Transcrito
do livro Problèmes de Géogrephie
Humaine (Paris, Librairie
Armand Colin, 1952), p. 25-34.
Tradução de Jaci Silva Fonseca. |
Desde
a Antigüidade muitos escritores, de
espíritos curiosos e observadores,
constataram na superfície da Terra
diferenças entre os costumes dos homens.
Muitos viajantes, desde Heródoto,
as têm descrito; muitos historiadores
e moralistas, desde Tucídides, as
têm tomado como base de suas reflexões
filosóficas. Porém, a idéia de constituir
uma ciência, isto é, em procurar a
explicação, veio muito mais tarde
e só apareceu a partir do fim do Século
XVIII. Até então, o estudo dos fatos
que agrupamos sob o nome de Geografia
Humana: modos de vida dos homens na
superfície da Terra, modos de grupamentos,
consistia em uma simples descrição
olhada sobretudo como um conhecimento
de caráter utilitário e prático ou
como uma imagem pitoresca dos costumes
e das diferentes maneiras de ser dos
povos. Eram relatórios de informações
destinados a guiar os viajantes, eram
narrações freqüentemente romanceadas
de aventuras maravilhosas feitas sobretudo
para agradar a imaginação; eram enumerações
de lugares e de distâncias, todas
entremeadas de recordações históricas;
eram, por vezes, considerações arqueológicas
e genealógicas; noções de estatística
e de administração. Estes trabalhos
visavam, certamente, satisfazer a
curiosidade que todos os espíritos,
mesmo os mais humildes, sentem por
aquilo que se relaciona com os povos
estrangeiros e com as paisagens exóticas.
Porém, de fato, este conjunto de conhecimentos
era apenas um caos desordenado, sem
esforço construtivo, sem luz explicativa,
isto é, sem característica científica.
O
progresso da Geografia Humana como
ciência remonta ao progresso do nosso
conhecimento do globo, efetuado sobretudo
em conseqüência de viagens de descobertas
e de colonização do Século XVIII;
viagens efetuadas sobretudo por cientistas
e por exploradores animados de curiosidade
científica. Eles obtiveram através
do mundo elementos de comparação entre
as sociedades humanas situadas em
diferentes graus de civilização; ora,
o espírito de comparação desperta
o espírito científico, porque cria
o sentido da generalidade dos fatos.
Vidal
de La Blache, que foi o iniciador
da Geografia Humana na França, mostrou
que o caráter científico desta geografia
remonta a dois geógrafos alemães:
Alexandre von Humboldt (1769-1859)
e Karl Ritter (1779-1859), quando
os dois demonstraram que entre os
fenômenos físicos e os fenômenos da
vida há relações constantes de causa
e efeito, mas cada um deles trouxe
sua maneira original de conceber esta
conexão. Autor do Cosmos, Humboldt,
sobretudo naturalista, interessou-se
em estudar os fenômenos físicos e
a mostrar, por exemplo, a influência
dos fatores como a altitude, a temperatura,
a umidade, a seca sobre as formações
vegetais. Autor de Allgemeine vergleichende
Geographie, provido de uma forte
cultura histórica, K. Ritter mostra
que em Geografia Humana a natureza
não é o único poder causal e que o
próprio homem é, na superfície da
Terra, um agente de transformação
e de vida. Dessa maneira, a natureza
e o homem, Natur und Geschichte,
como dizia Ritter, são "os dois termos
perpetuamente associados" entre os
quais deve gravitar o pensamento do
geógrafo.
É
neste caminho que a Geografia Humana
permaneceu, com dois mestres de escola,
Ratzel na Alemanha e Vidal de La Blache
na França. Suas doutrinas e seus ensinamentos
foram divulgados em quase todos os
países, inspirando aqui e acolá obras
que contribuíram para vulgarizar a
nova ciência e em fazer penetrar os
princípios e as lições fora dos meios
intelectuais, até nas esferas de ampla
cultura. Pode-se citar na França:
J. Brunhes; na Alemanha: Philippson;
na Inglaterra: Mackinder e Herbertson;
nos Estados Unidos: Miss Semple; na
lugoslávia: Cvijic; na Itália: Marinelli;
na Rússia: Woeikof.
1.
Definição e objeto da Geografia Humana
Se
tentarmos precisar o espírito que
domina os trabalhos de Geografia Humana
e procurar aquelas tendências comuns
às quais obedecem podemos chegar,
por aproximações sucessivas, a definir
o objeto desta ciência.
De
início, a Geografia Humana aparece-nos
como o estudo das relações dos homens
com o meio físico. Esta noção nos
vem sobretudo da Geografia Botânica,
por intermédio de Humboldt e de Berghans
e, particularmente, dessa ciência
botânica chamada Ecologia, que estuda
até que ponto os fatores do clima
e do solo determinam a vida das plantas.
Da mesma forma, eles podem em uma
grande escala determinar a vida dos
homens. Uma das primeiras preocupações
do geógrafo é colocar os fatos humanos
em relação com a série de causas naturais
que podem explicá-los e recolocá-los,
desta maneira, no encadeamento do
qual faz parte. O entendimento dessas
causas nos esclarece sobre os modos
de vida e os hábitos materiais dos
homens. Esta influência do meio físico
ambiental, como dizem certos americanos,
manifesta-se em toda a parte, em todos
os domínios da atividade humana, em
exemplos entre os quais o geógrafo
só tem o embaraço da escolha. É numa
dependência causal que se encontram,
frente a frente, os três termos de
uma associação que une estreitamente
uma planta, um animal doméstico e
um modo de vida, isto é, o líquen,
a rena e o Lapão. A influência soberana
do meio conduziu os indígenas da floresta
da África Central a uma vida de caçador
e de coletor, àquelas das estepes
da Ásia Central a uma vida de nômades
e de pastores. Nos países áridos existe
uma estreita conexão entre as fontes
e a posição das aldeias; nas altas
montanhas, entre as raras manchas
de boa terra bem exposta e o habitat
humano. Não houve do ponto de vista
do desenvolvimento da civilização
uma profunda diferença entre a Europa,
localizada no coração do hemisfério
ocidental e a Austrália, isolada no
meio de mares imensos? As penínsulas
e as ilhas não contribuíram para a
formação de individualidades humanas,
de Estados? A separação de Portugal
em relação à Espanha não se explica,
em parte, do lado do Oeste por sua
posição oceânica, do lado do Leste
pelo relevo acidentado e as gargantas
selvagens que o isolam da Espanha?
Porém,
ao levar até o fim esta primeira definição
da Geografia Humana, percebe-se que
ela não poderia abranger todo o estudo
das relações humanas com o meio físico.
A definição logo aparece muito ampla,
porque muitas dessas relações escapam
certamente à competência da Geografia
Humana e se ligam a ciências bem definidas.
Em seu livro sobre La Terre et
l'Evolution humaine, L. Febvre
marcou fortemente essas zonas interditas
à Geografia Humana. Por exemplo, embora
certas raças humanas pareçam ligadas
a um domínio geográfico bem limitado,
não cabe à Geografia Humana explicar
as diferenças que existem entre as
raças do ponto de vista de suas reações
em face da cor de sua pele, em face
dos fatores do clima. Deixemos, então,
a outros o estudo dos elementos fisiológicos
da natureza humana. Não esqueçamos
que o homem tem uma anatomia, uma
fisiologia, uma patologia que derivam
de caracteres hereditários e cujo
estudo constitui a Antropologia e
a Medicina. Tratemos de retificar
nossa primeira definição.
Pode-se,
portanto, dar uma segunda definição:
a Geografia é o estudo dos grupamentos
humanos em suas relações com o meio
físico. Renunciemos a considerar os
homens como indivíduos. Pelo estudo
de um indivíduo, a Antropologia e
a Medicina podem chegar a resultados
científicos; a Geografia Humana não.
O que ela estuda são os homens como
coletividades e grupamentos: são as
ações dos homens como sociedades.
Devemos partir em nossas pesquisas,
não do indivíduo, mas do grupo. Desde
os tempos mais distantes vemos em
ação não homens isolados, mas grupamentos
de homens. Tão longe quanto se possa
recuar ao passado, constatamos que
viver em sociedades, viver com os
semelhantes que têm os mesmos modos
de viver é um estado inseparável da
natureza humana. Esses grupamentos
são, às vezes, pequenos como são as
numerosas aldeias neolíticas, cujos
restos foram encontrados. Elas são
às vezes imensas como essas sociedades
da época paleolítica, cujas ferramentas
se assemelham através do mundo. Dessa
forma, é pelos seus grupamentos que
a humanidade mesmo primitiva entra
em contato com o meio físico. É um
esforço de cooperação que vemos na
origem das civilizações e de suas
conquistas materiais sobre a natureza.
Os esforços como a construção dos
dolmens, a organização da irrigação
na Mesopotâmia e no Egito, como a
domesticação dos animais, só poderiam
ser empreendimentos coletivos. Mas
esta definição ainda não é suficiente
para envolver todo o conceito de Geografia
Humana, e há uma última correção que
nos aproxima definitivamente da realidade.
A
Geografia Humana é o estudo dos grupamentos
humanos em suas relações com o meio
geográfico. A expressão de meio geográfico
é mais compreensiva que a de meio
físico; ela engloba não somente as
influências naturais que podem-se
exercer, mas ainda uma influência
que contribui para formar o meio geográfico,
o ambiente total, a influência do
próprio homem. No início de sua existência,
a Humanidade foi certamente escrava,
pela sua dependência da natureza.
Porém, o homem nudus et inermis
não tardou a tornar-se, graças à sua
inteligência e à sua iniciativa, um
elemento que exerce sobre o meio uma
ação poderosa. Torna-se um agente
da natureza transformando a fundo
a paisagem natural, criando associações
novas de plantas e animais, os oásis
para as culturas de irrigação, as
formações vegetais como o matagal
e a charneca em detrimento da floresta.
E essas transformações se estenderam
por diversas regiões porque há, de
grupo para grupo de homens, as migrações,
os empréstimos, as imitações. E essa
ação das sociedades humanas sobre
a natureza é tanto mais rica e mais
forte quando as suas iniciativas as
têm tornado mais capazes de ampliar
seu raio de ação, de alcançar mais.
Há tais dados da natureza que o homem
tem, por sua ação, profundamente perturbado:
na Antigüidade, as ilhas Britânicas
eram a extremidade do mundo conhecido,
numa posição excêntrica; na época
moderna, a partir da descoberta e
do povoamento do Novo Mundo, elas
ocupam uma posição central. Em nossos
dias, a ação do homem sobre a natureza
está-se ampliando ainda mais em razão
das armas que a ciência Ihe tem dado
e do domínio que os transportes Ihe
asseguram sobre as distâncias. Dessa
maneira, as obras humanas oriundas
de todo o passado da Humanidade contribuem
para constituir o meio, o ambiente,
o meio geográfico que condiciona a
vida dos homens. Assim, podemos adotar
como definição da Geografia Humana
o estudo das relações dos grupamentos
humanos com o meio geográfico.
Esta
definição da Geografia Humana permite-nos
conceber de maneira concreta qual
é seu objeto e determinar os quadros
e os limites. Ela compreende quatro
grandes grupos de problemas que resultam
precisamente das relações das sociedades
humanas com o meio geográfico.
Em
primeiro lugar é a valorização feita
pelas sociedades humanas dos recursos
que a natureza fornece ou o que elas
conquistaram sobre ela; são modos
de vida tais como os modelam as grandes
zonas naturais: a vida humana nas
regiões frias; a vida humana nas regiões
temperadas; a vida humana nas regiões
áridas; a vida humana nas regiões
quentes, comparando-se cada uma dessas
zonas, seu contingente de plantas
cultivadas e de animais domésticos;
a vida humana na montanha; a vida
humana no litoral.
Em
segundo lugar é a elaboração progressiva
pelas sociedades, ao correr dos tempos
e através do espaço, dos diferentes
procedimentos pelos quais elas têm,
para sua subsistência, tirado partido
dos recursos naturais, desde os mais
elementares até os mais complexos:
quer se trate da colheita, da caça
e da pesca ou da agricultura e da
criação, quer da indústria ou do comércio,
das trocas e dos transportes. Trata-se,
em suma, da evolução de um tipo de
civilização.
Em
terceiro lugar é a distribuição dos
homens em função mesmo das condições
da natureza e dos recursos criados
pela sua exploração: a extensão da
Humanidade, seu efetivo e sua densidade,
seus movimentos e suas migrações.
Em
quarto lugar são as instituições humanas,
isto é, os modos de ocupação da terra
desde as formas mais simples até os
grupamentos mais complicados, desde
a casa e a aldeia até as cidades e
os Estados.
Eis
aí o que parece ser o conteúdo próprio
da Geografia Humana. É nestes quadros
que se divide todo o trabalho de pesquisas,
toda a sua obra.
2.
O Método da Geografia Humana
Conceber
e limitar o conteúdo e o objeto da
Geografia Humana não basta. É preciso
princípios de método, seja para melhor
entendê-la, seja para não se afastar
dela. Eis os princípios essenciais
desse método.
Primeiro
princípio: Não se deve crer
em Geografia Humana numa espécie de
determinismo brutal, numa fatalidade
resultante dos fatores naturais. A
causalidade em Geografia Humana é
muito complexa. Com sua vontade e
suas iniciativas o próprio homem é
uma causa que traz perturbações àquilo
que poderia parecer a ordem natural.
Por exempto, uma ilha não está necessariamente
destinada à vida marítima. O nascimento
de uma vida marítima procede muitas
vezes dos contatos de civilização.
Assim, os ingleses tornaram-se marinheiros
somente com a escola de mercadores
escandinavos e hanseáticos. Da mesma
forma, a agricultura não é somente
função das qualidades da terra; há
terras férteis que não são cultivadas;
há terras pouco férteis que o são.
Tudo depende do estágio de civilização
da sociedade agrícola. O homem é,
às vezes, o responsável pela fertilidade
do solo, por exemplo, praticando a
irrigação. A antiga extensão das vinhas
na Europa Ocidental até a Bélgica,
a Inglaterra e o Norte da França fez-se
em contradição com as exigências naturais
de sua vegetação; se ela pôde avançar
tão longe nesses países frios e pouco
ensolarados é porque nesses países
havia necessidade do vinho para celebrar
a missa e que não se podia, por falta
de transporte barato, recebê-lo dos
países mais meridionais; porém, à
medida que esses transportes se tornaram
menos onerosos, a cultura da vinha
recuou em direção ao Sul, em sítios
mais favoráveis e mais de acordo com
as suas necessidades de vegetação
e maturidade. O mesmo pays pode
modificar profundamente de valor pela
ocupação humana, conforme o grau de
civilização das sociedades humanas
que o povoam. Antes da chegada dos
europeus, a Austrália estava ainda
num estágio de vida selvagem; não
havia grandes animais para caçar,
salvo o canguru que era raro; uma
pobre caça de marsupiais, de serpentes,
de insetos; não havia animais a domesticar;
poucas plantas selvagens a consumir;
indígenas famélicos nômades em busca
de uma pobre alimentação. Chegam os
europeus com suas plantas cultiváveis
e seus animais domésticos e, depois,
com seus poderosos meios de arar e
circular, e fizeram deste continente
muito tempo atrasado, um país de grande
cultura e de criação intensiva, uma
terra de civilização progressiva e
de conforto humano. Portanto, nada
de determinismo absoluto, mas somente
possibilidades colocadas em uso pela
iniciativa humana; nada de fatalidade,
mas de vontade humana.
Segundo
princípio: A Geografia Humana
deve trabalhar apoiando-se sobre uma
base territorial. Em todos os lugares
onde vive o homem, seu modo de existência
implica uma relação necessária entre
ele e o substrato territorial. É precisamente
a consideração deste laço territorial
que diferencia a Geografia Humana
da Sociologia. Os sociólogos têm tendência
a perceber apenas os aspectos psicológicos
dos grupamentos humanos, a esquecer
as relações dos homens com a terra,
a tratar do homem como se ele estivesse
desligado da superfície terrestre.
Não se poderia desconhecer, aliás,
que existem outros cimentos sociais
que a terra, em particular aqueles
que repousam sobre os princípios de
natureza psicológica, tais como o
parentesco e a religião, e seu estudo
pertence não aos geógrafos, porém
aos sociólogos.
Todavia,
o próprio da Geografia Humana é constatar
que o homem não pode ser estudado
sem o solo que ele habita e que o
solo é o fundamento de qualquer sociedade.
Pode-se mesmo dizer que quanto mais
esta base é larga e rica mais profundas
são as relações entre ela e seus habitantes.
Mais forte é a densidade da população
e mais intensiva a exploração da terra
mais esses laços se tornam estreitos.
Pode-se
dizer com Sanderson que, mesmo
nas tribos de caçadores, a utilização
do mesmo território cria uma solidariedade
social, independente dos laços sangüíneos
e mais forte que eles. Entre os Algonquinos
da América do Norte, povo caçador,
o território de cada tribo era dividido
em setores atribuídos desde tempos
imemoriais às mesmas famílias; esses
grupos de família constituíam a verdadeira
unidade social; o cimento desta unidade
não era o laço de parentesco mas a
comunidade de poder do mesmo território,
do mesmo setor. Esses setores tinham
entre os Algonquinos uma média
de 200 a 400 milhas quadradas por
família, no território central da
tribo, e duas a quatro vezes mais
sobre a fronteira desse território.
Sobre esse território a família caça.
A caça é regulamentada de tal maneira
que apenas o crescimento natural dos
animais é consumido; tem-se o cuidado
de deixar após cada estação muitos
animais para assegurar as provisões
do ano seguinte: sabe-se que um massacre
indiscriminado exporá a família à
fome. Em todos os domínios de caça
da América pré-colombiana (caribu,
bisão, guanaco) existia a mesma organização.
Entre os povos inferiores da Austrália,
a tribo tinha os mesmos direitos de
coleta e de caça sobre um território
devidamente limitado; no interior
mesmo do território da tribo cada
unidade familiar possuía direitos
semelhantes. Com mais forte razão
entre os povos agrícolas, a base territorial
leva vantagem como cimento social
sobre os princípios de natureza psicológica.
Todas as comunidades agrícolas têm
uma estrutura determinada pelos laços
que as prendem ao solo; grupamento
das habitações em aldeias, dada a
necessidade de defenderem-se e sobretudo
às necessidades do trabalho em comum;
a organização extremamente regulamentada
pela posse das terras cultivadas e
baseada na rotação de culturas de
uma parte a outra do território; caráter
permanente dos limites da terra; em
certos países, as obras de irrigação
cuja localização comanda a repartição
territorial dos campos cultivados.
Diz ainda Sanderson: "A
comunidade da aldeia foi o meio de
dar à humanidade um governo local
baseado sobre o princípio territorial,
de preferência ao princípio de parentesco."
Substituindo a organização tribal
por esta organização territorial,
há uma base geográfica que, desde
uma alta antigüidade, a maior parte
das civilizações deu aos grupamentos
rurais. Esses habitats onde os homens
se agrupam, onde eles trabalham, são
de dimensões muito desiguais que podem
ir da localidade elementar ao grande
território. Eles formam os quadros
no interior dos quais se distribuem
os fatos geográficos e, por seus caracteres
próprios, imprimem uma originalidade
para a Humanidade que aí se concentra.
Compreender e descrever essas unidades
regionais é uma das funções primordiais
da Geografia, porque cada uma delas
forma freqüentemente uma espécie de
personalidade que é preciso reviver.
Esta Geografia Regional constitui
um dos pontos de apoio essenciais
do trabalho da Geografia Geral, porque
geralmente só se consegue conceber
os grandes conjuntos pela análise
de pequenos pays que a compõem;
para melhor abranger os fatos gerais
é bom partir do particular, do localizado,
do regional, observar o que a região
contém de particular em seus horizontes,
suas plantas, seus habitantes e definir
alguma coisa de animado que resulta
da união de um fragmento de terra
com um grupo humano. Somos levados,
dessa maneira, invencivelmente ao
ponto de partida do nosso conhecimento
do mundo, ao substrato imediato de
nossa existência material. É freqüentemente
pela análise dos caracteres que compõem
a fisionomia de uma região que se
pode melhor compreender as relações
que unem os homens a seu meio.
Terceiro
princípio: Para ser compreensiva
e explicativa, a Geografia Humana
não pode ater-se somente à consideração
do estado atual das coisas. É preciso
encarar a evolução dos fatos, remontar
ao passado, isto é, recorrer à História.
Muitos fatos que, considerados em
função das condições presentes, nos
aparecem como fortuitos se explicam
desde que se os considere em função
do passado. A História abre vastos
horizontes sobre o passado que viu
suceder tantas experiências humanas.
Esta noção de idade, de evolução,
é indispensável. Sem ela a razão do
que existe nos escaparia freqüentemente.
Como, por exemplo, a Geografia Urbana
poderia dispensar a História? Como
explicar Roma, Paris, Londres, sem
conhecer seu passado? Como compreender
a população de um velho país como
a França, se não conhecemos a história
do plantio, do desflorestamento, da
partilha dos campos, dos trabalhos
de drenagem e de represamento? Todo
o estudo desta conquista do solo é
feito com base na História. Eis por
que os trabalhos de Geografia Humana
contêm sempre muito de pesquisas históricas,
e por que os geógrafos se encontram
freqüentemente nos depósitos de arquivos,
com os historiadores. Para explicar
os fatos que observa, o geógrafo não
deve contentar-se de situá-los racionalmente
no espaço; é preciso também que ele
os projete no passado. Também deve
saber servir-se dos documentos históricos
e saber também onde encontrá-los.
Para tomar somente o exemplo da França,
existem grandes depósitos de arquivos:
os Arquivos Nacionais de Paris, que
possuem para as diferentes séries
ao menos um inventário sumário; os
Arquivos Departamentais, que não estão
de todo inventariados; os Arquivos
Comunais, muito desigualmente acessíveis.
Muitas bibliotecas possuem depósitos
de documentos inéditos, desde a Biblioteca
Nacional de Paris até as das grandes
cidades da França e as dos estabelecimentos
públicos, como a École des Ponts
et Chaussées. Em seguida, há os
arquivos nas administrações públicas:
Ministérios de Obras Públicas, do
Comércio, da Agricultura; cadastro,
sem talar nos arquivos da Câmara de
Comércio, da Rede Ferroviária, Companhias
de Mineração, Companhias de Navegação,
Sociedades Agrícolas e Industriais,
e mesmo dos arquivos dos tabeliães
tão interessantes a pesquisar para
o estudo das propriedades e explorações.
Pode dar, enfim, como exemplo de uma
massa de documentos à disposição de
pesquisadores a coleção de documentos
inéditos sobre a história econômica
da Revolução Francesa, rica já de
mais de uma centena de volumes, e
que projetam uma viva luz sobre tantos
fatos da Geografia Humana: a exploração
das culturas de charnecas, bens comunais,
direitos de percursos e de terrenos
cuja pastagem é livre, oficinas rurais
e indústrias domiciliares; a metalurgia
e as florestas, os inícios do maquinismo,
a rede das estradas e das vias navegáveis,
o movimento da população, a evolução
da agricultura, os regimes agrários.
Portanto, o estudo do passado é necessário
á explicação dos fatos da Geografia
Humana. A Humanidade evolui no tempo.
Para compreender esta evolução o testemunho
da História é tão necessário como
o conhecimento das leis naturais.