A
probabilidade de que alguma leva de imigrantes
tenha vindo pelo mar há mais de dez mil
anos, quando as técnicas de navegação eram
muito precárias, é remotíssima. A propósito,
o povoamento das ilhas do Pacífico é comprovadamente
muito mais recente.
Infelizmente,
as regiões através das quais os imigrantes
asiáticos alcançaram a América do Norte
estão hoje sob as águas geladas do Ártico
ou foram em algum momento ocupadas por geleiras.
Os mais antigos locais de habitação da Beríngia
e do Alasca encontram-se, portanto, submersos
ou foram destruídos pelo gelo. Os sítios
identificados pelos arqueólogos localizam-se
mais ao sul e não correspondem às regiões
habitadas pelas primeiras gerações de colonos.
Os
indícios
Vestígios
inquestionáveis da presença humana entre
12 e 11.500 anos atrás foram encontrados
em abrigos ou, mais raramente, a céu aberto,
na Califórnia e México (América do Norte)
e no Chile central, no Peru e nas regiões
Central e Nordeste do Brasil (América do
Sul). Os sítios que permitem essa afirmação
categórica contêm instrumentos de pedra
lascada feitos com matéria-prima de boa
qualidade trazida de fora da região. Muitos
desses objetos, produzidos por meio de golpes
certeiros, são complexos demais para terem
sido feitos por fenômenos naturais. Foram
datados a partir do carvão de fogueiras
e, por estar associados a artefatos, pode-se
inferir que resultem de ação humana. Muitas
vezes os sítios apresentam ainda vestígios
alimentares característicos.
O
estudo das condições de deposição do sedimento
(a terra dentro da qual se encontram os
vestígios) permite verificar que não houve
perturbações tardias capazes de misturar
objetos recentes e antigos. A partir de
onze mil anos atrás, aparecem também esqueletos,
particularmente numerosos nas imediações
de Lagoa Santa, Minas Gerais: Lapa Vermelha,
Cerca Grande e Santana do Riacho.
Há
vários sítios, no Brasil inclusive, com
indícios de uma ocupação possivelmente mais
antiga. Infelizmente, todos apresentam algum
problema que impede de se chegar a uma conclusão
definitiva. Vários parecem conter instrumentos
de pedra, mas estes são feitos a partir
de rochas do próprio local ou podem ter
sido trazidos por fenômenos naturais. São
tão toscos que o lascamento rudimentar pode
ter resultado de um choque acidental: pedaços
de blocos do teto, ao cair uns sobre os
outros durante milênios, acabam se lascando
espontaneamente. Restos de carvão e pedras
queimadas podem ter sido produzidos por
ação de raios. Embora, em outros casos,
instrumentos e fogueiras pareçam inquestionáveis,
há indícios de que as camadas sedimentares
foram perturbadas e de que os vestígios
arqueológicos podem ter-se infiltrado a
partir de uma camada sedimentar mais recente.
Não
há por que recusar a priori a possibilidade
de uma presença humana mais antiga na América,
mas os indícios propostos devem ser meticulosamente
avaliados. Muitas vezes os arqueólogos acabam
interpretando os dados disponíveis de modo
divergente, fazendo com que o público não
saiba em quem acreditar. Nos últimos anos,
foi divulgada na imprensa a existência de
sítios que comprovariam a presença do homem
no Brasil há dezenas e até centenas de milhares
de anos. É preciso que se saiba que os especialistas
estão longe de alcançar unanimidade em torno
desse assunto. De qualquer modo, se havia
gente no sul dos Estados Unidos a 11,5 mil
anos atrás e no Chile a 12.500 anos atrás,
deduz-se que seus antepassados tenham chegado
ao norte do continente — a milhares de quilômetros
de lá — muito tempo antes.
A
única possível conclusão é, quaisquer que
sejam os trabalhos relacionados as Antigüidades,
das mais distintas áreas do conhecimento,
eles fornecem hipóteses reflexivas e de
comparação que permitem levar mais longe
a análise, e isto em todos os setores da
ciência, contribuindo para um conhecimento
mais profundo da história humana.
Os atores
Quem
eram os primeiros imigrantes? Nada podemos
dizer a respeito de possíveis indígenas
anteriores a doze ou onze mil anos atrás.
Verifica-se, no entanto, a partir desse
instante a presença de populações muito
diferentes tanto dos atuais asiáticos como
dos índios modernos. Só a partir de aproximadamente
oito mil anos atrás é que aparecem vestígios
de homens com traços asiáticos, ditos "mongolizados",
já bastante parecidos com os indígenas atuais.
Estudos
muito recentes sugerem que os primeiros
habitantes das Américas (autores da cultura
Clóvis nos Estados Unidos e de outras culturas
da mesma época na América do Sul) descendiam
de uma população não mongolizada da Ásia
central. Parte dessa população teria migrado
para o sul, chegando à Austrália, enquanto
outra parte teria viajado para o norte,
penetrando as Américas. Pode-se, assim,
explicar a semelhança entre o chamado Homem
de Lagoa Santa e as populações aborígines
da Austrália, embora tenhamos certeza de
que não houve navegação entre esses dois
continentes. Na região de origem, esses
primitivos Homo sapiens teriam sido substituídos
por populações mongolizadas, que, por sua
vez, produziram novas ondas migratórias
em direção às Américas.
Essa
hipótese, ainda em discussão, sugere que
quatro ondas migratórias principais vindas
da Ásia penetraram as Américas (os esquimós
são representantes da última delas), sendo
que pelo menos duas teriam alcançado a América
do Sul.
Podemos
chegar a um julgamento definitivo?
Enquanto
a arqueologia fornece provas definitivas
da presença humana na América entre 12,5
e 11 mil anos atrás, lingüistas e estudiosos
de ADN mitocondrial acreditam que a diversificação
biológica e lingüística que se verifica
no continente permite supor um período de
tempo maior, da ordem de vinte a trinta
mil anos. Os arqueólogos não devem descartar
essa possibilidade, mas o fato de os primeiros
colonizadores terem sido provavelmente pouco
numerosos faz com que sejam remotas as chances
de identificação de seus vestígios. Caso
alguns dos sítios polêmicos mencionados
anteriormente sejam de fato marcas da sua
presença, isso significaria que seus habitantes
trabalhavam a pedra de modo muito grosseiro
se levarmos em conta a habilidade de populações
contemporâneas de outras partes do mundo.
Mas essa hipótese é plausível, já que, sobretudo
em meio tropical, a madeira pode ter sido
muito mais utilizada do que a pedra.
Os
cientistas devem, portanto, continuar buscando
indícios dos primeiros americanos e discutir
sua validade caso a caso. O papel da controvérsia
na arqueologia, que não está no domínio
das ciências experimentais, é essencial.
Os "advogados do diabo" são necessários
para obrigar os que defendem a existência
de sítios supostamente pleistocênicos na
América a controlar suas informações, refinar
seus argumentos e comprovar suas asserções.
Mas nem sempre é fácil manter as discussões
sobre esse tema — o mais polêmico da arqueologia
americana hoje — nos limites da elegância
desejável.
In:
Ciência Hoje, vol.25, nº149, maio 1999
André
Prous
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/Museu
de História Natural,
Universidade Federal de Minas Gerais
Pesquisador do CNPq responsável pela Missão
Arqueológica Franco-Brasileira de Minas
Gerais
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