DO
GREGO ANTIGO AO PORTUGUÊS CONTEMPORÂNEO:
O
SORTILÉGIO DA LÍNGUA E A EPIFANIA
DA CULTURA.
LUÍS
MIGUEL OLIVEIRA DE BARROS CARDOSO*
A
língua pode muito bem ser
uma pátria, como escreveu
Fernando Pessoa, porque
como pátria se ganha, se
perde, se adopta ou repudia.
Mas, antes de pátria, a
Língua é sempre algo de
mais íntimo: padrão e medida
da nossa alma; referência
da nossa arte...
João
de Melo
A
Grécia é um ponto de partida
a que justamente é preciso
regressar porque então o
homem tentou partir da imanência,
partir do seu estar na terra...
Sophia
de Mello Breyner Andresen
1. A língua,
casa do ser.
Quando Martin
Heidegger publica o decisivo Sein
und Zeit (Ser e Tempo), em 1927, na
revista de Husserl Jahrbuch f. Phil.
Und phänomelog. Forschung, afirma-se,
acima de tudo, um esforço singular
para libertar das garras aduncas do
esquecimento a questão do ser, num
gesto titânico e prometeico do próprio
pensamento.
O centro da reflexão
de Heidegger é o homem e o sentido
do ser, o modo como aparece a si mesmo
e se revela como passo na caminhada
para a compreensão do ser em geral.
Assim, o filósofo utiliza o método
fenomenológico de modo a analisar
a ontologia fundamental a fim de descobrir
as estruturas ontológicas do Dasein
(ser - aí). Por outro lado, há que
pensar as relações entre o homem e
o mundo pois ele é um ser-no-mundo
(In - der - Welt - sein) constituindo
este um verdadeiro horizonte a partir
do qual reflecte e compreende as coisas
e a si próprio.
Numa linha de
contiguidade, desenvolve-se o fulcro
da reflexão heideggeriana centrado
no ser, na verdade e na linguagem.
O homem, no fundo, habita na verdade
do ser. A linguagem não pode ser vista
como uma construção humana de sinais
convencionais; a linguagem é a casa
do ser. Martin Heidegger percorre
em viagem iniciática os mistérios
da linguagem humana e faculta-lhe
um sentido ontológico (principalmente
em A caminho da linguagem, Unterwegs
zur Sprache, Pfullingen, 1959).
Na esteira de
Heidegger podemos afirmar que a língua
é porta do ser, percepção do mundo,
meio privilegiado de apropriação do
real, instrumento de inserção no mundo
e veículo de construção interior.
Quando Aristóteles,
na Política (1253a) caracteriza
o homem como sendo «o único que tem
fala de entre os animais» (l o g o n d e m o n o n a n q r w p o V e c e i t w n z w w n ), inicia-nos no percurso de pensamento
que o título desta nótula apresenta.
É pela palavra
que nos conhecemos e conhecemos o
mundo. É pela palavra que reflectimos
sobre a palavra e sobre o seu valor.
É pela palavra, enfim, que se inicia
o sortilégio, o encanto e o mistério
que é o uso e o conhecimento da língua.
Ao cogitarmos sobre a palavra, assoma-nos
à mente a sua função face à realidade
e ao mundo que é «uma proposta muda
para que falada exista», no verbo
de Vergílio Ferreira em Invocação
ao meu corpo.
A língua é algo
de íntimo que a palavra molda e metamorfoseia
na nossa alma e, por isso, é pátria
mas também espírito que conhece e
se conhece na interacção sortílega
entre a linguagem, a língua e o verbo.
Se por um lado
a linguagem é uma cadeia de sons articulados,
marcas escritas ou gestos, quanto
ao seu revestimento material, por
outro, num ângulo relativo à sua génese,
concluímos que é a faculdade do homem
de criar símbolos.
A linguagem, num
sentido próprio, consiste em que o
homem se manifesta e comunica, de
acordo com Herculano de Carvalho.
Inserida nas actividades
culturais, entendendo nós que a cultura
é todo o conjunto de actividades que
são realizadas pelo homem como membro
de uma comunidade, a linguagem deve
ser enquadrada no processo a que pertence.
Para isso, é necessário
reflectir sobre as suas finalidades
e o seu modo de realização.
Antes de mais,
recordemos que a Linguística é a ciência
que se debruça sobre a linguagem verbal,
constituindo o seu objecto material.
O adjectivo deixa
adivinhar que há vários aspectos da
linguagem.
A linguagem verbal
é intencional e a Linguística encara-a
como uma actividade comunicativa,
como um conjunto de sinais que estão
orientados para cumprir funções de
ordem comunicativa, o que significa
que estes sinais podem estar ao serviço
de outras finalidades.
A primeira grande
finalidade dos sinais linguísticos
é a de realizar conhecimento, saber
e comunicação. A linguagem é o veículo
do conhecimento, é a forma por excelência
de organizar cognitivamente o mundo.
A actividade verbal
é sobretudo social, dialógica, implica
interlocutores, indivíduos que desempenham
as funções de emissor e receptor estabelecendo
contactos, ligações entre os homens.
Se a linguagem
verbal é a linguagem básica, a forma
de saber, de comunicar, então, é o
fundamento da própria sociedade porque
é através do acto de comunicação que
se podem desenhar os objectivos a
seguir.
Na década de 60,
a chamada «escola soviética de semiótica»
e principalmente o professor da Universidade
de Tartu, Jurij Lotman, reformulando
pressupostos teóricos do Formalismo
Russo, de Peirce, Saussure e Charles
Morris, traz a lume novas ideias relativas
às modernas ciências humanas.
Em 1962, surge
o conceito de sistema modelizante
do mundo. «Por sistema modelizante»,
escreve Lotman,«entendemos o conjunto
estruturado dos elementos e das regras;
tal sistema encontra-se em relação
de analogia com o conjunto dos objectos
no plano do conhecimento, da tomada
de consciência e da actividade normativa.
Por isso, um sistema modelizante pode
ser considerado uma língua». Lotman
pretende dizer que os sistemas modelizantes
permitem ao homem uma «organização
estrutural com funções gnoseológicas
comunicativas e pragmáticas do mundo
circundante» como nos diz Aguiar e
Silva.
A cultura torna-se
assim num gerador de estruturalidade
e um feixe de sistemas semióticos.
De acordo com
a denominada «hipótese de Sapir-Whorf»,
a representação do mundo e a cultura
de uma comunidade são organizadas
em estreita união com a língua dessa
comunidade. Assim, se tivermos em
mente os termos humboldtianos, a língua
não é uma Weltbild mas uma Weltansicht,
ou seja, não é uma imagem do mundo
mas uma visão do mundo.
A língua natural
é o sistema semiótico universal, uma
função primordial, logo, as línguas
naturais são chamados sistemas modelizantes
primários.
Aguiar e Silva
(1) define sistema semiótico como
«uma série finita de signos interdependentes
entre os quais, através de regras,
se podem estabelecer relações e operações
combinatórias, de modo a produzir-se
semiose» que Charles Morris define
de uma forma muito lata como «o processo
no qual alguma coisa funciona como
um sinal».
Como constatámos,
a necessidade de comunicar liga-se
intimamente à condição social do homem,
a um impulso irreprimível de estabelecer
intercâmbio, de se relacionar.
O ser humano é
levado a comunicar, a transmitir o
que pensa, sente e conhece como afirma
Herculano de Carvalho: «...comunicar
também indirectamente significa estabelecer
comunidade; que os homens realizam
comunidade pelo facto mesmo de que
uns com os outros comunicam».(2)
Para satisfazer
essa necessidade, o homem pode utilizar
vários processos, por exemplo, qualquer
uma das formas de arte mas se a arte
é, sem dúvida, um veículo da comunicação
humana, não é aquele que realiza essa
função de um modo mais completo e
eficaz.
Assim, o homem
possui a actividade da linguagem,
realizando através dela o que denominamos
de comunicação linguística.
Martinet diz-nos
que «a função essencial do instrumento
que é a língua é a da comunicação».
Para comunicar,
o homem utiliza essencialmente a linguagem,
o sistema de comunicação mais rico
e maleável que conhecemos.
A linguagem, de
acordo com a definição de Benveniste
é um sistema de signos socializado
e, de facto, é um fenómeno cultural,
não é inata, foi-nos ensinada.
O fenómeno da
comunicação liga-se em absoluto à
feição social do homem.
Se a língua é o
principal sistema de comunicação entre
os homens não podemos esquecer que
a cultura é a soma dos reportórios
dos comportamentos codificados, realizados
e interpretados pelos membros da organização
social em situações comunicativas,
como diz Trager o
que equivale a dizer que cultura é
igual a comunicação.
Devemos ainda
ter em mente que a comunicação é um
sistema de códigos interdependentes
transmissíveis através de canais influenciáveis
com base sensorial na linha do que
afirma BirdWhistell.
Assim, verdadeiramente,
uma língua é uma pátria, uma percepção
do mundo tal como a palavra «é a marca
da personalidade, do país natal, e
da nação, o título de nobreza da humanidade.
O desenvolvimento da linguagem está
tão inextrincavelmente ligado ao da
personalidade de cada indivíduo, do
país natal, da nação, da humanidade,
da própria vida, que podemos perguntar
se ele não será um simples reflexo
ou se não é tudo isso: a própria fonte
do seu desenvolvimento», para recordarmos
Louis Hjelmslev.(3)
O encanto da língua
ganha matizes sem par quando no curso
elocutório mais singelo do nosso quotidiano
entabulamos um qualquer exercício
discursivo no qual ecoa a sua história.
Como sabemos,
a maioria dos vocábulos portugueses
provém do latim mas existem inúmeras
palavras que enriquecem o nosso português
contemporâneo que vieram da língua
grega.
Encetemos então
uma peregrinação em demanda do Grego
Antigo, da construção do Português
Contemporâneo na sua herança, do sortilégio
da língua e da epifania da cultura...
2. A Língua
grega – sinopse histórico-linguística.
O grego é uma
língua indo-europeia. Este grupo ou
família engloba um conjunto algo vasto
de línguas que apresentam traços de
similitude entre elas e que leva a
pensar numa origem comum, uma língua
que sofreu sucessivas alterações e
se particularizou: o Indo-Europeu.
Esta língua é uma hipótese (pois não
existem quaisquer documentos escritos
que a atestem), sendo uma reconstituição
elaborada através do método comparativo
a partir das várias línguas indo-europeias.
Na verdade, a gramática comparativa
nasce deste exercício de comparação
de línguas cognatas (que têm uma origem
comum), principalmente da análise
e estudo do sânscrito, grego e latim,
possibilitando a tese da origem comum.
Em teoria, o Indo-Europeu corresponde
à língua que os povos da Europa Central
até às estepes siberianas utilizaram
cerca de 5.000 a.C.
O Indo-Europeu,
designação do «pai» Franz Bopp, o
emérito estudioso das línguas comparadas,
estende-se hoje, com as suas heranças,
por todos os continentes – na Europa
só não estão incluídas nesta família
o turco, o finlandês, o húngaro e
o basco, para além das línguas esquimós.
A língua grega
integra-se nas ramificações do Indo-Europeu,
todavia, apresenta um fenómeno multímodo:
os textos antigos revelam o seu carácter
dialectal.
De facto, a Grécia
Antiga, no princípio da época histórica,
não conhece uma só língua comum a
todos os gregos. Encontramos vários
falares ou dialectos que ostentam
diferenças significativas, principalmente
no aspecto fonético, traduzindo o
exercício linguístico num exemplo
de diversificação explicada por razões
históricas, cronológicas (vários invasores),
políticas e geográficas.
Existem várias
propostas de classificação e organização
dos dialectos gregos. Citemos o agrupamento
tradicional, aceite de uma forma consensual:
- Jónico-ático,
dividido em ático (falado na Ática)
e jónico (falado na Eubeia, em parte
das Cíclades e no sudoeste da Ásia
Menor;
- Acaico, integrando
o arcádico, o cíprico e o panfílico;
- Eólico, utilizado
na parte setentrional da costa da
Anatólia, em Lesbos, na Tessália,
na Beócia e no noroeste da Ásia
Menor;
- Grupo Ocidental,
compreendendo o dórico (Lacónia,
Messénia, Argos, Creta, Rodes, Cíclades
meridionais, Corinto e suas colónias)
e falares do Noroeste (Epiro, Fócida,
Etólia, Acarnânia, Lócrida).
Esta classificação
conheceu recentemente um reparo que
resulta da necessidade de reunir as
semelhanças evidentes entre o jónico-ático
e o grego acaico e de salientar as
diferenças entre os dois outros grupos.(4)
A estabilidade
e a permanência dos dialectos reflecte
a especificidade do poder político
na Grécia Antiga, estruturado sobre
cidades zelosas da sua soberania administrativa
e cultural.
A partir do séc.
IV a.C., o prestígio do ático acentuou-se
tendo sido iniciado um processo de
absorção dos outros dialectos. Com
a conquista macedónica, cria-se uma
língua para a maioria dos Gregos,
a k o i n h , que será falada como língua de civilização durante o Império Romano
até ao período bizantino.
Factores políticos e culturais farão com que a k o i n h se instale e se inicie de facto o ocaso dialectal. A língua falada
associa-se à língua comum enquanto
que as variantes dialectais sobrevivem
no âmbito literário originando um
fenómeno de diglossia.
Ainda que tenham
conhecido vários senhores como os
Romanos, os Venezianos ou os Turcos,
os Gregos, quando finalmente adquiriram
a sua liberdade (1829), reestruturaram
o seu bem mais precioso, a língua.
Relativamente
à escrita, relembremos que data do
III.º milénio a.C. o seu uso na zona
oriental do Mediterrâneo. Sir Arthur
Evans (iniciou as escavações arqueológicas
em Creta) denominou a primeira escrita
a ser usada na área geográfica grega
de Linear A. Tratava-se de uma escrita
silábica (um signo = uma sílaba),
utilizada de 1750 a 1400 a.C., localizada
quase exclusivamente em Creta e que
ainda não foi decifrada.
Em data incerta,
a partir de 1450 em Creta e de 1275
no continente, muito provavelmente,
o Linear A foi substituído pelo Linear
B, adaptação feita pelos Gregos da
escrita dos Minóicos e que revela
um estádio do Grego arcaico. O Linear
B inclui 88 símbolos que foram decifrados
em 1953 pelo arquitecto inglês M.
Ventris e pelo filólogo J. Chadwick.
Uma última nota para o alfabeto grego. Os caracteres usados pelos Gregos
eram chamados F
o i n i k h i a g r a m m a t a (letras fenícias) pois apresentam muitas
semelhanças com o alfabeto fenício
e é aceitável a tese que defende a
sua origem fenícia.
3. A Língua
Grega, factor de unidade cultural.
Os Gregos, quando
se referiam ao seu país, utilizavam
o topónimo Hélade (E
L L A S / E l l a V ), que deriva de
Heleno (E
L L H N ), o pai mítico que originou as diferentes
veias gregas, chamando-se a si mesmos
Helenos (E L L H N E S / E l l h n e V ).
Tanto o topónimo
Grécia como o etnónimo Gregos têm
uma origem latina (Graecia e Graeci)
e originariamente designavam uma região
e um grupo étnico do litoral do Epiro
até que entraram em Roma, através
dos etruscos, ganhando uma nova dimensão,
ad aeternum.
Apesar de ter conhecido mudanças variadas na pronúncia, ortografia,
morfologia e vocabulário, a língua
grega, através da união conferida
por um só alfabeto, é um verdadeiro
símbolo da unidade helénica. Quando
Platão se refere à aprendizagem da
língua grega no Alcibíades 111 a-d,
não foca a particularidade de um qualquer
dialecto, preferindo apresentar o
t o e l l h n i z e i n , sobre o qual
as diferentes cidades concordam. Mardónio,
antes da realização da segunda expedição
persa, dirige-se a Xerxes caracterizando
os Helenos como fracos no combate
e eternamente debilitados pelos conflitos
internos apesar de terem uma só língua
e não resolverem as suas disputas
pelas palavras e sim pela guerra.
De facto, apesar
da variedade dialectal, podemos referir
como Finley que o grego «remained
astonishingly stable for something
like a thousand years»(5), na linha
do que Heródoto afirmara convictamente
quando opina que os helenos, aparentemente,
parecem usar desde sempre a mesma
língua:
t o d e E l l h n i k o n g l w s s h i m e n , e p e i t e
e
g e n e t o , a i e i k o t e t h i a u t h i d i a c ra t a i ,
w V e m o i k a t a j a i n e t a i e i n a i .
Esta unidade dos
Gregos era sentida também através
dos Poemas Homéricos, principalmente
a Ilíada que narra a expedição de
todos os Aqueus contra Tróia, como
nota Snell.(6) As obras de Homero
eram textos fundamentais na educação
por toda a Grécia Antiga, por vezes,
decorados, como é o caso de Nicérato
no Banquete de Xenofonte (III, 5.6),
para além de constituírem base para
argumentação de toda a ordem.
A união passa
pela língua pelo que os Gregos cedo
se «afastaram» culturalmente dos não-Gregos.
A dicotomia Grego-Bárbaro surge precisamente
como argumento linguístico: Bárbaro
era o que não falava grego. Inicialmente,
o sentido de barbaros liga-se a um
som áspero, rude, ininteligível, que
não é eufónico. Posteriormente, será
a designação do estrangeiro, cuja
fala é comparada, não raras vezes,
ao pipilar da andorinha. Por isto,
concordamos com K. Dover quando afirma
que «what the Greek cities had in
common was their language and the
community of culture which followed
from community of language».(7)
Para além do sentido
de ininteligível, estrangeiro em termos
linguísticos e estrangeiro com valor
inferior, bárbaro significa incivilizado.
O último sentido faz transparecer
a ideia de superioridade de língua
mas sobretudo de hábitos, costumes
e cultura.
Ainda que em Homero
exista nobreza no retrato do Grego
e do não-Grego, é possível identificar
laivos de antipatia pelos Troianos
e seus aliados. Por exemplo, enquanto
que os Aqueus avançam para o combate
com ordem e em silêncio, os seus opositores
fazem um terrível ruído, com gritos
e incitamentos estridentes, sendo,
por isso, comparados a um rebanho
que berra desencontrado ou ao grasnar
das gralhas quando emigram (Ilíada,
III. 1-9 e IV. 422-438). Mais ainda,
um dos povos aliados de Tróia os Cários,
eram chamados sintomaticamente de
barbarophonoi.
Um autor que afirma
sem dúvidas a superioridade natural
dos Gregos é Eurípides. O tragediógrafo
utiliza frequentemente o vocábulo
barbaros com profundo sentido pejorativo
chegando quase a tornar-se insultuoso.
Por vezes, defende-se a inferioridade
moral dos Bárbaros, a supremacia dos
Gregos que nasceram para governar
(e os Bárbaros para obedecer) e um
verdadeiro catálogo de atributos negativos
dos não-Gregos: não respeitam os amigos,
não admiram os mortos que faleceram
heroicamente, são insensatos, impetuosos,
sem moderação, instintivos, regem-se
pela violência e não conhecem a razão,
a justiça e as leis.(8)
Todavia, deve
ser destacado o facto de que os não-Gregos
não eram apenas considerados com sentido
pejorativo. Álcman, Safo e Alceu elogiam
os Lídios, os Egípcios são vistos
como possuidores de poderes relevantes
na medicina nos Poemas Homéricos e
Heródoto destaca algumas imitações
dos Gregos relativamente aos Bárbaros,
para além dos Fenícios que levaram
à Hélade inúmeros conhecimentos, como
o alfabeto. A dicotomia Gregos/Bárbaros
deixará o seu sentido estritamente
linguístico a partir do segundo quartel
do séc. V., passando a a distinguir
quem possui cultura helénica e quem
se encontra fora da sua órbita.
Esta antítese
ganhou um verdadeiro fulcro emocional
quanto toda a Grécia se uniu para
combater os Persas que eram vistos
como um invasor com diferentes valores
e uma séria ameaça à independência.
O teatro grego ajudou a cimentar a
aversão aos Persas, como atestam a
tragédia de Frínico (493?) que se
ocupa da destruição de Mileto ou os
Persas de Ésquilo com cenas comoventes
de dramas familiares, irmãos separados,
deportados, fugidos ou errantes.
Mas o mais importante
(e esta é a ideia que vingará) não
é a língua diferente, o povo ou a
raça, o que interessa é estar integrado
numa cultura, num ideal ou concepção
de existência (como se vê em Isócrates
e mesmo Menandro) não importando que
se seja grego, persa, trácio, judeu
ou romano.(9)
4. O papel
unificador de Homero.
Como tivemos ocasião
de referir, os Poemas Homéricos podem
ser vistos como um verdadeiro indício
da unidade (na diversidade) dos Gregos.
A expedição dos Aqueus contra os Troianos,
chefiada por Agamémnon, rei de Micenas,
indica uma união de cidades e uma
chefia, apesar da pluralidade. De
facto, Vlachos vê neste rei um símbolo
da unidade política ao declarar que
«Agamemnon n’est pas un simple stratège;
il encarne en sa personne et en sa
dynastie l’unité matérielle, morale
et politique d’un ensemble composite,
les Achéens, au sein duquel l’Était
d’Argos joue un role hégemonique inconstestable».(10)
Linguisticamente,
os Poemas Homéricos apresentam formas
de diversas épocas e elementos de
quatro dialectos diferentes (iónico,
eólico e em menor número arcado-cipriota
e ático), constituindo uma língua
artificial que, muito provavelmente,
não foi falada.
Para além do valor
próprio das questões da diversidade
linguística, importa ressaltar a importância
dos Poemas Homéricos como elo de ligação
entre todos os Gregos.
As obras de Homero
eram transmitidas oralmente e ouvidas
com particular atenção em ocasiões
festivas.
No séc. VI a.C.,
um filho do tirano de Atenas, Pisístrato,
ordenou que fossem recitados na íntegra,
no festival das Panateneias. Podem
ser ouvidos em concursos, como nos
dizem Heraclito e Platão, são aprendidos
nas escolas, diz-nos Xenófanes e prova-o
Xenofonte, pelo que Homero é visto
por Platão na sua República como o
educador da Grécia:
-
Por conseguinte, Gláucon - disse eu - se algum dia encontrares encomiastas de
Homero, que te afirmem que esse poeta
foi o educador da Grécia e que, no
que toca a administração e educação
humana, é digno de ser tomado como
modelo para aprender com ele e regular
toda a vida segundo as normas deste
poeta, deveremos beijá-los e saudá-los
como as melhores pessoas que é possível,
e concordar que Homero é o maior dos
poetas e o primeiro dos tragediógrafos,
mas convém saber que, em matéria de
poesia, só se devem admitir na cidade
hinos aos deuses e encómios aos varões
honestos; pois, se se receber a Musa
graciosa, quer a lírica, quer a épica,
governar-nos-ão na cidade o prazer
e a dor, em vez da lei e do princípio
que o Estado reconhece ser sempre
o melhor.
República,
66 e-607 a
Estrabão considerava
Homero mestre de todos, incluindo
em geografia, Pausânias fala dele
como a maior autoridade em qualquer
assunto e a partir dos Sofistas, a
Ilíada e a Odisseia são vistas como
uma espécie de enciclopédia. Podemos,
de facto, concordar com a ideia de
que os Poemas Homéricos abrangem inúmeros
domínios: religião, poesia (são heranças
para o género épico os epítetos, os
símiles, a apóstrofe, a narrativa
in medias res, precedida da proposição
e invocação), língua (os vocábulos
e expressões homéricas podem encontrar-se
nos mais variados autores) e acima
de tudo, costumes e ideias (respeito
pela súplica, hospitalidade, sacrifício,
coragem).
Homero, funcionando
como paradigma, uniu as almas dos
Gregos, ultrapassando barreiras linguísticas
e cimentando a coesão cultural e espiritual.
5. A palavra
e o pensamento.
Existe um conjunto
de vocábulos gregos, que hoje conhecemos
na íntegra ou incorporados em palavras
portuguesas, que cristalizaram um
pouco da ideia do mundo que os Helenos
possuíam e que nós ainda utilizamos.
Elegemos as mais relevantes:
a)
s
o
j i a , s o j o V , s o j i s t h V
Presente nos vocábulos
portugueses filósofo ou teosofia,
a palavra s
o j i a aparece na Ilíada uma só vez num símile
que caracteriza a perícia e habilidade
de um homem que talha a quilha de
um navio depois de receber inspiração
da deusa Atena (XV. 410-413).
Em Xenófanes,
significa arte poética ou sabedoria,
como em Sólon, evoluindo para uma
mistura entre experiência e capacidade
intelectual.
Aristóteles, na
Ética a Nicómaco, fala da s o j i a dos artistas como produto do n o u V («entendimento») e e p i s t h m h («saber»).
O sábio desde muito
cedo foi chamado de s o j o V . Uma tradição tardia (Diodoro Sículo, Diógenes Laércio, Plutarco,
Lâmblico, Cícero, Valério Máximo,
Lactâncio, Santo Agostinho) defende
que Pitágoras escolheu para si, pela
primeira vez, o termo j i l o s o j o V («amigo da sabedoria»).
Os Sofistas escolhem
esta palavra para se designarem (sábio)
criando o descrédito do vocábulo.
Assim, Platão fala dos Pitagóricos
como s o j o i mas não dos Sofistas.
b) y u
c h
As palavras psicanálise,
psicologia ou psiquiatria têm origem
nesta forma grega.
Começa por designar
a própria vida em Homero e Hesíodo,
evoluindo para o sentido de «alma»
em Xenófanes (referindo-se a Pitágoras)
e Anacreonte. Neste fio evolutivo,
ficou cristalizada em metáfora de
cocheiro, no mito de Fedro, de Platão:
Ó
jovem de olhar virginal,
eu
te busco, mas tu não atendes,
sem
saberes que da minha alma
deténs
as rédeas.
c) k o
s m o V
Em Português,
utilizamos as palavras cosmos, cosmonauta
ou cosmologia mas na origem grega,
como nos textos de Homero, o vocábulo
começa por designar um adereço ou
enfeite e também ordem.
Píndaro usa a
palavra com o significado de «adereço
moral» ou «honra» e Heródoto de «ordenação
do Estado» (I. 65).
O sentido «ordem
do mundo» aparece, pela primeira vez,
no Górgias, 508a:
É por isso que
eles chamam a este universo kosmos
(«ordem mundial»), meu amigo, e não
akosmia («desordem mundial»).
Mais tarde, uma
evolução semântica fez com que Kosmos
assimilasse as noções de céu (o
u r a n o V ), o todo (t
o p a n ) e o conjunto (t o o l o n , t a o l a ).
Esta noção começa
em Heraclito e Empédocles e evolui
com Pitágoras e Parménides. Célebre
é a frase de Demócrito: «O homem é
um pequeno universo» (m
i k r o V k o s m o V ).
d) l o
g o V
A raíz dos vocábulos
logótipo e logorreia, ou seja, «palavra»,
começa com uma bimembração semântica
relativa ao verbo l e g e i n (no grego clássico «dizer»):
|
contar
|
|
|
|
|
|
|
|
enumerar
|
conta
|
|
|
|
|
|
narrar
|
|
|
|
cálculo
|
|
|
|
|
|
|
|
|
reflexão
|
|
|
|
|
|
|
|
|
discussão
|
|
|
|
|
|
|
|
|
argumentação
|
Na Ilíada, Pátroclo distraía o ferido Eurípilo com os seus l o g o i (XV), na Odisseia, Calipso seduz Ulisses com l o g o i doces pelo que a palavra oscila entre o significado de «narrativa»
e «argumentos».
O sentido de «palavra»
talvez deva ser associado já ao uso
que faz Anaxágoras se bem que a tradição
aponta Aristóteles como seu «criador».
O sentido de «discurso»
surge, pelo menos, em Górgias quando
o célebre sofista pronunciou a sua
frase emblemática:
Nunca me falta
assunto no logos.
A palavra acabará
por designar prosa por oposição ao
verso, facto documentado já em Isócrates,
a partir do séc. IV a.C.
6. Do Grego ao Português -
Língua e Cultura.
A herança clássica
é uma luz perene em toda a civilização
ocidental, desde a língua até ao pensamento,
das artes ao discurso, numa palavra,
a cultura moderna está animada pela
cultura greco-latina.
A Língua e a Cultura
Portuguesa estão enformadas pela presença
clássica. A perenidade das marcas
romanas é incontestável, ou não fosse
o nosso país caracterizado pela permanência
latina e seus variados frutos na arte
e na língua. A Romanização legou-nos
o seu bem mais precioso, o latim,
metamorfoseado pelos séculos no Português,
língua novilatina.
A notória presença
latina impede-nos frequentemente de
discernir de uma forma clara um outro
conjunto de heranças que, mais ou
menos diluídas, constituem marcas
indeléveis e de significado cultural
muito profundo da Cultura Grega e
da excelsa língua helénica.
Como compreender
a Antígona de António Pedro sem Sófocles
ou os Encantos de Medeia de António
José da Silva sem o original de Eurípides?
Como compreender clássicos e modernos,
de Camões a Augusto Gil, de António
Ferreira a Ricardo Reis, Eugénio de
Andrade ou Sophia de Mello Breyner
Andresen, sem conhecer a cultura clássica
e mais concretamente nestes autores
sem conhecer a herança grega?
A cultura greco-latina
e o seu conhecimento são um verdadeiro
pilar para o saber. Recordemos um
episódio elucidativo. Quando Jorge
de Sena no segundo volume de Poesia
de 26 Séculos, escreveu a propósito
dos versos «Para mim mesmo ergui,
não com as mãos, monumento... / Não
morrerei de todo...» de Pushkin, que
constituem «uma das mais orgulhosas
e arrogantes proclamações de genialidade
que um grande poeta escreveu», suscitou
o seguinte comentário em tom irónico
de Vergílio Ferreira, Conta Corrente
I, p. 129: «Ora isto, meu caro Sena,
é o Monumentum exegi aere perenius
... / Non omnis moriar... de Horácio».
Com efeito, a
formação do homem passa necessariamente
pela cultura, ideia que a célebre
metáfora de Cícero consagrou:
ut
ager, quamuis fertilis,
sine cultura fructuosus
esse non potest, sic sine
doctrina animus... cultura
autem animi philosophia
est.
Tusculanas,II.
5.13.
A cultura moderna
continua a reflectir a influência
clássica. Por exemplo, são extremamente
numerosas as palavras e expressões
da linguagem comum, para além da língua
literária, que encontram a sua origem
na cultura greco-latina. Seleccionemos
apenas os mais correntes, a maioria
herdada da mitologia grega:
Pomo da discórdia.
«O motivo do conflito
ou da disputa»
A deusa Éris,
ou Discórdia para os Romanos, ressentida
pelo facto de não ter sido convidada
para as bodas de Peleu e Tétis, colocou
sobre a mesa do banquete onde estavam
as deusas Hera, Atena e Afrodite uma
maçã com a seguinte mensagem «Para
a mais bela». Gerou-se a discórdia.
Por ordem de Zeus, Páris foi escolhido
para resolver a questão. Hera aliciou-o
com o domínio de toda a Ásia, Atena
com a sabedoria e a vitória em todas
as batalhas e Afrodite ofereceu o
amor de Helena de Esparta, que Páris
escolheu e viria a levar para Tróia,
originando a histórica guerra entre
Gregos e Troianos.
Bela como Helena.
Helena de Tróia,
a mulher mais bela da Hélade. Raptada
por Páris, originou a Guerra de Tróia.
Belo como Adónis
ou ser um Adónis.
Jovem de grande
beleza, protegido por Afrodite. Daí
o verbo adonisar, «tornar galante»,
«enfeitar-se» ou «tornar-se presumido».
Ser um apolo.
Do deus Apolo,
representado como belo e forte.
Ser uma Cassandra
ou fazer de Cassandra.
«Anunciar ou profetizar
desgraças». Cassandra, filha de Príamo
e Hécuba, tinha o dom da profecia
como atestam os exemplos da vinda
para Tróia de Páris, que provocou
a ruína da cidade. Opôs-se veementemente
à entrada do Cavalo de Madeira na
cidade mas ninguém a ouviu.
Levar uma vida
de sibarita.
«Ter uma vida
de luxo e prazer». Os Sibaritas eram
os habitantes da cidade de Síbaris,
cidade fundada por gregos ao sul da
Itália, notável pela sua opulência.
Trabalhos ciclópicos.
«Trabalhos gigantescos,
de elevada dificuldade». Os Ciclopes
eram gigantes de uma força colossal.
Na Odisseia, encontramos o temível
Polifemo.
Esforço titânico.
Os Titâs, de força
inimaginável, eram filhos de Urano
e Geia. Expulsos pelo pai, regressarão
ao poder até chegar Zeus, que os vence
em combate. O Romantismo explorará
a faceta da rebeldia titânica configurando
os seus heróis como altivos e desafiadores.
Trabalhos de Hércules.
Os seus 12 trabalhos
são façanhas tremendas: matou o leão
de Nemeia, a hidra de Lerna; capturou
o javali de Erimanto, a corça de Cerineia;
matou os pássaros do Lago Estínfalo,
limpou os estábulos do rei Augias,
capturou o Minotauro, domou as éguas
de Diomedes (a quem matou), conquistou
o cinto da rainha das Amazonas, Hipólita;
recolheu os rebanhos de Gérion; capturou
o cão Cérbero, guarda dos Infernos,
e colheu as Maçãs de Ouro do jardim
das Hespérides.
Teia de Penélope
ou fiel como Penélope.
Esposa de Ulisses.
Enquanto o marido combatia em Tróia,
foi assediada por pretendentes. Para
os aplacar, prometeu escolher um quando
terminasse de tecer a mortalha de
Laertes (pai de Ulisses) que tecia
de dia e desfazia à noite. Esperou
fielmente pelo marido durante 20 anos,
que regressou e massacrou os pretendentes.
Ser sábio como
Nestor.
É o símbolo da
prudência e sabedoria. O ancião de
Pilos, na Ilíada, é conhecido pelos
seus conselhos aos guerreiros.
Ser um beócio.
Ser pouco inteligente.
Os Beócios habitavam o centro da Grécia.
Rui Barbosa utilizava a expressão
«os beócios deste país» (Brasil).
Ser um Édipo.
Édipo decifrou
o enigma da Esfinge. Uma «tertúlia
edípica» dedica-se à resolução de
enigmas.
Passar entre Cila
e Caríbdis.
Monstros marinhos
do estreito de Messina. Ultrapassá-los
é símbolo de coragem pois são dificuldades
tremendas.
Cavalo de Tróia.
Representa o engenho
do seu criador Ulisses mas simboliza
a traição.
Olhar esfíngico.
A esfinge tinha
um olhar misterioso, enigmático.
Olhar de lince.
Linceu, da expedição
dos Argonautas, é conhecido pelo olhar
penetrante (mesmo através de paredes).
Olhar de Argos.
«Ver tudo». Argos
tinha inúmeros olhos. Vigiou Io de
Zeus, por ciúmes de Hera.
Ser anfitrião
e ser um sósia.
Da peça de teatro
Anfitrião de Plauto, tornam-se substantivos:
«o que recebe bem em casa» e «pessoa
muito parecida».
Enamorada de Alcmena,
mulher de Anfitrião, Júpiter assumiu
as suas feições para a cortejar; Mercúrio,
companheiro de aventura de Júpiter,
assumiu as feições do escravo Sósia.
Ter um olhar de
Medusa.
«Olhar que petrifica».
Medusa, Górgona terrível, morta por
Perseu, tinha serpentes em vez de
cabelos e tudo o que olhava transformava-se
em pedra.
Um labirinto.
«Uma questão intrincada
sem saída aparente». Recorde-se o
labirinto de Creta, onde estava encerrado
o Minotauro, morto por Teseu, que
conseguiu fugir usando um fio dado
por Ariadne.
Ser um dédalo.
Dédalo construiu
o labirinto. Simboliza o engenho e
a habilidade.
Ser uma megera.
«Mãe ou mulher
cruel»
Megera era uma
das três Fúrias.
Encantos de Circe.
Circe, feiticeira
poderosa, transformou os companheiros
de Ulisses em porcos.
Encantos de Medeia.
Feiticeira que
se apaixonou por Jasão.
Ser um ícaro ou
fazer uma tentativa icária.
Ícaro, filho de
Dédalo, voou demasiado alto, até ao
Sol, que derreteu a cera das duas
asas. Atrevido, fracassou.
Barca de Caronte.
As almas dos mortos
viajavam nesta barca até ao Hades.
Calcanhar de Aquiles.
Aquiles fora banhado
nas águas do rio Estige pela mãe Tétis,
o que o tornou invulnerável excepto
no sítio onde a deusa lhe pegou. Aí
acertou a seta disparada por Páris
na Guerra de Tróia, provocando a sua
morte através do seu único ponto fraco.
Canto das sereias.
Atraíam até à
perdição os marinheiros incautos.
Um nó górdio.
Existia em Górdio,
cidade da Frígia, um nó que ninguém
desfazia. Um oráculo disse a Alexandre
Magno que quem o desatasse seria o
dominador da Ásia. Cortou-o com a
espada.
Educação espartana.
Alusão à rígida
educação na cidade de Esparta, plena
de austeridade e sobriedade.
Espada de Dâmocles.
Símbolo do perigo
iminente. Cortesão de Dionísio I,
de Siracusa, durante um banquete,
Dâmocles viu ser-lhe colocada por
cima da sua cabeça uma espada presa
por uma crina de cavalo. Pretendia
o tirano fazer ver o sobressalto constante
da vida dos grandes.
Ficar para as
calendas gregas.
Ou em linguagem
mais prosaica, «para o dia de São
Nunca». O primeiro dia de cada mês,
para os Romanos. Os Gregos não tinham
calendas.
Lei draconiana.
De Drácon, legislador
ateniense do séc. VII a.C., caracterizado
pela sua severidade.
Pedra de Sísifo.
Impiedoso e cruel,
foi castigado a rolar eternamente
um rochedo nos Infernos como castigo
interminável.
Ser narcisista.
Narciso, jovem
belo que desprezava o amor de todas
as ninfas, foi castigado por Némesis:
olhando para a sua imagem reflectida
numa fonte, apaixonou-se por si próprio.
O seu amor consumiu-o até à morte.
Onde morreu, nasceu a flor que ostenta
o seu nome.
Ser como Creso.
Rei da Lídia (560
a.C. e 546 a.C.) famoso pela sua colossal
riqueza.
Suplício de Tântalo.
Foi castigado
com a sede e a fome eternas: mergulhado
em água até ao pescoço, ela foge se
quer beber; sobre ele pende um ramo
com frutos que se afasta quando Tântalo
os quer agarrar.
Tomar a nuvem
por Juno.
Esposa de Júpiter.
Para a proteger de Ixíon que a atacou,
o pai dos deuses modelou uma nuvem
com a sua forma, enganando o seu perseguidor.
As expressões
que citámos são exemplos vivos da
mundividência greco-latina que ainda
hoje anima a cultura e a língua portuguesa.
Muitas outras expressões atestam essa
influência duradoura.
No caso das heranças
gregas, destaquemos o papel da Psicanálise
que recuperou inúmeros mitos (Complexo
de Édipo, Complexo de Electra, Complexo
de Zeus, Complexo de Prometeu, Complexo
de Narciso, Complexo de Fedra, Complexo
de Faetonte, etc.).
São também gregas
as palavras democracia ou pedagogo.
De acordo com Forrest e Ehrenberg,
o vocábulo democracia terá surgido
por volta do Século V e na sua composição
encontramos dêmo e Krat (referente
a Kratos, «força» ou «soberania»).
De forma semelhante encontramos aristocracia,
regime dominado pelos aristoi, «os
melhores» de acordo com a noção social,
e de plutocracia, regime em que a
riqueza dita o acesso ao poder. Segundo
o próprio vocábulo, democracia é o
«governo pelo dêmos», o povo. Um dos
problemas que encontramos após a análise
etimológica ou linguística é definir
exactamente o que era o dêmos na ilustre
democracia ateniense do séc. V pois
podia significar «os cidadãos no seu
conjunto» ou «os pobres, dentre os
cidadãos» como afirma Eutidemo quando
dialoga com Sócrates sobre a democracia
(como nos mostra Xenofonte num passo
da sua obra Memoráveis). Quanto ao
pedagogo, era o escravo que acompanhava
as crianças às aulas de música, ginástica
ou das primeiras letras.
Sempre que um
qualquer vulto é esquecido ou afastado,
utilizamos a expressão «foi votado
ao ostracismo».
Trata-se de outra
herança da vida política grega. Depois
de Clístenes ter instalado a democracia
em Atenas em 508 a.C., foi criada
uma lei que permitia à Assembleia
afastar qualquer cidadão que pretendesse
instalar um regime pessoal ou tirânico.
Os cidadãos escreviam o nome do indesejado
em cacos de cerâmica, os ostraka,
votando-o ao ostracismo, ao exílio,
por 10 anos. Mégades, Temístocles,
Aristides, Címon e o próprio Péricles
sofreram essa pena. Quando regressaram,
estavam esquecidos, daí o sentido
que hoje encontramos na língua portuguesa.
Um vocábulo curioso
não muito utilizado em Português é
sicofanta. Significando «patife» ou
«impostor», quase se esquece o sentido
inicial. Em Atenas, existia uma lei
que proibia a exportação de figos,
produto básico na alimentação grega.
Todavia, tentava-se a exportação clandestina.
Quem prevaricasse, via a sua carga
apreendida e, se fosse uma denúncia,
o seu autor recebia metade, tal como
o Estado. Daí surgirem os sicofantas,
«descobridores de figos» (j
h m i , «dizer, nomear»
e s
u k o n , «figo») ou seja, delatores. Deste sentido
negativo, o vocábulo atingiu uma dimensão
semântica ainda mais profunda, resultando
no significado de «malandro».
Ainda que o aforismo
«graecum est, non legitur» («é grego,
não se lê!») se tenha perpetuado ao
lado de autores que consideram restrita
a implantação do Grego na cultura
portuguesa, como Carlos Eugénio Paço
d’Arcos que chega mesmo a afirmar:
«o grego não pegou em Portugal»(11),
é grandiosa a herança. Antenor Nascentes,
no seu Dicionário Etimológico, avaliou
o número de vocábulos da Língua Portuguesa
distribuindo-os segundo as categorias:
Vocábulos da Língua
Portuguesa - 140.000
Arcaísmos, provincianismos
e exotismos no Brasil, África e Oceânia
- 40.000
Palavras de origem
europeia - 2.083
Palavras de origem
asiática - 949
Palavras de origem
africana - 47
Palavras de origem
americana - 102
Palavras de línguas
oceânicas - 37
Palavras de origem
latina - 80.703
Palavras de origem
grega - 16.079.
Assim, a língua
grega é um fundamento basilar do Português,
tanto em quantidade como em qualidade!
Desde o estudo
de Antenor Nascentes, a nossa língua
foi enriquecida com inúmeros helenismos
por via erudita.
Porém, a maioria
dos vocábulos gregos evoluiu para
a nossa língua por via popular: (12)
a) -
ou vieram por intermédio do latim
vulgar:
abantesma (fantasma)
< j
a
n t a s m a , visão, fantasma,
espectro;
adega e bodega
(botica) < a p o J h k h , depósito, armazém;
amêndoa (amígdala) < a
m
u g d a l h , amêndoa;
espada < s
p a q h , espátula, vara, espada;
gesso < g
u y o V , gesso, etc.
b) -
ou entraram por mediação arábica:
alambique -
ár. al-ambic < a
m b i x , janela;
quilate -
ár. quirat < k
e r a t i o n , casca;
tremoço -
ár. termuç < q
e r m o V , tremoço, etc.
c) - ou então provieram
directamente do grego, segundo se
supõe, por intermédio das línguas
românicas:
botica < a
p o J h k h , (influência do
francês);
farol < j
a r o V , véu, manto (influência do espanhol);
guitarra < k
i J a r a , cítara (influência espanhola ou italiana);
tapiz < t a p h t i o n , pequeno tapete (influência do francês).
Quanto à alínea
a) devemos ainda citar as palavras
que chegaram através do latim eclesiástico,
nos primeiros séculos do Cristianismo.
Eis alguns exemplos:
anjo < a
g g e l o V
arcebispo <
a r
c i e p i s k o p o V
bispo < e p i V k o p o V
cónego < k a n w n i k o V
evangelho < e u
a g g e l i o n
mosteiro < m o n a s t e r i o n
palavra <
p a r a b o l h .
Não obstante,
a grande parte das raízes gregas encontra-se
em vocábulos de carácter científico
que se referem a seres, fenómenos
ou conceitos científicos (de física,
química, biologia, medicina e cirurgia,
geografia, mineralogia, etc.) e que
ainda nos tempos modernos conheceram
novas criações na ciência e técnica
que apresentam a mesma origem helénica.
Os citados vocábulos
são inúmeros pelo que apenas seleccionámos
um conjunto representativo:
A
i
m
a , a t o V , sangue (hema-,
hemat(o)-, hemac-):
hemácia, hematina,
hematocarpo, hematóide, hematologia,
hematosar, hematose, hematosina, hematozoário,
etc.
A
n
h
r , a n d r o V , homem, varão (andr(o)-):
androceu, poliandra,
andrógino, poliandro, poliândrico,
etc.
A n
J
o V , o u V , flor (anth- <
anto-):
antologia, antologista,
antólogo, antomania, etc.
A n
J
r w p o V , o u , homem (anthropo- < antropo-):
antropologia,
antropóide, pitecantropo, antropopiteco,
misantropo, filantropo, antropófago,
antropofagia, antropocêntrico, antropófobo,
antropogénese, antropografia, antropolatria,
antropólatra, antropólito, antropólogo,
antropomancia, antropometria, antroponímia,
antroposofia, antropoteísmo, antropoterapia,
antropozóico, teofilantropia, etc.
B
a
r
o V , o u V , peso (baro-):
barógrafo, barologia,
barómetro, barometrografia, etc.
B i
b
l o V , o u ou b i b l o n , o u , - livro (bibl(o)-, biblio-):
Bíblia, bibliátrica,
bibliófilo, bibliografia, bibliologia,
bibliomancia, bibliomania, bibliónimo,
bibliopola, biblioteca, biblioteconomia,
biblística, etc.
B
i
o
V , o u , vida (-bio-):
biologia, biótipo,
biotipologia, anfíbio, etc.
G
a
m
e w , casar, reproduzir-se (-gam(e)-):
agamia, agâmico,
âgamo, endogamia, poligamia, bigamia,
fanerogâmica, criptogâmica, etc.
G
h
,
g h V , terra (ge-, ge(o)-):
apogeu, geocêntrico,
geocinético, geodesia, geodinâmica,
geogenia, geografia, geognosia, geodesiografia,
geologia, geólogo, geomancia, geometria,
geomorfologia, georama, geostática,
geotectónica, geotermia, geotropismo,
etc.
D
e
u
t e r o V , a , o n , segundo (deutero-):
deuterogamia,
deuterógamo, deuteronómio, etc.
D
u
n
a m i V , e w V , força (-dinam(i)-):
díname, dinamia,
dinâmico, dinamismo, dinamite, dinamizar,
dínamo, dinamógrafo, dinamómetro,
etc.
E
n
d
o n , dentro (endo-):
endoblasto, endocárdio,
endocardite, endocarpo, endocéfalo,
endocélio, endocrânio, endócrino,
endoderma, endófito, endogamia, endogenia,
endogénese, endógeno, endoparasito,
endopleura, endoscopia, endoscópio,
endosfera, endosmose, endosperma,
endósporo, endóstoma, endotérmico,
etc.
H p
a
r , a t o V , fígado (hepat(o)-):
hepatal, hepatalgia,
hepático, hepatismo, hepatite, hepatização,
hépato, hepatografia, hepatologia,
etc.
Z
w
n
h , h V , cinto, cinturão (zon(a)-):
zona, zonado,
zonal, zonar, zonária, zoniforme,
zonífugo, zonípeto, etc.
Z
w
o
n , o u , animal (zoo-):
zoóbio, zoobiologia,
zoocarpo, zoodinâmica, zoocina, zoodomácia,
zooelectricidade, zooética, zoofagia,
zoófago, zoofilia, zoófito, zoofobia,
zoogenia, zoogeografia, zoogleia,
zoogonia, zoógono, zoólatra, zoólito,
zoologia, zoomorfia, etc.
H
l
i
o V , o u , sol (helio-):
heliocêntrico,
heliocromia, heliofilia, heliofobia,
heliografia, heliogravura, heliómetro,
helioplastia, helioscopia, heliose,
heliostático, helióstato, heliotipia,
heliotropia, heliotrópico, heliotropismo,
etc.
H
m
e
r a , a V , dia (-hermer(a)-):
hemeralogia, hemeródromo,
hemerologia, hemerológico, hemeroteca,
efémero, efemérides, efemeridade,
etc.
H
m
i
-, meio (hemi-):
hemialgia, hemiciclo,
hemicrania, hemíono, hemiopia, hemiplegia,
hemíptero, hemisfera, etc.
Q
e
o
V , o u , deus (theo- < te(o)-):
teísmo, teísta,
teocracia, teodiceia, teófago, teofania,
teofilantropia, teofobia, teogonia,
teologia, teologismo, teólogo, teomancia,
teomita, teomante, teomitologia, teopsia,
etc.
I
e
r
o V , a , o n , sagrado (hier(o)-):
hierático, hierodrama,
hierodulo, hierofanta, hierografia,
hierologia, hierólogo, hieromaníaco,
etc.
I
c
q
u V , u o V , peixe (ichthyo-
< ictio-):
ictíaco, ictíico,
ictiocola, ictiofagia, ictiografia,
ictiógrafo, ictióide, ictiólito, ictiomancia,
ictiose, ictiossauro, etc.
K
a
k
o V , h , o n , mau (caco-):
cacófato, cacofonia,
cacografia, cacográfico, etc.
K a
l
o V , h , o n , belo (calo-,
cakli-):
califasia, califonia,
caligrafar, caligrafia, calilogia,
etc.
K o
s
m o V , o u , mundo, universo
(-cosm(o)-):
cosmos, cósmico,
cosmogonia, cosmografia, cosmógrafo,
cosmolábio, cosmologia, cosmometria,
cosmonomia, cosmosofia, microcosmo,
etc.
K r
u
p t o V , h , o n , escondido (crypto- < cripto-):
cripta, criptogamia,
criptogâmico, criptografia, criptograma,
criptogramista, criptónimo, etc.
L
i
J
o V , o u , pedra (litho- < lito):
litocarpo, litóclase,
litocola, litografia, litófago, litofania,
litófilo, litogenesia, litoglifia,
litóide, litologia, litosfera, litosperma,
litotomia, litótomo, etc.
M
a
n
t i V , e w V , adivinho (-mante)
M a
n
t e i a , a V , adivinhação (-mancia):
cartomancia, cartomante,
quiromancia, quiromante, nigromante,
hidromante, teomancia, antropomancia,
bibliomancia, geomante, geomancia,
etc.
M
e
g
a V , m e g a l h , m e l a , grande (mega-, negal(o)):
megalegoria, megalítico,
megálito, megalografia, megalomania,
megalossauro, megascópio, megatério,
etc.
M
e
t
r o n , o u , medida (-metro-):
métrico, metrografia,
metrologia, metrologista, metromania,
metrónomo, metrópole, metropolita,
cronometria, hidrometria, geometria,
etc.
M
u
J
o V , o u , fábula, ficção (mytho- > mito-):
mito, mitografia,
mitógrafo, mitologia, mitólogo, mitomania,
mitonímia, mitonímico, mitómano, etc.
N
e
o
V , a , o n , novo (neo-):
neocatolicismo,
neocéltico, neoclassicismo, neodímio,
neófito, neofobia, neófobo, neógala,
neógamo, neogótico, neogeografia,
neolatino, neolítico, neologia, neologismo,
neoménia, neoplastia, neoplasma, neotenia,
neotérico, neotomismo, neozóico, etc.
X
e
n
o V , h , o n ,estrangeiro (xeno-):
xenofilia, xenófilo,
xenofobismo, xenofonia, xenografia,
xenógrafo, xenomania, xenómano, etc.
X
h
r
o V , a , o n , seco (xero-):
xeroderma, xerofagia,
xerófago, xerofilia, xerófilo, xerofitia,
xerófito, xeroftalmia, xerografia,
xerose, xerotermo, xerotropismo, etc.
O i
n
o V , o u , vinho (eno-):
enofilia, enófilo,
enófobo, enóforo, enografia, enógrafo,
enol, enóleo, enólico, enolina, enolismo,
enologia, enomancia, enomel, enometria,
enotecnia, enotermo, etc.
O
l
i
g o V , h , o n , pouco, pequeno (olig(o)-):
oligarca, oligarquia,
oligoceno, oligóclase, oligoquetas,
etc.
P
a
J
o V , o u V , doença (patho-
> pato-):
patogénese, patogenia,
patognómico, patologia, patológico,
patologista, simpatia, antipatia,
etc.
P
a
i
V , p a i d o V , criança (paed(o)-, ped(o)-):
pedagogia, pedagogo,
pediatria, pedófilo, pedologia, etc.
P o
t
a m o V , o u , rio (potam(o)-):
potamides, potamita,
potamografia, potamologia, potamónimo,
hipopótamo, Mesopotâmia, etc.
P
r
w
t o V , h , o n , primeiro (proto-):
protagonista,
protonauta, protonotário, protoplasma,
protótipo, prototórax, protozoário,
etc.
R
e
w
, correr, (rheo- > reo-; -rhei-
> -rei-):
reóforo, reómetro,
reóstato, reótomo, diarreia, diarreico,
etc.
S
h
m
a , a t o V , sinal, marca
(sema-, semato-):
semafórico, semáforo,
semantema, semântica, sematologia,
polissemia, etc.
S
o
j
o V , h , o n ,sábio (-sopho-
> -sofo-)
S
o
j
i a , a V , sabedoria (-sophia > -sofia):
sofomania, sofómano,
filósofo, filosofia, teosofia, etc.
S t
o
m a , a t o V , boca (estoma-, estomat(o)-):
estoma, estomático,
estomatite, estomatoscópio, estomatologia,
ciclóstomo, etc.
T
o
p
o V , o u , lugar (top(o)-):
topofobia, topografia,
topógrafo, topologia, toponímia, topónimo,
tópico, etc.
U
d
w
r , u d a t o V , água (hydr(o)- > hidr(o)-):
hidratar, hidrato,
hidráulico, hidremia, hídria, hidriatria,
hídrico, hidroavião, hidrosfera, hidrófilo,
hidrofobia, hidrófobo, hidróforo,
hidrogenia, hidrogeologia, hidrognosia,
hidrografia, hidrólatra, hidrólise,
hidrólogo, hidromancia, hidromântico,
hidrometria, hidromia, hidrópata,
hidrópico, hidropírico, hidroplano,
hidrópota, hidrorragia, hidrorreia,
hidroscopia, hidrostática, hidrotecnia,
hidrotérmico, hidrótico, hidrotipia,
hidrúria, hidromedusa, etc.
F
i
l
o V , o u , amigo (philo- > filo-):
filodérmico, filodinastia,
filoginia, filologia, filomatia, filosofia,
filotecnia, filotimia, etc.
C
e
i
r , c e i r o V , mão (cheiro- > chiro- > quiro- ou ciro-):
quirógrafo, quirologia,
quiromancia, quiromante, quirómetro,
quironecta, quiromania, quiróptero,
quirotomia, quirotribia, cirurgia,
cirurgião, cirúrgico, etc.
C
r
o
n o V , o u , tempo (chron(o)-
> cron(o)-):
crónica, cronista,
cronografia, cronógrafo, cronologia,
cronometria, cronómetro, cronónimo,
cronoscópio, etc.
Y
i
t
t a k o V , o u , papagaio (psittac(o)- > psitac(o)-=:
psitácidas, psitacismo,
psítaco, psitacose, psitáculo, etc.
Y u
c
h , h V , alma (psyche- > psiqu(e)-)
(psycho- >
psic(o)-):
psicalgia, psicanálise,
psicofisiologia, psicogenia, psicognosia,
psicografia, psicógrafo, psicologia,
psicólogo, psicometria, psicopata,
psicose, psicoterapia, psiquiatria,
psíquico, psiquismo, etc.
W i
o
n , o u , ovo (oo-):
oobasto, oócito,
oogénese, oogónio, oólito, oologia,
oomancia, ooscopia, oosfera, ooteca,
oótipo, etc.
Para além das
raízes gregas como primeiro elemento
dos vocábulos portugueses, encontramos
ainda prefixos e radicais utilizados
como segundo elemento. Citemos alguns
exemplos em que transliterámos os
caracteres gregos para uma leitura
mais acessível:
RADICAIS
GREGOS
Prefixo
|
Sentido
|
Exemplificação
|
-agogo
-algia
-arca
-arquia
-astenia
-céfalo
-cracia
-doxo
-dromo
-edro
-fagia
-fago
-filia
-fobia
-fobo
-foro
-gamia
-gamo
-géneo
-glota,
-glossa
|
que
conduz
dor
que
comanda
comando,
governo
debilidade
cabeça
poder
que
opina
lugar
para correr
base,
face
acto
de comer
que
come
amizade
inimizade,
ódio, temor
que
odeia, inimigo
que
leva ou conduz
casamento
que
casa
que
gera
língua
|
demagogo,
pedagogo
cefalalgia,
nevralgia
heresiarca,
monarca
autarquia,
monarquia
neurastenia,
psicastenia
dolicocéfalo,
microcéfalo
democracia,
plutocracia
heterodoxo,
ortodoxo
hipódromo,
velódromo
pentaedro,
poliedro
aerofagia,
antropofagia
antropófago,
necrófago
bibliofilia,
lusofilia
fotofobia,
hidrofobia
xenófobo,
zoófobo
electróforo,
fósforo
monogamia,
poligamia
bígamo,
polígamo
heterogéneo,
homogéneo
poliglota,
isoglossa
|
Prefixo
|
Sentido
|
Exemplificação
|
-gono
-grafia
-grafo
-grama
-logia
-logo
-mancia
-mania
-mano
-maquia
-metria
-metro
-morfo
-nomia
-nomo
-peia
-pólis, -pole
-ptero
-scopia
-scópio
-sofia
-stico
-teca
-terapia
-tomia
-tono
|
ângulo
escrita, descrição
que escreve
escrito, peso
discurso, tratado,
ciência
que fala ou
trata
adivinhação
loucura, tendência
louco, inclinado
combate
medida
que mede
que tem a forma
lei, regra
que regula
acto de fazer
cidade
asa
acto de ver
instrumento
para ver
sabedoria
verso
lugar onde
se guarda
cura
corte, divisão
tensão, tom
|
pentágono,
polígono
ortografia,
geografia
calígrafo,
polígrafo
telegrama,
quilograma
arqueologia,
filologia
diálogo, teólogo
necromancia,
quiromancia
megalomania,
monogamia
bibliómano,
mitómano
logomaquia,
tauromaquia
antropometria,
biometria
hidrómetro,
pentâmetro
antropomorfo,
polimorfo
agronomia,
astronomia
autónomo, metrónomo
melopeia, onomatopeia
Petrópolis,
metrópole
díptero, helicóptero
macroscopia,
microscopia
microscópio,
telescópio
filosofia,
teosofia
dístico, monóstico
biblioteca,
discoteca
fisioterapia,
hidroterapia
dicotomia,
nevrotomia
barítono, monótono
|
Na língua portuguesa
encontramos ainda palavras híbridas
dado que se formam com elementos de
línguas diferentes. Por exemplo, automóvel
(primeiro radical grego e segundo
latino) e sociologia (primeiro radical
latino e segundo grego). Outras palavras
híbridas são autoclave, bicicleta,
bígamo, decímetro, endovenoso, monóculo,
monocultura, neolatino ou oleografia.
O conhecimento
da língua grega revela-se de importância
capital para a dissipação de questões
linguísticas. Vejamos alguns casos
elucidativos:
a) Diabete, diabetes
ou diabeta?
O vocábulo grego
é d
i
a b h t h V (de d i a b a i n w , «Ter as pernas abertas», «atravessar») significando «compasso»,
«fio de prumo» e «sifão», tendo sido
tomado o último sentido para designar
a doença.
Como é um vocábulo comum, chega ao Português através do acusativo latino
diabeten (segundo a flexão grega)
ou diabetam (flexão latina) e daí
diabeta. Porém, por analogia com os
substantivos masculinos da 1.ª declinação
grega em h
V (como A p e l l h V , Apeles), surge diabetes, do género feminino
(concordância ad sensum).
b) Hieróglifo
ou Hieroglifo?
Dado que a palavra
deriva de i rg o V , sagrado e l u
z w , gravar, deve dizer-se hieróglifo.
c) Ómega ou omega?
O w não existia no
alfabeto grego até que os Jónios inventaram
este sinal. Os gramáticos e lexicógrafos
escrevem v
m e ga ou w m e ga (lit. «O grande»). Na transliteração para
latim, a palavra fica esdrúxula, proparoxítona,
porque o e é breve. Assim, devemos
preferir ómega.
d) Síndrome, síndroma
ou síndromo?
Dicionários modernos
atestam as três formas. Em grego é
s u n d r o m h que, após transliteração para latim resulta em syndrome ou syndroma
pelo que em Português encontramos
síndrome (s.f.) e síndroma (s.f.),
com uma terminação mais usual. Existe
ainda síndromo (s.m.), talvez por
analogia com pródromo. O uso consagrou
a oscilação. O recente Dicionário
Mais (Maio de 1997) utiliza síndroma
(De ImunoDeficiência Adquirida - SIDA)
enquanto que o difundido Dicionário
da Língua Portuguesa da Porto Editora,
(7.ª edição) utiliza síndrome para
a mesma sigla.
7. Conclusão
Pela sinóptica
viagem que empreendemos, podemos concluir
que os helenismos na língua portuguesa
são suporte fundamental para a sua
própria compreensão, como bem provou
o professor António Freire no seu
excelente estudo.(13)
Da Grécia, recebemos um património linguístico mas também um cosmos
cultural que hoje estruturam a nossa
língua e a nossa cultura. Assim o
sente Sophia de Mello Breyner Andresen.
O culto pelo antigo nesta autora leva
à recuperação da grafia original não
só na sua poesia (Eurydice, Hydra,
Delphos...) mas até no seu próprio
nome onde ressoa o valor sémico de
sabedoria (Sophia - s o j i a ). A sua admiração pela Hélade está bem patente na citação que fizemos
no pórtico deste pequeno trabalho
que só poderia ser complementada por
outro sentimento ainda mais profundo.
Quando visitou de barco as ilhas gregas,
uma intensa emoção invadiu a poetisa:
" Lembro-me
que quando cheguei à Grécia, pela
primeira vez, parámos no Golfo
de Corinto e o que me ocorreu
foi: Meu Deus, obrigada por ter
nascido.(14) "
A Grécia perpassa
a obra de numerosos autores. Ricardo
Reis, adepto da moral estóica (de
stoa poikile, ou seja, o «pórtico
com pinturas», onde se costumavam
reunir os Estóicos que surgiram na
Grécia no séc. IV) e da filosofia
de Epicuro (filósofo grego que fundou
em 306 a.C., em Atenas, uma escola
que defendia o prazer de carácter
espiritual, fruto da eliminação do
temor aos deuses e da supressão da
dor) definiu deste modo o valor da
cultura grega pelo seu mestre eterno:
" Deve haver,
no mais pequeno poema de um poeta,
qualquer coisa por onde se note
que existiu Homero.(15)"
Tal como David
Mourão-Ferreira, no seu Hospital das
Letras(16), responde a alguns espíritos
que ainda questionariam se valia a
pena perder tempo com o obscuro e
distante poeta barroco Francisco de
Vasconcelos, com uma citação célebre,
assim nós utilizamos as mesmas palavras
de T. S. Elliot para quem possa duvidar
da actualidade e relevância do antigo
mundo grego, materializada no exemplo
da poesia:
" Há uma proporção que deve ser respeitada entre o nosso consumo de
poesia antiga e moderna. Eu não
confiarei no gosto daqueles que
nunca lêem poesia contemporânea.
Mas o público que lê apenas poesia
contemporânea priva-se do prazer,
e do proveito, de descobrir alguma
coisa de diferente por si próprio
-
alguma coisa que guarda sempre
a sua frescura."
Na verdade, na
Língua Portuguesa de hoje corre a
seiva do Grego Antigo -
eis o sortilégio! -
e, na Cultura Portuguesa de sempre,
refulge o espírito da Cultura Grega
- eis a epifania!
* Equiparado
a Professor-Adjunto da ESEV, docente
da Área Científica de Português.
NOTAS
1) Aguiar
e Silva, op. cit., p. 76.
2) Herculano
de Carvalho, op. cit., p. 25.
3) Vd.
Hjelmslev, op. cit., pp. 9-10.
4) Vd.
Buck, C. D., The Greek Dialects, Chicago,
The University of Chicago Press, 1955,
2.ª ed. 1973, pp. 3-16.
5) Legacy
of Greece, p. 3.
6) Cf.
B. Snell, Die Entdeckung des Geistes,
Hamburg, 1955, pp. 212-213.
7) The
Greeks, p. 4.
8) Cf.
Andr. 243, 261-262, 870; Hec. 326-331,
1112-1231; Hel. 501 e 1210; Heracl.
131; It. 31, 389, 417, 739 e 886;
Med. 1323 e 1339-1340; Or. 1110-1115,
1351, 1369; Tr. 764-765. Vejam-se
ainda Andr. 647-654 e 662-667; Ia.
952-954, 1264-1275 e 1400-1401.
9) Cf.
J. Ferguson, The Heritage of Hellenism,
London, 1963, pp. 7-30.
10) Cf.
G. C. Vlachos, Les societés politiques
homeriques, Paris, 1974, p. 307.
11) Citado
por António Freire, op. cit., p. 9.
12) Vd.
Prof. Rebelo Gonçalves, «Os Elementos
Gregos do Vocabulário Português»,
em A Língua Portuguesa (Revista de
Filologia), vol. 1, fasc. II, V, X,
Lisboa, 1929-30.
13) Freire,
António, Helenismos portugueses, Publicações
da Faculdade de Filosofia.
14) Sophia
de Mello Breyner Andresen, «Escrevemos
poesia para não nos afogarmos no cais»,
in Jornal de Letras, Artes e Ideias,
ano I, n.º 26 (entrevista dada a Maria
Armanda Passos), pp. 3-5.
15) Páginas
Íntimas e de Auto-Interpretação, p.
390.
16) Mourão-Ferreira,
David, Hospital das Letras, Imprensa
Nacional - Casa da Moeda, s/d., p.
36.
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ANEXO
Alfabeto
grego e pronúncia tradicional
O
alfabeto grego tem as vinte e
quatro letras seguintes:
Maiúsculas
|
Minúsculas
|
Nome
português
|
Nome
grego
|
Pronúncia
|
A
B
G
D
E
Z
H
Q
I
K
L
M
N
X
O
P
R
S
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beta
gama
delta
épsilon
zdêta
êta
thêta
iôta
caopa
lambda
mü
nü
csi
ómicron
pi
rô
sigma
tau
üpsilon
fi
khi
psi
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o
(aberto)
p
r
s
t
u
ph
kh
ps
o
(fechado)
|
(1)
b
no começo de palavra.
(2)
V
só no fim de palavra.
Fonte:
Millenium
| Millenium