Povoamento das Américas: um debate sem fim

Povoamento das Américas

As discussões sobre a época em que os primeiros homens chegaram à América é o tema central deste artigo.

As discussões sobre a época em que os primeiros homens chegaram à América é o tema central deste artigo. Mas esse problema, que provoca debates tão apaixonados no meio científico, suscita outra dúvida, igualmente relevante, relativa ao trajeto que teriam seguido para alcançar o continente. Trabalhos apresentados no simpósio sobre povoamento das Américas, realizado no segundo semestre de 1998 na Universidade do Estado do Oregon, em Portland Estados Unidos, por pesquisadores americanos e canadenses, sugerem que, embora periodicamente livre, o corredor formado entre as geleiras das Montanhas Rochosas, nos Estados Unidos, e da região do Labrador, ao norte do Canadá, não oferecia condições adequadas à sobrevivência humana. Isso vem reforçar uma hipótese lançada há tempos mas até então raramente admitida pelos especialistas: a de que, após atravessar o estreito de Behring, o homem pode ter penetrado na América pelo litoral pacífico, contornando as geleiras das Rochosas, que caíam diretamente no oceano. Aguardam-se, no entanto, provas seguras e muitos embates acadêmicos em torno dessa tese. No que diz respeito à época de entrada das primeiras levas humanas no continente, os supostos vestígios anteriores a 12.500 anos ainda são controvertidos, embora se saiba que o homem chegou à América do Norte antes dessa data.

Já no século XVI os europeus preocupavam-se em saber quando e como os primeiros indígenas chegaram às Américas. No início do século XX, sabia-se que os habitantes do Novo Mundo eram biologicamente aparentados com os asiáticos, embora se acreditasse também na possibilidade de migrações provenientes da Oceania. De qualquer modo, considerava-se que a entrada do homem no continente tivesse ocorrido, no máximo, cerca de seis milênios antes. No entanto, achados feitos em meados deste século vieram comprovar que os primeiros imigrantes caçavam grandes mamíferos, hoje extintos, nas planícies americanas, entre 10 e 11.500 mil anos atrás. Os sítios da famosa cultura Clóvis, caracterizados pela presença de instrumentos de caça que incluem pontas de projétil lascadas e preparadas com uma técnica especial, o "acanalamento", foram então considerados vestígios das mais antigas populações ameríndias.

Durante a segunda metade do nosso século, numerosos locais da América do Norte e do Sul forneceram indícios de uma possível ocupação humana bem mais antiga que a da cultura Clóvis, pouco antes do final do período geológico chamado Pleistoceno. Mas trata-se de ocorrências que permitem interpretações opostas, e os especialistas divergem muito a esse respeito.

Até hoje, apenas sítios datados entre 11 e 12,5 mil anos atrás apresentam vestígios inquestionáveis da presença humana na América. O estudo desses sítios permite saber também que os primeiros indígenas não eram apenas especializados na caça ao mamute ou ao bisonte, mas já tinham estratégias diversificadas de sobrevivência.

Neste artigo, explicamos sobretudo como se apresenta hoje o problema das origens (geográfica e biológica) do homem americano e como os pesquisadores tentam resolvê-lo. Os arqueólogos fazem um trabalho semelhante ao de detetives, que, na cena do crime, precisam interpretar vestígios muito variados. Testam hipóteses que elaboram com base não só em dados e conhecimentos objetivos, mas também a partir de sua intuição e preferências subjetivas.

Métodos de investigação

Os métodos de investigação podem ser biológicos, lingüísticos e arqueológicos. Os primeiros consistem em estudar as características morfológicas e genéticas (análises de ADN) dos índios atuais ou dos esqueletos e restos mumificados de populações antigas. Assim, pode-se comparar as populações ameríndias antigas com as atuais, para verificar se são oriundas de um ou vários estoques genéticos e analisar seu eventual parentesco com populações atuais e pré-históricas de outras partes do mundo.

Os recentes progressos na análise de ADN mitocondrial (mitocôndrias são organelas do citoplasma da célula que, como os cromossomos, contêm ADN) permitiram até mesmo a elaboração de um "relógio molecular", que permite calcular o tempo necessário de permanência do homem no continente americano para justificar as atuais diferenças entre as populações indígenas. Embora ainda limitados, tais métodos são instrumentos potentes e promissores de investigação.

Os lingüistas estudam as semelhanças e diferenças entre as línguas ameríndias para determinar o grau de parentesco entre elas. Eles também tentaram encontrar um "relógio lingüístico" capaz de determinar o tempo necessário para produzir a diversidade das línguas atuais e, a partir daí, estimar a época em que os primeiros homens chegaram ao continente.

Os arqueólogos procuram vestígios materiais (restos de habitação e de alimentos, instrumentos, esqueletos etc.) da presença humana preservados na terra. Em certas circunstâncias, dispõem de um "relógio atômico" (como os testes de carbono 14) bastante confiável para datar esses vestígios ou camadas sedimentares onde estão preservados.

 

O cenário

Milênios antes do período geológico e climático atual, o clima da Terra era mais frio. Grandes geleiras estendiam-se imediatamente ao norte das regiões hoje ditas temperadas do hemisfério norte; na maior parte das regiões intertropicais, embora o clima não fosse tão frio, imperavam climas geralmente mais secos que os de hoje. Como as águas ficavam retidas sob a forma de gelo nas zonas polares, o nível dos oceanos era cerca de 100m mais baixo. Assim, podia-se transitar a pé por uma passagem de terra entre a Sibéria e o Alasca na região da Beríngia. Com as precipitações, as geleiras aumentavam, bloqueando essa passagem. Os períodos em que a travessia podia ser feita eram, portanto, bastante restritos.

A probabilidade de que alguma leva de imigrantes tenha vindo pelo mar há mais de dez mil anos, quando as técnicas de navegação eram muito precárias, é remotíssima. A propósito, o povoamento das ilhas do Pacífico é comprovadamente muito mais recente.

Infelizmente, as regiões através das quais os imigrantes asiáticos alcançaram a América do Norte estão hoje sob as águas geladas do Ártico ou foram em algum momento ocupadas por geleiras. Os mais antigos locais de habitação da Beríngia e do Alasca encontram-se, portanto, submersos ou foram destruídos pelo gelo. Os sítios identificados pelos arqueólogos localizam-se mais ao sul e não correspondem às regiões habitadas pelas primeiras gerações de colonos.

Os indícios

Vestígios inquestionáveis da presença humana entre 12 e 11.500 anos atrás foram encontrados em abrigos ou, mais raramente, a céu aberto, na Califórnia e México (América do Norte) e no Chile central, no Peru e nas regiões Central e Nordeste do Brasil (América do Sul). Os sítios que permitem essa afirmação categórica contêm instrumentos de pedra lascada feitos com matéria-prima de boa qualidade trazida de fora da região. Muitos desses objetos, produzidos por meio de golpes certeiros, são complexos demais para terem sido feitos por fenômenos naturais. Foram datados a partir do carvão de fogueiras e, por estar associados a artefatos, pode-se inferir que resultem de ação humana. Muitas vezes os sítios apresentam ainda vestígios alimentares característicos.

O estudo das condições de deposição do sedimento (a terra dentro da qual se encontram os vestígios) permite verificar que não houve perturbações tardias capazes de misturar objetos recentes e antigos. A partir de onze mil anos atrás, aparecem também esqueletos, particularmente numerosos nas imediações de Lagoa Santa, Minas Gerais: Lapa Vermelha, Cerca Grande e Santana do Riacho.

Há vários sítios, no Brasil inclusive, com indícios de uma ocupação possivelmente mais antiga. Infelizmente, todos apresentam algum problema que impede de se chegar a uma conclusão definitiva. Vários parecem conter instrumentos de pedra, mas estes são feitos a partir de rochas do próprio local ou podem ter sido trazidos por fenômenos naturais. São tão toscos que o lascamento rudimentar pode ter resultado de um choque acidental: pedaços de blocos do teto, ao cair uns sobre os outros durante milênios, acabam se lascando espontaneamente. Restos de carvão e pedras queimadas podem ter sido produzidos por ação de raios. Embora, em outros casos, instrumentos e fogueiras pareçam inquestionáveis, há indícios de que as camadas sedimentares foram perturbadas e de que os vestígios arqueológicos podem ter-se infiltrado a partir de uma camada sedimentar mais recente.

Não há por que recusar a priori a possibilidade de uma presença humana mais antiga na América, mas os indícios propostos devem ser meticulosamente avaliados. Muitas vezes os arqueólogos acabam interpretando os dados disponíveis de modo divergente, fazendo com que o público não saiba em quem acreditar. Nos últimos anos, foi divulgada na imprensa a existência de sítios que comprovariam a presença do homem no Brasil há dezenas e até centenas de milhares de anos. É preciso que se saiba que os especialistas estão longe de alcançar unanimidade em torno desse assunto. De qualquer modo, se havia gente no sul dos Estados Unidos a 11,5 mil anos atrás e no Chile a 12.500 anos atrás, deduz-se que seus antepassados tenham chegado ao norte do continente — a milhares de quilômetros de lá — muito tempo antes.

A única possível conclusão é, quaisquer que sejam os trabalhos relacionados as Antigüidades, das mais distintas áreas do conhecimento, eles fornecem hipóteses reflexivas e de comparação que permitem levar mais longe a análise, e isto em todos os setores da ciência, contribuindo para um conhecimento mais profundo da história humana.

Os atores

Quem eram os primeiros imigrantes? Nada podemos dizer a respeito de possíveis indígenas anteriores a doze ou onze mil anos atrás. Verifica-se, no entanto, a partir desse instante a presença de populações muito diferentes tanto dos atuais asiáticos como dos índios modernos. Só a partir de aproximadamente oito mil anos atrás é que aparecem vestígios de homens com traços asiáticos, ditos "mongolizados", já bastante parecidos com os indígenas atuais.

Estudos muito recentes sugerem que os primeiros habitantes das Américas (autores da cultura Clóvis nos Estados Unidos e de outras culturas da mesma época na América do Sul) descendiam de uma população não mongolizada da Ásia central. Parte dessa população teria migrado para o sul, chegando à Austrália, enquanto outra parte teria viajado para o norte, penetrando as Américas. Pode-se, assim, explicar a semelhança entre o chamado Homem de Lagoa Santa e as populações aborígines da Austrália, embora tenhamos certeza de que não houve navegação entre esses dois continentes. Na região de origem, esses primitivos Homo sapiens teriam sido substituídos por populações mongolizadas, que, por sua vez, produziram novas ondas migratórias em direção às Américas.

Essa hipótese, ainda em discussão, sugere que quatro ondas migratórias principais vindas da Ásia penetraram as Américas (os esquimós são representantes da última delas), sendo que pelo menos duas teriam alcançado a América do Sul.

Podemos chegar a um julgamento definitivo?

Enquanto a arqueologia fornece provas definitivas da presença humana na América entre 12,5 e 11 mil anos atrás, lingüistas e estudiosos de ADN mitocondrial acreditam que a diversificação biológica e lingüística que se verifica no continente permite supor um período de tempo maior, da ordem de vinte a trinta mil anos. Os arqueólogos não devem descartar essa possibilidade, mas o fato de os primeiros colonizadores terem sido provavelmente pouco numerosos faz com que sejam remotas as chances de identificação de seus vestígios. Caso alguns dos sítios polêmicos mencionados anteriormente sejam de fato marcas da sua presença, isso significaria que seus habitantes trabalhavam a pedra de modo muito grosseiro se levarmos em conta a habilidade de populações contemporâneas de outras partes do mundo. Mas essa hipótese é plausível, já que, sobretudo em meio tropical, a madeira pode ter sido muito mais utilizada do que a pedra.

Os cientistas devem, portanto, continuar buscando indícios dos primeiros americanos e discutir sua validade caso a caso. O papel da controvérsia na arqueologia, que não está no domínio das ciências experimentais, é essencial. Os "advogados do diabo" são necessários para obrigar os que defendem a existência de sítios supostamente pleistocênicos na América a controlar suas informações, refinar seus argumentos e comprovar suas asserções. Mas nem sempre é fácil manter as discussões sobre esse tema — o mais polêmico da arqueologia americana hoje — nos limites da elegância desejável.

In: Ciência Hoje, vol.25, nº149, maio 1999

André Prous

Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/Museu de História Natural,

Universidade Federal de Minas Gerais

Pesquisador do CNPq responsável pela Missão Arqueológica Franco-Brasileira de Minas Gerais

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