O
que é a Geografia?
O
que é a Geografia? Essa é
uma questão que atravessa séculos,
com diferentes pontos de vista. Um
especialista chegou até a dizer
-- com um visível exagero --
que existem tantas geografias quantos
geógrafos. É lógico
que o importante são os trabalhos
de pesquisa, as novas idéias
(sobre o espaço mundial, sobre
uma região, um lugar, um processo
na sua dimensão espacial...),
e não a definição
do que é esse saber ou essa
modalidade do conhecimento. Ater-se
rigidamente a uma definição
ou delimitação (pois
toda definição delimita,
cerca, estabelece limites) na maioria
das vezes até mesmo atrapalha
o avanço do conhecimento. Mas
implícita ou explícitamente
essa questão do que é
a Geografia emerge dos trabalhos geográficos
e podemos mesmo dizer que ela se atualiza
constantemente. Todo novo estudo,
desde que seja inovador, toda nova
abordagem contribui para essa permanente
redefinição do(s) objeto(s)
de estudos. É por isso que
afirmou-se que a Geografia -- mas
o mesmo poderia ser dito da Física,
da História, da Antropologia
etc. -- é ao mesmo tempo uma
tradição, um corpo de
conhecimentos e métodos, e
também um vir-a-ser, um processo
que encerra uma certa indeterminação
e que se redefine com as novas pesquisas.
A Geografia pode ser algo num determinado
contexto -- numa época, num
lugar, numa corrente de pensamento
-- e outra coisa (relativamente) diferente
num outro contexto.
Não
objetivamos aqui definir Geografia.
Apenas reproduzimos algumas definições
-- ou alguns comentários sobre
o que é a Geografia ou qual
é a sua importância --
que foram dadas no decorrer dos tempos.
Vamos dividir essas falas em quatro
grupos. A primeira refere-se aos geógrafos
(se é que eles podem ser assim
denominados) clássicos, anteriores
à sistematização
da geografia moderna no século
XIX. Na verdade eles eram viajantes,
mapeadores ou conhecedores de lugares,
estrategistas e principalmente estudiosos
(ou seja, eram ao mesmo tempo filósofos,
físicos, astrônomos,
historiadores, geógrafos...)
O segundo grupo é formado por
geógrafos modernos ou "científicos"
(como eles se autodenominavam), que
promoveram ou expandiram a institucionalização
acadêmica da disciplina nos
séculos XIX e XX (até
os anos 1970). O terceiro grupo é
formado pelos críticos ou radicais,
e também pelos fenomenológicos,
os geógrafos que procuraram
revolucionar ou reconstruír
o saber geográfico a partir
da década de 1970. E o quarto
grupo é formado por não
geógrafos, por escritores,
políticos ou cientistas em
geral (físicos, historiadores...)
que proferiram comentários
a respeito da natureza da Geografia.
Neste último grupo predominam
as falas que enfatizam a importância
da geografia (ou do seu ensino), mas
também incluimos uma -- do
escritor argentino Borges -- que faz
uso de uma metáfora brincalhona,
que na realidade usa uma visão
estereotipada da geografia como um
saber enciclopédico e descritivo
(algo que foi mais ou menos verdadeiro
até o século XIX), e
isso com o objetivo de trazer um pouco
de humor neste campo em geral árido
e circunspeto.
1.
Pontos de vista clássicos:
"A
Geografia é uma ciência
como qualquer outra e interessa sobremaneira
ao filósofo. Ela se ocupa do
estudo ou descrição
da Terra. A maior parte da Geografia
satisfaz a necessidade dos Estados(...)
A Geografia em seu conjunto tem um
vículo com as atividades dos
dirigentes. Os grandes generais são,
sem exceção, homens
capazes do governar por terra e por
mar, de unir povos sob um governo
ou uma administração
pública(...) Até mesmo
um caçador terá mais
êxito se conhecer a natureza
e a extensão do bosque e, além
do mais, só aquele que conhece
uma região pode escolher o
melhor lugar para acampar, para fazer
uma emboscada ou para dirigir uma
campanha militar." (ESTRABÃO,
século I a.C.).
"O
propósito da Geografia é
oferecer uma 'visão de conjunto'
da Terra localizando e mapeando os
lugares ou regiões" (PTOLOMEU,
150 d.C.).
"A
Geografia é uma descrição
geral do mundo. Ela se divide em duas
partes: uma geral e outra especial.
A primeira estuda a Terra em seu conjunto,
explicando as suas diversas partes
e características. A segunda,
ou seja, a geografia especial [regional],
respeitando os conceitos gerais, estuda
as regiões concretas: suas
localizações, divisões,
limites e outros aspectos dignos de
serem conhecidos." (Bernard VARENIUS,
século XVII).
"A
Geografia é uma disciplina
sinóptica que procura sintetizar
os achados de outras ciências
por meio do conceito de 'Raum' [área
ou espaço]. Ela pode ser dividida
em geografia física e mais
cinco modalidades. A geografia matemática,
que estuda a forma, tamanho e movimentos
da Terra, assim como as suas relações
com o sistema solar. A geografia moral,
que explica os diversos costumes e
características dos povos de
diferentes regiões. A geografia
política, que relaciona a organização
política de um Estado com a
sua geografia física [seu território].
A geografia comercial, que se ocupa
dos intercâmbios mercantis.
E a geografia teológica, que
estuda as transformações
dos princípios teológicos
em virtude do terreno(...) A História
e a Geografia podem ser vistas como
uma descrição, com a
diferença que a primeira ocupa-se
do tempo e a segunda do espaço.
A História estuda a relação
dos acontecimentos no tempo e a Geografia
estuda a relação dos
fatos que se dão uns junto
com os outros no espaço"
(Emmanuel KANT, século XVIII).
2.
Pontos de vista modernos:
"A
Geografia é uma ciência
síntetizadora que conecta o
geral com o especial através
do levantamento, do mapeamento e da
ênfase no regional. Ela se ocupa
da influência que o meio físico
exerce sobre o Homem e procura interligar
o estudo da natureza física
com o estudo da natureza moral para
se chegar a uma visão harmonizante
[entre a humanidade e o meio físico]"
(Alexander Von HUMBOLDT, meados do
século XIX).
"O
objetivo da Geografia não é
o de simplesmente reunir e elaborar
uma massa de informações
[sobre a Terra ou as regiões],
como faziam os meus predecessores,
e sim assinalar as 'leis gerais' que
explicam a diversidade natural, mostrar
a sua conexão com qualquer
fato singular e indicar numa perspectiva
histórica a perfeita unidade
e harmonia que existe, por trás
da aparente diversidade e capricho
que prevalece no planeta, entre a
natureza e o Homem." (Karl RITTER,
meados do século XIX).
"O
que é a Geografia? A resposta
pode ser dada através da seguinte
pergunta: Pode a Geografia converter-se
numa ciência ao invés
de um simples amontoado de informações?
Essa é uma questão que
diz respeito ao objeto e aos métodos
da nossa disciplina. Mas existe ainda
uma outra interrogação
preliminar: A Geografia é una
ou múltipla? Ou, em outras
palavras, a geografia física
e a política constituem duas
etapas de uma mesma investigação
ou são temas diferentes que
devem ser estudados por métodos
distintos, sendo uma um apêndice
da geologia e a outra um apêndice
da história? (...) Proponho
uma definição de Geografia
como a ciência que se ocupa
da interação entre o
homem em sociedade e o seu meio ambiente.
As comunidades humanas devem ser consideradas
como unidades em luta pela existência,
mais ou menos favorecida pelo seu
meio. As duas partes da Geografia
se complementam. A geografia física
analisa os fatores do meio ambiente
com as suas variações
e a geografia política demonstra
as relações que existem
entre a sociedade e as variações
locais do seu meio. A Geografia tem
uma dimensão teórica
[o ensino, a pesquisa pura] e uma
outra prática e inseparável
[a sua utilidade para o Estado e para
as atividades mercantis]." (Halford
J. MACKINDER, 1887).
"A
Geografia deve ser, em primeiro lugar,
um estudo das leis que modificam a
superfície terrestre: as leis
que determinam o crescimento e desaparição
dos continentes, suas configurações
passadas e presente(...) A Geografia
deve, em segundo lugar, estudar as
consequências da distribuição
dos continentes e mares, das elevações
e depressões, dos efeitos da
penetração do mar e
das grandes massas de água
no clima. Ela deve ainda explicar
a distribuição geográfica
dos seres vivos, animais e vegetais.
E a quarta função da
Geografia refere-se aos grupos humanos
sobre a superfície da Terra.
Suas distribuições,
seus traços distintos, a distribuição
geográfica das etnias, dos
credos, dos costumes, das formas de
propriedade e as relações
disso tudo com o meio ambiente(...)
O ensino da Geografia deve perseguir
um triplo objetivo. Deve despertar
nos alunos a afeição
pela natureza. Deve ensinar-lhes que
todos os seres humanos são
irmãos qualquer que seja a
sua nacionalidade ou a sua 'raça'.
E deve inculcar o respeito pelas culturas
ditas 'inferiores'." (Prior KROPOTKIN,
1885).
"A
Geografia enquanto um 'conhecimento
da Terra' seria uma ciência
da Terra [geociência]. Alguns
autores, como Gerland, desejam excluir
o Homem da Geografia. Outros desejam
conhecer as influências exercidas
pela natureza sobre o Homem. [Contudo]
A definição da Geografia
como ciência da Terra não
é consequente. A Geografia
pode ser definida como o conhecimento
do espaço terrestre, sendo
ao mesmo tempo uma ciência concreta
e corológica. Essa distinção
entre ciências abstratas e concretas
foi estabelecida por A. Comte. E foi
Kant quem estabeleceu a distinção
entre ciências sistemáticas
[como a Física], cronológicas
[como a História] e corológicas
ou espaciais [como a Geografia]. Ela
procura compreender a diferenciação
local dos elementos naturais e humanos(...)
O geógrafo que não se
preocupa com o conhecimento das regiões
corre o perigo de ficar completamente
desprovido de fundamento geográfico.
O conhecimento das regiões,
mesmo sem a geografia geral, continua
sendo um conhecimento geográfico.
Em contrapartida, a geografia geral
sem o conhecimento das regiões
de maneira nenhuma pode cumprir o
papel da Geografia e com frequência
situa-se fora do âmbito desta
disciplina." (Alfred HETTNER,
1905).
"Um
indivíduo geográfico
não resulta somente das condições
geológicas e climáticas.
Não é completamente
livre das mãos da natureza,
mas é um homem que revela a
sua individualidade moldando um território
para o seu próprio uso. A Geografia
tem como missão investigar
como as leis físicas ou biológicas
que regem o globo se combinam e se
modificam ao aplicarem-se às
diversas partes da superfície
terrestre. A geografia tem como missão
especial estudar as expressões
cambiantes que existem nos diversos
lugares(...) O geógrafo deve
buscar o encadeamento e a unidade
dos elementos que agem sobre a superfície
terrestre. A Terra é o domínio
do Homem. Mas é preciso que
a humanidade conheça o seu
domínio para dele desfrutar
e para fazer-se valer. A Geografia
tem com função ensinar
isso." (Paul VIDAL DE LA BLACHE,
1913).
"A
Geografia, tal como a História,
é essencial para a compreensão
total da realidade. Elas se assemelham
na medida em qua ambas são
ciências integradoras e interessadas
no estudo do mundo. Existe, portanto,
uma relação universal
e mútua entre elas, inclusive
se suas bases de integração
são num certo sentido opostas
-- a Geografia em função
dos espaços terrestres e a
História em função
dos períodos de tempo -- ,
a interpretação das
configurações geográficas
atuais requer um certo conhecimento
do desenvolvimento histórico.
Da mesma maneira, a interpretação
dos acontecimentos históricos
requer um certo conhecimento do seu
contexto geográfico(...) A
Geografia estuda as diferenciações
entre as áreas da superfície
terrestre e por conseguinte seleciona
os fenômenos a serem considerados
em função do seu significado
geográfico. Ao estudar a inter-relação
entre esses fenômenos [físicos
e humanos], a Geografia depende em
primeiro lugar da comparação
de mapas que representam a expressão
regional dos fenômenos individuais,
ou dos fenômenos inter-relacionados."
(Richard HARTSHORNE, 1939).
"A
Geografia encontrou um objeto próprio
através do estudo das paisagens.
É um objeto que relaciona as
ciências naturais, as humanas,
econômicas e sociais. Na literatura
geográfica alemã foi
S.Passarge o primeiro que usou a denominação
'geografia da paisagem' e, desde 1913,
propôs em várias obras
o conceito de 'ciência da paisagem'.
A palavra alemã 'Landschaft'
(paisagem) existe há mais de
mil anos e teve uma interessante evolução
linguística. É um conceito
presente na ciência e na arte.
Na ciência, somente a geografia
deu um uso a esse conceito e o transformou
num objeto de estudos. A partir daí
o movimento de proteção
da natureza e o paisagismo cunharam
os conceitos de proteção,
conservação e criação
da paisagem. Podemos distinguir o
aspecto fisionômico ou formal
da paisagem do seu aspecto fisiológico
ou funcional. O primeiro diz respeito
ao espaço como uma totalidade
e o segundo refere-se à interação
entre todos os geofatores: os naturais,
os econômicos e os culturais."
(Karl TROLL, 1950).
"É
útil dividir uma ciência
em três elementos: a lógica,
os fatos de observação
e a teoria. A lógica inclui
a Matemática e tem a ver com
a relação entre os símbolos.
Os fatos de observação
[isto é, o(s) objeto(s) de
estudos] devem ser designados operacionalmente,
já que somente através
de uma descrição exata
de como foi feita uma observação
é que se pode idenfificar um
fato particular. A teoria se forma
por união do sistema lógico
com os fatos definidos operacionalmente.
A teoria é o coração
da ciência, porque uma teoria
científica é a chave
para abrir a realidade(...) Existem
dois problemas que dificultam tratar
a Geografia como ciência. O
primeiro refere-se à função
da descrição na Geografia
e o segundo à possibilidade
de predição dos fenômenos
geográficos. Existem autores
que sustentam que a descrição
não é científica.
Essa posição é
insustentável. Existe uma infinidade
de fatos e qualquer descrição
é sempre seletiva. Os geógrafos
estão sempre buscando algo
que considerem significante. A significação
só pode ser julgada por outro
fenômeno. Isso implica numa
relação e esta numa
teoria(...) Na Geografia, como em
qualquer outra ciência, existe
uma interação contínua
entre lógica, teoria e fatos
(descrição). Nenhuma
pode ser separada das demais. Devido
a isso é absurdo pretender
que uma das três, no caso a
descrição, seria 'mais
geográfica' que as outras.
O problema da Geografia consiste em
encontrar uma maneira mais econômica
de ordenar nossa percepção
dos fatos. A predibilidade dos fenômenos
geográficos depende da resposta
a esta pergunta: São os fenômenos
geográficos únicos ou
gerais? Se eles são únicos
[irrepetíveis, originais] não
são preditíveis e não
se pode construir teorias. Se eles
são gerais são preditíveis
e podem originar teorias. Muitos geógrafos
confundem casos 'unicos' com 'individuais'.
Eles imaginarm que os fenômenos
geográficos são únicos
e portanto não teorizáveis
de forma lógica. Mas eles são
individuais, e o caso individual implica
não em unicidade e sim numa
generalidade. Por exemplo, aceita-se
que existe uma teoria que explica
a formação de ilhas.
Mas só existe uma ilha de Manhatan.
Nesse sentido a ilha de Manhatan corresponde
à teoria das ilhas embora seja
diferente de todas as outras ilhas
devido a uma combinação
quantitativa particular de fatos."
(William BUNGE, 1962).
"A
Geografia é uma ciência
humana. O espaço terrestre
é objeto de estudo geográfico
na medida em que é, sob uma
forma qualquer, um meio de vida ou
uma fonte de vida, ou uma indispensável
passagem para aceder a um meio de
vida ou a uma fonte de vida(...) A
Geografia aparece assim como uma ciência
do espaço em função
do que ele oferece ou fornece aos
homens. Como ciência do espaço,
ela é chamada a fazer balanços
do que representa globalmente esse
espaço para os homens que aí
vivem. A Geografia compartilha com
as ciências da Terra a característica
de ciência do espaço,
mas não tem os mesmos objetivos
que elas. Para situar as coletividades
humanas em seu quadro, empresta às
ciências da Terra seus resultados,
se necessário seus métodos.
Mas é mais sintética
que elas. O geógrafo deve ter
uma competência que lhe torne
inteligíveis, simultaneamente,
processos geológicos, climatológicos,
hidrológicos, biológicos.
Esta é a condição
de uma representação
total do meio percebido globalmente
pelas coletividades que o ocupam(...)
A Geografia é o resultado e
o prolongamento da História.
O objetivo dos métodos geógraficos
é o conhecimento de 'situações'.
Uma situação é
a resultante num dado momento -- que
é por definição,
em Geografia, o momento presente --
de um conjunto de ações
que se contrariam, se moderam ou se
reforçam e sofrem os efeitos
de acelerações, de freios
ou de inibições por
parte dos elementos duráveis
do meio e das seqüelas das situações
anteriores. O estudo de uma situação
pode proceder de uma concepção
contemplativa ou de uma concepção
ativa(...) Assim definida, a Geografia
se apresenta como uma imagem 'instantânea'
do mundo. O geógrafo é
por definição o agente
de coordenação, o intermediário
natural entre o exército de
técnicos especializados e a
política que toma as decisões."
(Pierre GEORGE, 1964).
3.
Pontos de vista radicais, críticos
e/ou humanistas:
"Através
desta revista desejamos desenvolver
paradigmas alternativos para estudar
o presente, investigar formas de mudança
radical com vistas a sociedades futuras
mais justas. A revista 'Antipode'
foi gerada pela aparente falta de
preocupação da nossa
disciplina [a Geografia] com as questões
sociais. Uma década de mudanças
nos 'métodos' da investigação
geográfica [a revolução
quantitativa] não foi suficiente
para suscitar uma alteração
na 'direção' das preocupações
geográficas(...) Nosso objetivo
é uma mudança radical
-- a substituição das
instituições e o ajuste
institucional de nossa sociedade com
vista a novos objetivos(...) A 'nova
esquerda geográfica' difere
do velho liberalismo nos seus níveis
de compromisso e na sua crença
em um processo de mudança radical.
Isso significa principalmente três
coisas: pleitear uma sociedade mais
equitativa na qual se erradique a
pobreza, o sofrimento e o decadente
sentimento de inutilidade e inevitabilidade;
trabalhar para a consecução
de uma mudança radical empregando
todas as técnicas à
nossa disposição com
o propósito de romper e reconstruir
a estrutura de opiniões convencionais;
e organizar-se para uma ação
efetiva dentro da Geografia acadêmica,
que em geral é profundamente
conservadora." (Richard PEET
e Outros, número 1 da revista
Antipode, 1969).
Pode-se
dizer com Sanderson que, mesmo
nas tribos de caçadores, a utilização
do mesmo território cria uma solidariedade
social, independente dos laços sangüíneos
e mais forte que eles. Entre os Algonquinos
da América do Norte, povo caçador,
o território de cada tribo era dividido
em setores atribuídos desde tempos
imemoriais às mesmas famílias; esses
grupos de família constituíam a verdadeira
unidade social; o cimento desta unidade
não era o laço de parentesco mas a
comunidade de poder do mesmo território,
do mesmo setor. Esses setores tinham
entre os Algonquinos uma média
de 200 a 400 milhas quadradas por
família, no território central da
tribo, e duas a quatro vezes mais
sobre a fronteira desse território.
Sobre esse território a família caça.
A caça é regulamentada de tal maneira
que apenas o crescimento natural dos
animais é consumido; tem-se o cuidado
de deixar após cada estação muitos
animais para assegurar as provisões
do ano seguinte: sabe-se que um massacre
indiscriminado exporá a família à
fome. Em todos os domínios de caça
da América pré-colombiana (caribu,
bisão, guanaco) existia a mesma organização.
Entre os povos inferiores da Austrália,
a tribo tinha os mesmos direitos de
coleta e de caça sobre um território
devidamente limitado; no interior
mesmo do território da tribo cada
unidade familiar possuía direitos
semelhantes. Com mais forte razão
entre os povos agrícolas, a base territorial
leva vantagem como cimento social
sobre os princípios de natureza psicológica.
Todas as comunidades agrícolas têm
uma estrutura determinada pelos laços
que as prendem ao solo; grupamento
das habitações em aldeias, dada a
necessidade de defenderem-se e sobretudo
às necessidades do trabalho em comum;
a organização extremamente regulamentada
pela posse das terras cultivadas e
baseada na rotação de culturas de
uma parte a outra do território; caráter
permanente dos limites da terra; em
certos países, as obras de irrigação
cuja localização comanda a repartição
territorial dos campos cultivados.
Diz ainda Sanderson: "A
comunidade da aldeia foi o meio de
dar à humanidade um governo local
baseado sobre o princípio territorial,
de preferência ao princípio de parentesco."
Substituindo a organização tribal
por esta organização territorial,
há uma base geográfica que, desde
uma alta antigüidade, a maior parte
das civilizações deu aos grupamentos
rurais. Esses habitats onde os homens
se agrupam, onde eles trabalham, são
de dimensões muito desiguais que podem
ir da localidade elementar ao grande
território. Eles formam os quadros
no interior dos quais se distribuem
os fatos geográficos e, por seus caracteres
próprios, imprimem uma originalidade
para a Humanidade que aí se concentra.
Compreender e descrever essas unidades
regionais é uma das funções primordiais
da Geografia, porque cada uma delas
forma freqüentemente uma espécie de
personalidade que é preciso reviver.
Esta Geografia Regional constitui
um dos pontos de apoio essenciais
do trabalho da Geografia Geral, porque
geralmente só se consegue conceber
os grandes conjuntos pela análise
de pequenos pays que a compõem;
para melhor abranger os fatos gerais
é bom partir do particular, do localizado,
do regional, observar o que a região
contém de particular em seus horizontes,
suas plantas, seus habitantes e definir
alguma coisa de animado que resulta
da união de um fragmento de terra
com um grupo humano. Somos levados,
dessa maneira, invencivelmente ao
ponto de partida do nosso conhecimento
do mundo, ao substrato imediato de
nossa existência material. É freqüentemente
pela análise dos caracteres que compõem
a fisionomia de uma região que se
pode melhor compreender as relações
que unem os homens a seu meio.
Terceiro
princípio: Para ser compreensiva
e explicativa, a Geografia Humana
não pode ater-se somente à consideração
do estado atual das coisas. É preciso
encarar a evolução dos fatos, remontar
ao passado, isto é, recorrer à História.
Muitos fatos que, considerados em
função das condições presentes, nos
aparecem como fortuitos se explicam
desde que se os considere em função
do passado. A História abre vastos
horizontes sobre o passado que viu
suceder tantas experiências humanas.
Esta noção de idade, de evolução,
é indispensável. Sem ela a razão do
que existe nos escaparia freqüentemente.
Como, por exemplo, a Geografia Urbana
poderia dispensar a História? Como
explicar Roma, Paris, Londres, sem
conhecer seu passado? Como compreender
a população de um velho país como
a França, se não conhecemos a história
do plantio, do desflorestamento, da
partilha dos campos, dos trabalhos
de drenagem e de represamento? Todo
o estudo desta conquista do solo é
feito com base na História. Eis por
que os trabalhos de Geografia Humana
contêm sempre muito de pesquisas históricas,
e por que os geógrafos se encontram
freqüentemente nos depósitos de arquivos,
com os historiadores. Para explicar
os fatos que observa, o geógrafo não
deve contentar-se de situá-los racionalmente
no espaço; é preciso também que ele
os projete no passado. Também deve
saber servir-se dos documentos históricos
e saber também onde encontrá-los.
Para tomar somente o exemplo da França,
existem grandes depósitos de arquivos:
os Arquivos Nacionais de Paris, que
possuem para as diferentes séries
ao menos um inventário sumário; os
Arquivos Departamentais, que não estão
de todo inventariados; os Arquivos
Comunais, muito desigualmente acessíveis.
Muitas bibliotecas possuem depósitos
de documentos inéditos, desde a Biblioteca
Nacional de Paris até as das grandes
cidades da França e as dos estabelecimentos
públicos, como a École des Ponts
et Chaussées. Em seguida, há os
arquivos nas administrações públicas:
Ministérios de Obras Públicas, do
Comércio, da Agricultura; cadastro,
sem talar nos arquivos da Câmara de
Comércio, da Rede Ferroviária, Companhias
de Mineração, Companhias de Navegação,
Sociedades Agrícolas e Industriais,
e mesmo dos arquivos dos tabeliães
tão interessantes a pesquisar para
o estudo das propriedades e explorações.
Pode dar, enfim, como exemplo de uma
massa de documentos à disposição de
pesquisadores a coleção de documentos
inéditos sobre a história econômica
da Revolução Francesa, rica já de
mais de uma centena de volumes, e
que projetam uma viva luz sobre tantos
fatos da Geografia Humana: a exploração
das culturas de charnecas, bens comunais,
direitos de percursos e de terrenos
cuja pastagem é livre, oficinas rurais
e indústrias domiciliares; a metalurgia
e as florestas, os inícios do maquinismo,
a rede das estradas e das vias navegáveis,
o movimento da população, a evolução
da agricultura, os regimes agrários.
Portanto, o estudo do passado é necessário
á explicação dos fatos da Geografia
Humana. A Humanidade evolui no tempo.
Para compreender esta evolução o testemunho
da História é tão necessário como
o conhecimento das leis naturais.