Resenha
163 / março 2007
Livro resenhado:
DAVIS, Mike. Planeta Favela. Tradução
de Beatriz Medina. São Paulo,
Boitempo, 2006. ISBN: 85-7559-087-1
[imagem: Michael e a paisagem. Favela
da Rocinha, Rio de Janeiro. Foto da
capa do livro.
Um mundo dominado pelas favelas
resenha de Erminia Maricato
Planeta
Favela oferece contribuição
ímpar para desvendar a desconhecida
e gigantesca escala de favelização
e de empobrecimento das cidades do
chamado Terceiro Mundo. Considerando-se
que a população das
favelas cresce na base de 25 milhões
de pessoas a cada ano conforme
lembra Mike Davis ao citar os dados
da UN-Habitat e que as mais
altas taxas de urbanização
são observadas nos países
pobres, que eram, ou ainda são,
predominantemente rurais, esse processo
diz respeito à maioria da população
do planeta. Contribuições
como a deste livro tornam cada vez
mais difícil ignorar a dimensão
do fato e tentar dar a ele tratamento
pontual, com enfoque em best practices
(boas práticas) como tem tentado
o establishment das agências
internacionais de desenvolvimento.
Davis revela que, ao contrário
de aliviar o problema, essas instituições,
especialmente o Fundo Monetário
Internacional (FMI), que impôs
os Planos de Ajuste Estrutural (PAEs)
aos países do Terceiro Mundo,
foram cruciais na explosão
da pobreza responsável pelo
desemprego de 1 bilhão de pessoas,
ou um terço da mão-de-obra
dos países do Sul no final
dos anos 1990, segundo dados da CIA,
citados pelo autor.
Em
vez das cidades de ferro e vidro,
sonhadas pelos arquitetos, o mundo
está, na verdade, sendo dominado
pelas favelas. Os números que
abundam ao longo da obra não
são novos, embora nunca tenham
sido apresentados juntos e com tal
ênfase. A tendência ao
empobrecimento urbano vem sendo alertada
por numerosos autores e instituições,
muitos dos quais presentes na extensa
bibliografia final.
Por
que reconhecer que este livro é
forte instrumento para derrubar essa
barreira e iluminar os problemas urbanos
e grande parte de suas causas? O primeiro
motivo está na abrangência
ampla do diagnóstico. O autor
tenta mostrar que há tendências,
no processo de urbanização
recente, que são universais,
apesar de se tratar de diferentes
países. Em um estilo direto
e, por vezes, chocante, Davis valoriza
o conhecimento empírico e é
pouco dado a longas abstrações
ou desenvolvimento conceitual, o que
revela sua origem proletária
e de militante de esquerda. Seu trabalho
tem finalidade militante, e o estilo
contraria a abstração
e o distanciamento usuais na maior
parte dos trabalhos acadêmicos.
Como
já foi mencionado, uma sucessão
de dados numéricos e de informações
qualitativas flui como uma torrente
a tirar o fôlego do leitor.
O tema do crescimento e do empobrecimento
das cidades do Terceiro Mundo é
cercado e abordado por meio de inúmeras
entradas. A formação
de superurbanizações
e megacidades que
podem merecer a alcunha de leviatã,
como a região que engloba São
Paulo, Rio de Janeiro e Campinas
abre uma longa lista de temas como
por exemplo o crescimento de favelas
provocado por guerras, expulsões
catástrofes, recessão
econômica (como no caso da América
Latina), alto crescimento econômico
e urbano (como nos casos da Índia
e da China), segregação,
racismo; tragédias decorrentes
de desmoronamentos, enchentes, incêndios,
terremotos (que vitimam sobretudo
os pobres); áreas contaminadas,
explosões tóxicas; os
males do transporte rodoviarista como
a poluição do ar e os
acidentes de trânsito, entre
outros.
A
crise sanitária
tratada na seção
Viver na merda
mereceu uma descrição
dramática ilustrada por dados
sobre centenas ou milhares de habitantes
de favelas que disputam apenas uma
latrina em algumas cidades da África
ou da Ásia. Aborda-se ainda
o impacto da carência de água,
ou o altíssimo preço
que os pobres pagam por ela. Davis
lembra que, mesmo em circunstâncias
trágicas como as mencionadas,
a orientação implementada
pelo FMI e pelo Banco Mundial foi
a da privatização do
saneamento. A água, assim como
a defecação humana,
foi transformada em negócio
global, inclusive em cidades nas quais
a população mal tem
recursos sequer para comer.
O
big bang da pobreza tem
suas raízes quando, entre 1974
e 1975, o FMI e o Banco Mundial reorientam
as políticas econômicas
do Terceiro Mundo, abalado pelos preços
do petróleo. A orientação
aos países devedores para abandonar
suas estratégias de desenvolvimento
foram claramente explicitadas no Plano
Backer, em 1985. Davis classifica
o impacto dessa direção
na América Latina como maior
e mais longo do que a Grande Depressão
e, considerando-se a realidade das
décadas que ficaram conhecidas
como décadas perdidas, ele
sem dúvida não está
exagerando.
O
Brasil, por exemplo, cresceu 7% ao
ano de 1940 a 1970. Na década
de 1980, cresceu 1,3%, e na década
de 1990, 2,1%, segundo o IBGE. Ou
seja, o crescimento econômico
do país, nas duas últimas
décadas do século XX,
não conseguiu incorporar nem
mesmo os ingressantes da População
Economicamente Ativa (PEA) no mercado
de trabalho, o que acarretou conseqüências
dramáticas para a precarização
do trabalho e, conseqüentemente,
também para a crise urbana
(1).
Quem
acompanha a vida de qualquer grande
cidade no Brasil é testemunha
do crescimento explosivo das periferias
abandonadas ou da favelização
a partir do início dos anos
1980. Não que o ovo da serpente
não estivesse lá antes
disso. As favelas do Rio de Janeiro
e de Recife surgiram no final do século
XIX e começo do século
XX, quando uma parte da mão-de-obra
escrava libertada ficou sem alternativa
de moradia (o restante passou a viver
de favor). Décadas se passaram,
e nem o trabalho passou à condição
absoluta e geral de mercadoria, nem
a moradia, como acontecera no capitalismo
central.
Entretanto,
o aumento do desemprego e da pobreza
urbana a partir dos anos 1980 contribuiu
para mudar a imagem das cidades no
Brasil: de centros de modernização
que se destinavam a superar o atraso
e a violência localizados no
campo, passaram a representar crianças
abandonadas, epidemias, enchentes,
desmoronamentos, tráfego infernal,
poluição do ar, poluição
dos rios, favelas e...violência.
Há trinta anos, o que não
constitui período muito longo,
não se temia a violência
urbana; as cidades eram relativamente
pacíficas. Para quem viveu
apenas na cidade formal e evitou perceber
o que estava acontecendo, a violência
serviu de alerta, como a ponta do
gigantesco iceberg. As taxas de homicídio
no Brasil, segundo o IBGE, passaram
de 17,2 mortos para cada 100 mil habitantes,
em 1980, para 35,9 mortos em 1989,
e, finalmente, para 48,5 em 1999.
Em
algum momento, em meados dos anos
1990, a professora Maria da Conceição
Tavares, ao participar de uma banca
de doutorado na Unicamp, alimentou
a idéia de que, para o capital,
na era da globalização,
havia gente sobrando, ou melhor, que
parte da força de trabalho,
em vez de exército industrial
de reserva, seria óleo
queimado. A lembrança
desse debate veio a propósito
de expressões usadas por Mike
Davis que vão nessa linha:
fardo humano, humanidade
excedente, massa permanentemente
supérflua. Até
mesmo o acesso a essa terra gratuita,
situada em meio adverso, obtida por
meio das invasões, deverá
acabar. Essa é, segundo Davis,
a verdadeira crise do capitalismo,
e nada, segundo o autor, parece apontar
para a mudança desse quadro.
O livro se conclui sem deixar resquício
de esperança, sobretudo ao
chamar a atenção para
a criminalização das
favelas, agora no foco dos estrategistas
militares norte-americanos.
Essa
falta de saída ou a ausência
de qualquer proposta tem gerado críticas
ao trabalho de Davis. Não é
necessário que um texto que
contenha denúncias apresente
propostas. Como já enfatizamos,
o pensamento crítico é
indispensável para desmontar
a falsa representação
da realidade, que serve a determinados
interesses. O texto, entretanto, pode
alimentar uma atitude contrária
àquela que pretende Davis e
promover o medo em relação
às cidades e às pessoas
que moram nela. Essa crítica
partiu de Tom Angotti quando se referiu
ao artigo que deu origem a este livro
(2). Angotti acusa Davis de promover
uma visão antiurbanista ou
anticidade, classificando-o no time
dos TINA (There Is No Alternative;
Não Há Alternativas,
em português), expressão
usada para se criticar uma atitude
que é comum entre acadêmicos
e ativistas. Ele questiona a falta
de atenção para com
os movimentos sociais em todo o mundo
e a tendência de vê-los
como mero produto da informalidade
urbana e do paroquialismo.
De
fato, em sua crítica demolidora,
Davis inclui propostas de urbanização
de favelas, de microcréditos,
de regularização fundiária,
de construção por conta
própria, entre outras. As críticas
são pertinentes, mas deixam
de considerar especificidades históricas
e geográficas que alimentam
muitas lutas sociais.
Davis
aponta corretamente o caráter
reformista ou, não pouco freqüentemente
regressivo, de muitas das propostas
apontadas como soluções
para os problemas habitacionais. Mas
a busca de alternativas ou exemplos
de soluções nem sempre
leva à cooptação
ou à acomodação.
Muito freqüentemente, mostrar
que esses problemas têm soluções
que estariam à mão se
houvesse mais justiça social
é alimento fundamental para
o avanço da luta democrática.
Apesar de todos os revezes, o Brasil
também apresenta muitos aspectos
que alimentam a esperança de
mudança.
O
movimento pela reforma urbana, que
reúne entidades profissionais,
acadêmicas, de pesquisa, ONGs,
funcionários públicos,
além das entidades nacionais
que lutam pela moradia, são
uma das características positivas
da sociedade brasileira na conjuntura
atual. Esse movimento social conquistou
a aprovação de leis
importantes como o Estatuto da Cidade
(lei n. 10.257, em 2000), a Lei do
Fundo Nacional de Moradia Social (lei
n. 11.124, em 2005), conquistou ainda
a criação do Ministério
das Cidades (ele era uma reivindicação
que vinha sendo feita havia mais de
dez anos). Com ele, o movimento acabou
se fortalecendo, devido à promoção
das Conferências Nacionais das
Cidades, processo que teve início
nos municípios, envolveu todos
os estados da federação
e culminou em Brasília com
a participação de mais
de 2500 delegados, dos quais 70% foram
eleitos nas Conferências Estaduais
e o restante indicados por entidades
nacionais. A primeira conferência
das cidades, em 2003, abrangeu a participação
de mais de 300 mil pessoas para debater
princípios, diretrizes e prioridades
da Política Nacional de Desenvolvimento
Urbano. A segunda, em 2005, aprofundou
as propostas.
Esses
avanços são afetados
mas sobrevivem à crise partidária
eclodida em 2005 que evidenciou ter
o Partido dos Trabalhadores lançado
mão de expedientes condenáveis
que fazem parte da política
institucional no Brasil. Entretanto
não podemos afirmar que existe
uma clara reversão do processo
de aprofundamento dos problemas urbanos.
Essas conquistas são relativamente
recentes e as mudanças são
lentas, já que envolvem uma
cultura histórica ou
de raízes escravistas
de exclusão social. A esperança
está assentada em fatos concretos,
mas Davis acerta quando remete a fonte
principal das mazelas às forças
globais dominadas por interesses financeiros
e garantidas militarmente pelos Estados
Unidos ou por aquilo que David Harvey
denomina de Novo Imperialismo.
Notas
1
Ver a respeito J. Mattoso, O Brasil
desempregado. São Paulo, Fundação
Perseu Abramo, 1999.
2
O artigo em questão é:
Planet of Slums (publicado
originalmente em New Left Review,
n. 26, mar.-abr. 2004, e incluído,
com o título Planeta
de favelas, em Contragolpes:
seleção de artigos da
New Left Review, organizada por Emir
Sader e publicada pela Boitempo em
2006). A crítica pode ser encontrada
em T. Angotti, New anti-urban
theories of metropolitan region: Planet
of Slums and apocalyptic regionalism
(Kansas City, Conference of the Association
of Collegiate School of Planners,
2005).
O
presente texto é a Apresentação
do livro de Mike Davis
Hermínia
Maricato, arquiteta, professora da
FAU-USP.
Fonte:
Resenhas
Online