pela quantidade de
habitantes. Vale pelo trabalho
que realiza e pela qualidade da
sua gente. Ter saúde é
a grande qualidade de um povo.
Tudo mais vem daí.
Nota
da redação:
Este
conto foi adotado como peça
publicitária do Laboratório
Fontoura. Adaptado em história
em quadrinhos ou na forma de folheto,
ou ainda fazendo parte de almanaques,
teve até os anos 60 uma
tiragem de cerca de 18 milhões
de exemplares. Há testemunhos
de que sua leitura transformou
a vida de muita gente.