Laboratório Interdisciplinar de Tecnologias Educacionais

ENSINAR - APRENDER EM SITUAÇÃO ESCOLAR

Perspectiva histórico - cultural

 

Angel Pino

FE-UNICAMP

 

O ATO DE ENSINAR: ASPECTOS CONCEITUAIS

A palavra "ensino" é utilizada tanto para designar a ação e as práticas de ensinar como os diferentes níveis e modalidades do sistema educacional. O significado etimológico do verbo "ensinar" (do latim popular insignare) é indicar, fazer sinal (signum facere) ou apontar numa direção, como o mostra o prefixo in-. Todavia, é sabido que o significado das palavras varia em razão das práticas sociais dos povos, revelando as diferentes concepções que decorrem dessas práticas. É o que ocorre também com o verbo "ensinar": seus diferentes significados são reveladores das diferentes concepções de ensino que orientam as práticas pedagógicas

Segundo o dicionário da língua, o Aurélio, o verbo ensinar tem diversas significações. As principais são: (i) "transmitir conhecimento"; (ii) "treinar"; (iii) "indicar"; e (iv) "punir" (no sentido de "dar uma lição" a alguém). A essas variações semânticas do verbo "ensinar" correspondem variações equivalentes no verbo correlato "aprender".

Deixando de lado a significação de "punir", apesar de inspirar durante muito tempo certas práticas pedagógicas, as outras significações traduzem diferentes concepções não só do "ato de ensinar" -pelo qual um sujeito (S2) acede ao conhecimento (OC) pela mediação de outro sujeito (S1) - mas também da natureza do conhecimento. Esses vários significados traduzem diferentes concepções do ato de ensinar: (1) como um mero ato de transmissão; (2) como o efeito do treinamento; 3) como um processo de descoberta sob a orientação do outro.

Na primeira concepção, a aquisição do conhecimento é vista como o resultado de uma espécie de repasse do conhecimento (OC) de um sujeito (S1) a outro (S2), como o verbo transmitir designa no seu sentido etimológico (do latim trans-mittere: "pôr além de"). Isso implica conceber o conhecimento como algo em si, já feito, que existe em algum lugar (no sujeito transmissor ou nos diferentes tipos de documentos) e que pode passar a existir em outro (no sujeito receptor). Concebido assim, ensinar exige apenas duas condições: a existência do conhecimento na pessoa que vai transmiti-lo (S1) e o ato da sua transmissão (por determinados meios) a outra pessoa (S2), independentemente de como esta o recebe.

Na segunda concepção, a aquisição do conhecimento é vista como o resultado da repetição, por parte do sujeito que aprende (S2), de certas operações visando ao registro em memória (de idéias ou de ações práticas) da coisa aprendida (OC), de maneira a poder dispor dela quando necessário.

Na terceira concepção, enfim, a aquisição do conhecimento é concebida como o resultado de uma atividade de procura por parte do próprio sujeito (S2), a partir das indicações e orientações fornecidas por um outro sujeito (S1). Subjacente a esta concepção está a idéia de que o conhecimento é o produto de um trabalho social e de que sua aquisição é obra de investigação e (re)elaboração com a colaboração dos outros. No caso do ensino escolar, é obra de S2 com a ajuda de S1, o qual exerce o papel de "guia". Esta concepção, não só não exclui o trabalho de grupo (uma espécie de S1 coletivo), como, até um certo ponto, o pressupõe. Dessas várias significações atribuídas ao termo "ensinar", só a última (3) traduz, propriamente, o componente semiótico inerente à palavra latina "insignare": fazer signo, indicar ou apontar.

 

QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS

A problemática do ensinar - aprender, assunto deste trabalho, envolve diferentes questões de ordem epistemológica, psicológica e pedagógica. Com efeito, as diferentes maneiras de entender a relação pedagógica nas diferentes práticas escolares, ou seja os possíveis modos de articulação dos seus componentes S1 < OC > S2 (professor < objeto de conhecimento > aluno), certamente tem a ver, de um lado, com a concepção que se tem da natureza do conhecimento, aspecto epistemológico, e, de outro lado, com as teorias que explicam o processo de conhecimento do sujeito, aspecto psicológico. Isso quer dizer que, em função disso, a "relação pedagógica" pode apresentar diferentes contornos ou desenhos, como é mostrado na parte final deste trabalho.

Dentro dos limites deste trabalho, tentarei apontar, de forma sumária, alguns aspectos dessas questões que me parecem mais pertinentes, focalizando-os na perspectiva da corrente histórico - cultural de psicologia.

 

Razão e experiência

O conhecer humano é um tipo de atividade que implica uma relação e, como tal, envolve três elementos, não apenas dois: o sujteito que conhece, a coisa a conhecer e o elemento mediador que torna possível o conhecimento, como é representado no diagrama x < z > y, onde o elemento mediador "z" é aquilo que torna possível que um objeto "y" possa ser conhecido por um sujeito "x"

Embora a atividade de conhecer pressuponha a existência no sujeito de determinadas propriedades que o habilitam a captar as características dos objetos, há fortes razões para pensar que o ato de conhecer não é obra exclusiva nem do sujeito (x) nem do objeto (y), nem mesmo da sua interação (x < > y), mas da ação do elemento mediador (z), sem o qual não existe nem sujeito nem objeto de conhecimento. A falta de levar em conta, nas discussões epistemológicas, este elemento mediador conduziu ao dualismo, razão de impasses epistemológicos. Como veremos depois, no caso da psicologia, o dualismo persiste mesmo em modelos interacionistas pensados para superá-lo, como é o caso do modelo piagetiano, cujas diferenças em relação à matriz epistemológica que inspira os trabalhos da corrente histórico-cultural de psicologia não foram ainda suficientemente explicitadas.

Do ponto de vista do "sentido comum", conhecer é simplesmente incorporar as características dos objetos, reconstituindo-as internamente numa espécie de cópia fiel da realidade. Ora, como lembra Piaget (1966), incorporar as características dos objetos é totalmente insuficiente para definir o conhecer humano, pois o objeto é um "instantâneo" fugaz no fluxo de transformações que constituem a realidade. Conhecer implica captar essas transformações, o que, segundo ele, só é possível através da sua reconstrução mental. Ora, isso implica já a função semiótica, de que ele fala sem aprofundar a sua natureza.

Para o racionalismo iluminista do século xviii, conhecer era revelar as leis ocultas que regem a ordem da natureza e que estão inscritas nela: as leis naturais. Essas leis conferem à ordem natural uma racionalidade cuja revelação é obra da razão humana. É sabido que o iluminismo transfere para a Natureza a Razão que o pensamento religioso coloca fora dela, fazendo do homem um ser naturalmente racional, sintonizado com a racionalidade da ordem natural da qual faz parte. O racionalismo iluminista inspirou fortemente o pensamento moderno. A idéia da existência de leis naturais está presente tanto nas ciências ditas naturais quanto nas ciências normativas, como o direito e a moral.

O conhecer humano implica a possibilidade de transpor as fronteiras da sensibilidade e das meras aparências do real, para chegar à "essência" das coisas, ou seja à dinâmica das suas transformações. A questão é saber como ocorre isso. As duas respostas principais dadas a esta questão, a racionalista e a empirista, remontam à Grécia antiga: de um lado, aos trabalhos de Platão (427-347 a.C.) e Aristóteles (384-322 a.C.), perspectiva racionalista, e, do outro, aos trabalhos dos sofistas e estóicos, perspectiva empirista.

Segundo Platão (Simpósio, A República, Fedo), o que revela a verdadeira natureza do mundo e das coisas não é a experiência sensível mas as Formas ou Idéias (como as de Beleza, Bem, Justiça etc.). As Idéias existem como entidades separadas das coisas, totalmente inacessíveis aos sentidos, sendo acessíveis unicamente à razão. Ecos desta teoria encontramos na obra contemporânea de K. R. Popper, quem fala de um "terceiro mundo", o das idéias, em contraposição ao mundo dos objetos físicos e ao dos estados de consciência ou dos sujeitos. O conhecimento objetivo, diz ele, é um conhecimento sem sujeito conhecedor, concepção próxima à teoria de Bolzano de um universo de proposições em si e de verdades em si (Popper, 1982:119 ss). Quanto às coisas em si, Platão distingue nelas dois aspectos: o fenomenal ou das aparências e o noumenal ou das essências, fonte, respectivamente, da opinião, saber incerto e falível da realidade, e do conhecimento, saber certo e infalível da natureza das coisas, ou seja das Formas.

Aristóteles criticara a teoria das Formas de Platão na Ética e na Metafísica, não propriamente pelo seu caráter racionalista, mas por fazer delas entidades separadas e diferentes das coisas. Segundo Aristóteles, as coisas são existências individuais portadoras de qualidades, ou seja unidades compostas de matéria prima (a materialidade em si, informe) e de forma substancial (aquilo que confere à matéria sua singularidade e identidade). Daí o nome de hilemorfisme dado à sua teoria. Existe uma analogia evidente entre as qualidades de que fala Aristóteles e as Formas de que fala Platão, com a diferença que aquelas são reais e inerentes às coisas e estas são ideais e separadas delas. Embora inerentes e constitutivas das coisas singulares, as qualidades podem ser compartilhadas, o que contraria, em parte, a teoria de Platão. No seu livro De Anima (Tratado da Alma), primeiro tratado de psicologia, Aristóteles aplica essa doutrina à natureza humana, unidade composta de matéria (o soma) e de forma (a psykè). A principal característica da psykè é ser racional. Mas, segundo ele, a razão é, ao mesmo tempo, passiva, ligada à sensorialidade e à imaginação, fonte do conhecimento mediado pelo raciocínio e a dedução, e ativa, independente da experiência sensível, fonte do conhecimento imediato e infalível. Portanto, embora reconhecendo o papel da experiência sensível como forma de conhecimento, para ele, o conhecimento certo, verdadeiro, das coisas vem pela razão ativa.

Apesar do seu caráter francamente racionalista, as obras de Platão e de Aristóteles oferecem também uma base teórica para o empirismo. De diferentes maneiras, ambos enfatizam a importância da percepção sensível para o conhecimento, embora admitam sua insuficiência para chegar ao conhecimento seguro e certo. Mas foram os estóicos os que, de forma explícita, enfatizaram a origem sensível do conhecimento. Segundo eles, os sentidos provêm a alma dos primeiros materiais para o pensamento, antes disso, como repetirá mais tarde Locke, ela é como uma folha em branco. Isso não quer dizer que para os estóicos o papel da alma seja passivo, meramente receptivo de impressões sensoriais. Ela age ativamente para elaborar esses materiais que a levam ao conhecimento verdadeiro. A sensação por si só não leva a esse conhecimento.

O racionalismo e o empirismo clássicos são, ao mesmo tempo, base e referencial do debate epistemológico que marca a história do pensamento ocidental, em particular nos tempos modernos, do qual as obras de R. Descartes (1596-1650) e E. Kant (1724-1804), de um lado, e de J. Locke (1632-1704) e D. Hume (1711-1776), do outro, são, respectivamente, os principais expoentes.

Uma das idéias básicas de Descartes (Regulae, 1701) é que o conhecimento é um só, embora sua aquisição dependa inteiramente do uso da mente humana. Todos os seres humanos têm a habilidade natural de discernir o verdadeiro e o falso. O "poder de conhecer" é o mesmo, independentemente dos objetos a que ele é aplicado. Se bem aplicado, leva à verdade e à certeza; se mal aplicado leva ao erro e à dúvida. Mas ele faz da dúvida o princípio metodológico para chegar às idéias claras e distintas. Para duvidar tem que se pensar, e o ato de pensar conduz à certeza da própria existência. Desta evidência ele deriva todas as proposições filosóficas, uma das quais é que o universo é composto de duas substâncias distintas: a pensante, ou espírito, e a extensa, ou matéria, explicáveis pelas leis da ciência e as formulações lógicas da matemática. No caso do homem, essas duas substâncias, espírito e corpo, estão unidas de forma substancial através de um órgão específico, que ele identifica com a glândula pineal (Discours de la méthode, 1637). Esta concepção leva, naturalmente, a fazer da razão, se não a única fonte de conhecimento, pois existe o proveniente da experiência sensível, a única fonte de acesso ao conhecimento certo e seguro.

Inserida na época da exaltação iluminista da Natureza e da Razão, s. xviii, a obra de Kant, em especial A Crítica da Razão Pura (1781), constitui uma critica ao racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz por estes terem adotado em filosofia o método matemático. Se o matemático cria seus próprios conceitos e axiomas e faz suas próprias inferências com exatidão, o filósofo, segundo Kant, lida com conceitos metafísicos (espaço, tempo, causalidade etc.), morais e estéticos que ele não constróe nem são dados pela experiência, mas que são condição para que esta possa ser pensada e explicada. Trata-se das categorias a priori que, segundo Kant, entram em todo conhecimento humano. Tudo o que é dado na sensação torna-se parte de um sistema unificado da experiência, o que pressupõe a apercepção ou apreensão compreensiva da realidade, a qual transcende a mera percepção sensorial. A porta de passagem do racionalismo ao idealismo transcendental de Fichte, Shelling e Hegel está aberta.

J. Locke (1632-1704) foi o primeiro dos filósofos modernos a apresentar o empirismo de forma mais elaborada (An Essai Concerning Human Understanding, 1690). Partindo do princípio de que não existem idéias inatas e de que a mente é uma tabula rasa (evocação das tábuas de argila dos antigos onde eles registravam as coisas), ele sustenta que as idéias são o resultado de duas funções do entendimento: a sensação e a reflexão. A sensação é a via pela qual passam todas as impressões que vêm do mundo externo, fonte única das idéias, pois como diz o ditado empirista "nada existe na mente que antes não tenha existido nos sentidos". Embora as coisas não sejam necessariamente como elas aparecem, é através dessas aparências e só delas que o homem pode conhecê-las. Isso não quer dizer que todas as idéias procedem das sensações externas, pois Locke distingue duas categorias de idéias: as simples, originadas nas sensações, e as complexas, resultado da associação daquelas feita pela reflexão. O associacionismo tornou-se o modo de explicação mais importante do empirismo.

De forma semelhante, D. Hume (1711-1776) sustenta no seu Inquery Concerning Human Understanding (1748) que todos os objetos de conhecimento ou são impressões, resultado final das sensações que temos da experiência externa ou interna, ou são idéias, derivadas dessas impressões por associação (composição, transposição, aumento ou diminuição). O homem não cria idéias. Um tema central nas suas análises é a questão da indução, ou seja do papel que a experiência passada desempenha na previsão de fatos futuros, o qual tem a ver com nossas convicções e expectativas. Como diz Popper (1982), existem aí dois problemas: um lógico e o outro psicológico. O lógico é saber se é justificado raciocinar a respeito de casos dos quais não temos experiência a partir de outros dos quais temos. Sua resposta é negativa, por grande que seja o número destes casos. O problema psicológico é saber porquê, então, nós temos a convicção ou a crença de que as coisas continuarão acontecendo como aconteceram antes. A razão disso, segundo Hume, é porque estamos condicionados pelo efeito da repetição e pelo mecanismo da associação das idéias. Isso faz de Hume um empirista escético.

A insuficiência das concepções dualistas para analisar e explicar os fenômenos científicos é apontada por G. Bachelard. Analisando o que caracteriza o novo espírito científico, no livro que leva esse nome, ele contrapõe à visão filosófica dualista uma outra visão nascida da experiência científica: atividade científica, seja qual for seu ponto de partida, tem que levar em conta razão e experiência: se experimenta, tem que raciocinar; se raciocina, tem que experimentar (1934:7).

Entretanto, o que marca o movimento científico, segundo ele, ou seja seu vetor, é ir do racional ao real e não ao contrário. O novo espírito cientifico se afasta, igualmente, de um realismo imediatista - que faz da aparência do real o acesso direto ao conhecimento- e de um realismo agnóstico - que considera que a coisa em si, ou real, é inacessível à razão. O novo espírito cientifico afasta-se igualmente do racionalismo, que vê a realidade como coisa distante, opaca e irracional. O real cientifico está em relação dialética com a razão cientifica, diz Bachelard. Racionalismo e realismo se entrecruzam. Tomados separadamente, nenhum deles é suficiente para constituir a "prova científica". A relação razão x realidade, ou seu equivalente sujeito x objeto do conhecimento, é um movimento duplo através do qual a ciência simplifica o real e complexifica a razão. É o movimento que vai da realidade explicada ao pensamento aplicado. A técnica, ou seja a construção de instrumentos cada vez mais poderosos para desvendar o que se esconde atrás das aparências do real imediato, transformou o homem de ciência (a razão humana) num verdadeiro construtor do mundo, um demiurgo, como ele mesmo diz:

A ciência suscita um mundo, não mais por um impulso mágico, imanente à realidade, mas por um impulso racional, imanente ao espírito. Após ter formado, nos primeiros esforços do espírito científico, uma razão à imagem do mundo, a atividade espiritual da ciência moderna dedica-se a construir um mundo à imagem da razão (ib. pg. 17).

O caráter do novo espírito científico, de lidar com o que sempre foi considerado posturas epistemológicas irreconciliáveis, não elimina totalmente o dualismo mas o transforma num movimento dialético em que razão e realidade se interelacionam. Isso faz da ambigüidade uma característica nova da ciência, após descobrir (como no caso da mecânica quântica) que o ser real não é o signo da unidade e da simplicidade, mas da multiplicidade e da complexidade, feito de elementos contrários e complementares. A dúvida não é mais o ponto de partida da certeza, como pensara Descartes, mas da incerteza.

Embora trate-se de um debate filosófico, sua importação no campo da psicologia afetou os estudos do funcionamento mental, dando origem a diferentes "teorias da aprendizagem". Não cabe discutir aqui esta complexa problemática epistemológica, apenas enunciá-la para denunciar como insatisfatórias as teorias de natureza dualista. Na perspectiva histórico - cultural os dualismos se dissipam, penso eu, na medida em que o real é transformado em real simbólico pela ação da atividade instrumental - técnica e simbólica- do homem.

 

Acesso ao conhecimento

Falar de acesso ao conhecimento implica em várias coisas: (i) que existe um momento de não -conhecimento, negando-se toda e qualquer forma de inatismo, e que esses organismos dispõem de capacidades e de equipamentos adequados, cuja natureza tem que ser precisada, para aceder ao conhecimento; (ii) que existe algo, cuja natureza tem que ser precisada, que é objeto de conhecimento; (iii) que o conhecer é uma atividade que transcende os estados naturais dos organismos humanos, mesmo tendo lugar neles, negando-se toda e qualquer forma de biologismo geneticista ou maturacionista; (iv) que existe um meio de acesso, cuja natureza tem que ser precisada, destes organismos ao objeto de conhecimento. Além disso, os termos em contexto escolar, do enunciado do tema, especificam um determinado tipo de conhecimento: o conhecimento elaborado de forma sistemática, denominado científico.

Muitas questões para uma análise em tempo e espaço limitados como os dispostos neste momento. Mas, mesmo de forma sintética, falarei um pouco de cada uma delas, concentrando-me mais em duas que, pela sua especificidade, ajudam a esclarecer as outras: a natureza do conhecer e a natureza do objeto de conhecimento.

 

(i)Se há acesso ao conhecimento é porque existe um momento de não-conhecimento

Esta afirmação é mais complexa do que possa parecer à primeira vista. Primeiro, porque ela se refere ao conhecimento especificamente humano, ou seja àquele que não decorre única e exclusivamente da percepção sensível, comum às outras espécies não humanas; mas de um conhecimento que vai além da percepção sensível e tem lugar como ato de consciência, ou seja que resulta do distanciamento dessa percepção para fazer dela objeto de consciência reflexiva. Segundo, porque esse momento de não-conhecimento não pode ser localizado na história do gênero humano nem na história pessoal de cada ser humano. Especificamente, neste último caso, é difícil dizer, por exemplo, quando e como um recém-nascido começa a internalizar os conteúdos do meio cultural no qual está imerso desde o nascimento. A idéia de um momento de não-conhecimento traduz, antes de tudo, um dos principais pressupostos da corrente histórico-cultural de psicologia que tem como matriz o materialismo histórico e dialético, para o qual o conhecimento emerge na/da atividade do trabalho social, como afirmam Marx e Engels.

A produção das idéias, das representações e da consciência está, antes de tudo, direta e intimamente mesclada à atividade material e ao comércio material dos homens, ela é a linguagem da vida real. As representações, o pensamento, o comércio intelectual dos homens aparecem aqui ainda como a emanação direta de seu comportamento material. A mesma coisa ocorre com a produção intelectual tal como esta se apresenta na linguagem política, das leis, da moral, da religião, da metafísica etc. de todo um povo. São os homens os produtores de suas representações, de suas idéias etc. mas os homens reais, atuantes, tal como eles são condicionados por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e do modo de relações a elas correspondentes, incluídas as formas mais amplas que estas podem tomar (Marx & Engels, 1976:77).

Isso quer dizer que o conhecimento humano (idéias, representações etc.) do mundo e dele mesmo, tal como se apresenta na linguagem da vida real, é patrimônio acumulado pelos homens ao longo da sua história. Ele não emerge espontaneamente nos indivíduos como um produto do seu desenvolvimento biológico ou como simples resultado de respostas comportamentais dadas aos estímulos do meio natural (meio ambiente) e progressivamente aprendidas. Pelo contrário, o conhecimento não existe inicialmente no indivíduo, mas na sociedade em forma de práticas sociais. É aqui que cada um vai, pouco a pouco, descobrindo o que há muito tempo já foi descoberto pelos outros, tornando seu o que há muito tempo faz parte da existência dos outros. Daí a necessidade da linguagem, sob as suas várias formas, para comunicar-se com os outros e poder, assim, apropriar-se seu conhecimento, uma vez que a linguagem, como diz Vygotsky , tem essa dupla função: a de comunicação e a de representação constitutiva do pensamento.

O conhecimento emerge em e pelo trabalho social, pelo qual os homens, ao mesmo tempo, transformam a natureza, conferindo-lhe uma feição humana, e se transformam eles mesmos, humanizando-se.

O trabalho é antes de tudo um ato que se passa entre o homem e a natureza. O homem desempenha frente à natureza o papel de um poder natural. As forças de que o seu corpo é doado, braços e pernas, cabeça e mãos, as põe em movimento, afim de assimilar-se matérias conferindo-lhes uma forma útil para a sua vida Ao mesmo tempo que por este movimento ele age sobre a natureza exterior e a modifica, modifica sua própria natureza e desenvolve as capacidades adormecidas nele... O resultado ao qual chega o trabalho preexiste idealmente na imaginação do trabalhador (Marx, 1977:136).

Duas coisas chamam a atenção nessa citação de Marx. De um lado, que em cada descendente de seres humanos existem, em razão da experiência cultural conservada em memória genética, as características adquiridas por eles ao longo do tempo e que Marx denomina de capacidades adormecidas. Se existe um momento de não-conhecimento, existe em todos os seres humanos, desde o nascimento, a capacidade para conhecer, falar, ter consciência etc. De outro lado, que o produto do trabalho preexiste na mente do trabalhador e que, por conseguinte, aquele é a objetivação da atividade deste. O produto é a materialização do saber do seu produtor e, por isso mesmo, objeto cultural no qual descobrimos a idéia presente na mente dele.

 

(ii) O conhecer é uma atividade que transcende os estados naturais dos organismos humanos

Como acabamos de ver, o conhecer humano, na perspectiva histórico-cultural, emerge na atividade dos homens cuja especificidade é ser produtiva e instrumental. Ser instrumental significa, fundamentalmente, duas coisas: que ela é sempre mediada por instrumentos inventados pelos próprios homens em função dos objetivos da ação e que tanto os instrumentos quanto o produto da atividade são socializáveis, ou seja podem ser usados e compreendidos pelos outros homens. Isso constitui um dado novo na história da evolução.

Como diz Vygotsky (1994), os instrumentos são de dois tipos: técnicos, artefatos fabricados pelo homem para agir sobre a matéria, e semióticos, sistemas de signos inventados por ele para agir sobre as pessoas e sobre si mesmo. De natureza diferente, esses dois tipos de instrumentos têm duas coisas em comum: servir de mediadores nas relações dos homens com o mundo e entre si e conferir à atividade o poder de transformar a realidade. Mas, o que tem a ver isso com a questão do conhecer? Tem e muito.

Em primeiro lugar, a instrumentalidade técnica pressupõe que o sujeito da atividade antecipa o resultado da sua ação ao criar o artefato adequado e necessário para realizá-la. Isso implica ter uma certa idéia preliminar tanto da natureza do objeto da atividade quanto dos efeitos possíveis dessa atividade. Essa idéia é verificável no produto da atividade, uma vez que este é a materialização daquela. A atividade instrumental engendra uma relação dialética entre o sujeito e o objeto da atividade que dá origem a uma progressiva transformação de um e de outro, conforme representado na fig. 1:

 

       (a)   

 I 

 

              

 

Figura 1 - Diagrama da atividade humana e da relação epistemológica equivalente, segundo o modelo histórico-cultural de psicologia. Onde, (a) representa o ciclo completo da ação criadora do Homem que, ao agir sobre a Natureza -com a ajuda dos instrumentos técnicos e semióticos criados por ele- a transforma em produções culturais ao mesmo tempo que se transforma ele mesmo (aquisição de novos saberes, capacidades e habilidades) ao reapropriar-se o resultado da sua ação; e (b) representa a dimensão epistemológica de todo esse processo: o objeto de conhecimento, fonte do saber humano, é, ao mesmo tempo, produto desse mesmo saber.

Em segundo lugar, se o produto é a materialização da idéia que preside a ação, isso quer dizer que nele existe um valor agregado que não é apenas da ordem da materialidade do objeto, mudança de forma, mas, principalmente, da ordem da semiótica, significação da atividade e do seu resultado. Dessa maneira, o produto da atividade torna-se objeto de conhecimento: técnico, saber fazer (desenvolvendo o sujeito determinadas habilidades relativas ao tipo de ação que realiza), e semiótico, saber a respeito da natureza da coisa feita ou idéia materializada.

Existe outro tipo de atividade instrumental cujo objeto não é a realidade material mas as idéias : seja as idéias a respeito desta realidade, como no caso das ciências da natureza, seja as idéias das idéias, como no caso das ciências ou saberes puramente especulativos (filosofia, lógica, matemática etc.). Embora de natureza diferente, este tipo de atividade obedece igualmente ao paradigma representado na fig. 1: agindo sobre as idéias, objeto da atividade, o sujeito as transforma num produto que implica um novo valor agregado de natureza exclusivamente semiótica. Diferentes pela natureza do objeto, essas duas formas de atividade têm em comum a dimensão semiótica.

Pelo que acaba de ser exposto, podem ser tiradas algumas conclusões lógicas. Primeiro, conhecer é uma atividade de natureza semiótica, mesmo quando o objeto de conhecimento é um saber fazer técnico. Segundo, o conhecer resulta de uma relação dialética e dinâmica entre o sujeito e o objeto da atividade, o que quer dizer que o conhecimento emerge dessa relação. Terceiro, resulta daí que o objeto de conhecimento não é uma coisa (material ou imaterial) mas um processo : o processo de transformação do objeto da atividade em seu produto ou, em outros termos, o processo de transformação da idéia que preside a atividade.

 

(iii) O objeto de conhecimento

Nos itens anteriores, duas coisas foram salientadas: que o conhecer é uma atividade de natureza semiótica e que o objeto de conhecimento é o processo de transformação da idéia que preside essa atividade. Isso nos coloca a questão da natureza e da função dos signos.

A invenção dos sistemas de signos, em particular os lingüísticos é, sem dúvida alguma, a mais importante das invenções humanas dado o papel que eles desempenham na constituição e na evolução social dos homens. A função de representação dos signos permite-nos recriar a realidade material conferindo-lhe uma nova forma de existência: a existência simbólica. Mas, em que consiste a função de representação?

O conceito de representação não é simples, muito menos consensual. No campo da teoria do conhecimento, adotada neste trabalho, a representação pode ser entendida como função e como objeto mental. Como objeto mental é o desdobramento do real no seu equivalente simbólico. Dada a limitação deste trabalho, não entrarei aqui na discussão desta questão. Limito-me apenas a dizer alguma coisa a respeito da representação como função.

Representação como função é a qualidade atribuída às coisas de substituir e evocar outras. Representar é a função principal do signo, o qual, segundo uma das linhas do pensamento antigo retomada por Ch. S. Peirce (1976), é uma estrutura relacional do tipo:

 

 

onde, x (o signo) é posto em relação com y (seu objeto) em função de um terceiro elemento z, denominado por Peirce de interpretante, que é a razão ou princípio da relação. Assim, a palavra "pai" (signo verbal) pode ser relacionada com um determinado tipo de pessoa (objeto) em razão da idéia de "paternidade". A idéia de paternidade constitui, portanto, o interpretante que nos permite chamar a essa pessoa de "pai". É evidente que a idéia de "paternidade" envolve inúmeros aspectos que não só variam em razão das condições históricas de cada grupo cultural, mas que podem não ser todos "captados" por quem pronuncia a palavra "pai". Isso quer dizer que o interpretante (elemento z) não está nem em x nem em y, mas surge na mente do intérprete quando este consegue estabelecer algum tipo de relação entre esses elementos. Para tanto, diz Peirce, é necessário que ele tenha alguma idéia ou noção prévia (ele fala de conhecimento colateral) do que é ser pai, pois, do contrário, essa palavra não terá nenhum sentido para ele, não conseguindo estabelecer a relação x < > y. Isso quer dizer também, que o interpretrante é algo dinâmico, pois depende tanto das mudanças que podem ocorrer na idéia de paternidade num dado grupo cultural quanto do grau de informação que o intérprete tem a respeito dela.

Em Vygotsky (1989), o signo lingüístico -objeto particular de suas análises da relação entre pensamento e fala- embora diferente do signo de Peirce, tem também uma estrutura triádica:

 

PALAVRA                             OBJETO
     (som)                  (referente)
    SIGNIFICADO

 

Essa estrutura, porém, só se constitui de forma lenta na criança, numa espécie de evolução em três tempos: primeiro, ela associa PALAVRA < > OBJETO diretamente; mais tarde, internaliza os significados sociais das palavras, PALAVRA < SIGNIFICADO > OBJETO, finalmente distingue os três elementos, tornando-se capaz de dissociá-los e reassociá-los de forma livre, como ocorre no jogo simbólico (Vygotsky, 1989a) , o qual constitui um verdadeiro "jogo de sentidos" fora de qualquer convenção social.

Nas suas análises sobre a relação entre pensamento e fala, Vygotsky faz do significado das palavras o elo de união entre ambos, pois sendo uma generalização ou conceito, é ao mesmo tempo um ato de fala e um ato de pensamento. Graças à palavra, símbolo lingüístico, o homem pode transpor o universo das singularidades, ou das realidades concretas, e construir um outro universo, o das generalizações, universo das idéias gerais e dos conceitos, onde opera o pensamento abstrato e científico.

 

(iv) O meio de acesso ao conhecimento

Do que já foi dito, pode deduzir-se que o saber humano historicamente produzido e conservado ao longo dos tempos é de natureza semiótica. Isso quer dizer que é ele tem uma estrutura simbólica. Ora, todo símbolo é constituído, como já foi visto, de três componentes básicos :

Isso tudo para dizer que, uma vez que o conhecimento constitui uma estrutura simbólica, o acesso a ele se dá pela capacidade de relacionar "coisas" (signos ou materialidades) com "coisas" (realidades materiais ou imateriais). Em outros termos, isso quer dizer que o acesso ao conhecimento reside, fundamentalmente, em descobrir (interpretar) a razão que permite que essas "coisas" possam ser relacionadas.

 

QUESTÕES PSICOLÓGICAS

Dados os objetivos propostos para este trabalho, limito-me a analisar as vias de acesso da criança ao conhecimento em geral e ao conhecimento científico em particular. A razão da escolha da criança como referência desta análise deve-se ao fato de ser a infância / adolescência o momento fundamental em que o ser humano lança as bases do seu conhecimento do mundo.

O primeiro contato que a criança tem com o mundo é através da sensorialidade e da motricidade. É um contato que poderíamos chamar de naturalista, pois resulta das características orgânicas da criança, muito semelhantes às de outras espécies. Trata-se de um contato que permite, sem dúvida, uma primeira forma elementar de conhecimento. A realidade material é captada pelos órgãos sensoriais através dos sinais físicos que ela emite (luminosos, acústicos, térmicos etc.). Estes sinais, transformados em impulsos elétricos no nível dos receptores e após serem processados pelas áreas sensoriais do cérebro, convertem-se em imagens sensório-perceptivas que reproduzem o real. Por outro lado, a motricidade, ao permitir à criança agir sobre o real, possibilita-lhe verificar, de certa forma, o fundamento real dessas imagens. A natureza "realista" das imagens cria a ilusão da captação direta do real.

Essa primeira forma de contato com a realidade mostra já que o conhecimento do real não é nem direto nem imediato, mas mediado por sinais, parecido com o que ocorre no mundo animal. É evidente que essa forma de conhecimento não é suficiente para poder falar de conhecimento propriamente humano da realidade e que, como tudo o indica, sem a criação de sistemas de signos, o homem não conseguiria ultrapassar a materialidade ou aparência das coisas. É o que ocorre com a criança. Só o acesso dela aos sistemas de signos (em particular, as diferentes formas de linguagem) permite-lhe representar-se o real de maneira independente da sua materialidade e tornar-se capaz de reconstituí-lo não apenas no nível das imagens, mas das suas representações simbólicas. Graças aos sistemas de signos, uma espécie de "jogo de substituições", o real é recriado como uma rede de relações significativas, conferindo-lhe um determinado ordenamento lógico que o torna inteligível. É por esse caminho que o homem cria o mundo "à imagem da razão", como diz Bachelard.

Antes de ter acesso pleno aos processos representacionais, a criança permanece "cativa" do aspecto imagético ou figurativo das coisas, explicando suas transformações através de modelos míticos como o animismo, o realismo etc. estudados por Piaget (1967). Só quando a força das representações impõe a sua lógica à evidência aparente das imagens é que a criança tem acesso ao mundo real dos homens: mundo dos ordenamentos lógicos da ciência.

Entretanto, essa passagem não é simples obra da criança nem mero efeito das suas relações com o real, mas abertura dela, cada vez maior, ao mundo de representações construído pelos homens, mundo constituído de idéias e de modelos explicativos (modelos científicos) da realidade, pois por muito sugestiva que possa parecer a metáfora "o mundo é um livro aberto", ela só tem sentido se existir alguém que detenha os códigos que lhe permite a leitura desse "livro", caso contrário ele permaneceria eternamente fechado para os homens, como permanece para as outras espécies. No caso da criança, essa abertura só ocorre pela progressiva apropriação, por parte dela, das várias formas de mediação simbólica criadas pelos homens ao longo da história, sem o qual o conhecimento do mundo permaneceria um mistério para ela. Mas, o que é a representação?

O conceito de representação não é simples, muito menos consensual. Ele é utilizado para significar coisas diferentes. No campo da teoria do conhecimento, esse termo pode ser entendido como significando uma função ou um objeto mental. Como função, a representação é a propriedade que têm as coisas - atribuída a elas pelos homens- de substituir e evocar outras. Como objeto mental, a representação é o desdobramento do real no seu equivalente simbólico, o que implica a função semiótica. Se é fácil entender a representação como função, não é igualmente fácil entender a representação como objeto mental nem a maneira como este objeto se constitui. Questão importante, pois do acesso à representação depende o acesso ao conhecimento humano.

Na introdução ao seu livro A representação do mundo da criança (1972), Piaget pergunta-se se esta acredita, como o adulto, que existe um mundo real, objetivo, distinguindo essa crença das ficções do jogo e da fantasia. O autor conclui que isso não ocorre antes dos 7-8 anos. Até essa idade a criança é realista ou seja não distingue o pensamento do objeto pensado, o nome da coisa, o sonho da realidade. O realismo consiste na tendência natural dela a confundir o significante e a coisa significada, o mundo interno e o mundo externo, a experiência psíquica e a realidade física (1972 : 106-107). Pode concluir-se daí que a criança só tem acesso ao mundo representacional em idade tardia.

Entretanto, de acordo com esse autor, no fim do segundo ano ocorre uma mudança radical na criança: esta passa do nível da ação direta sobre o real à ação interiorizada, condição das operações mentais. A interiorização é resultado da função semiótica, cuja emergência Piaget a relaciona com o aparecimento de "um conjunto de condutas que implica a evocação representativa de um objeto ou evento ausente e que supõe por conseguinte a construção ou o emprego de significantes diferenciados" (Piaget & Inhelder, 1971:42). Existe, portanto, um longo período de gestação da função representativa, gerada pela função simbólica.

A dificuldade de aceder à representação reside, segundo estes autores, na dificuldade que a criança encontra para liberar-se do efeito de impregnação que o aspecto figurativo das coisas (ou imagem mental) exerce sobre ela, o qual é um obstáculo para a dominância do aspecto operativo ou das transformações. Em outras palavras, enquanto a forma da imagem predominar sobre o conteúdo a representação será incompleta.

A questão da representação não é trabalhada por Vygotsky, nem pelos outros autores da corrente histórico - cultural, de forma específica, como o faz Piaget. A explicação poderia estar no fato que, mesmo sendo central nas duas perspectivas, os enfoques são diferentes. O ponto comum entre esses autores, incluindo também aqui Wallon, é que a representação é resultado da atividade semiótica, ou "função semiótica" como falam Piaget e Wallon. A diferença está em que, enquanto em Vygotsky a atividade semiótica confunde-se com o próprio regime dos signos - dentre os quais ele privilegia os lingüísticos -, a "função semiótica" aparece em Piaget como uma função autônoma, da qual emerge a inteligência representativa (1971:72). Apesar do papel "instrumental" que Piaget parece atribuir à linguagem, ele reconhece que esta exerce um papel mais importante que o das outras atividades semióticas na formação do pensamento representativo:

É necessário todavia reconhecer que neste processo formador a linguagem desempenha um papel particularmente importante, pois, contrariamente aos outros instrumentos semióticos [...] ela já está totalmente elaborada socialmente e contem antecipadamente [...] um conjunto de instrumentos cognitivos (relações, classificações etc.) a serviço do pensamento (ib. pg. 68-69).

Em Vygotsky, a função representativa é função da linguagem, junto com a função comunicativa, como veremos depois. A razão é simples: a função representativa é o que define o signo, portanto é a função específica dos sistemas sígnicos como a linguagem. Mas existe um ponto que parece ter escapado a Piaget: é que a percepção sensorial, primeira forma de conhecer o real, já está marcada semioticamente, mesmo que a criança não o saiba:

Um aspecto especial da percepção humana - que surge em idade muito precoce- é a percepção de objetos reais. Isso é algo que não encontra correlato na percepção animal. Por esse termo eu entendo que o mundo não é visto simplesmente em cor e forma, mas também como um mundo com sentido e significação (1984, pg.37)

Isso significa que quando a criança entra em contato com o mundo dos objetos e os manipula (nível sensório motor de Piaget) não são apenas objetos o que ela percebe mas objetos semióticos, ou seja "objetos com nome" ou significação (sejam eles físicos ou imaginários). Como diz Vygotsky, o que ela vê não é algo redondo e preto com dois ponteiros, mas um relógio, podendo distinguir cada um dos seus componentes (a menos que ela nunca tenha ouvido falar de relógio). Em outros termos, junto com a imagem visual do objeto, a criança capta a palavra que lhe confere significação, mesmo se nessa idade palavra e objeto se confundem. Imagem e significação, e não apenas imagem, como parece desprender-se das análises de Piaget, permitem à criança conhecer o objeto. É claro que para que a criança possa formar a representação do relógio, o que implica a abstração da significação da imagem, de forma a generalizá-la a outros objetos similares- ela terá que evoluir no uso da linguagem, ao ponto de tornar-se capaz de desconstruir a palavra nos seus elementos sígnicos para poder "manipular" a significação, ou seja para ser capaz de realizar o "jogo de sentidos" que os signos possibilitam. É justamente essa relação íntima que existe entre a percepção do real e a palavra (depois que os homens recriaram o mundo no nível simbólico) que permite a Vygotsky afirmar:

O significado de uma palavra representa uma amálgama tão estreito do pensamento e da linguagem, que fica difícil dizer se trata-se de um fenômeno da fala ou de um fenômeno do pensamento [...] o significado de cada palavra é uma generalização ou um conceito [...] E como as generalizações e os conceitos são inegavelmente atos do pensamento, podemos considerar o significado como um fenômeno do pensamento [...] É um fenômeno do pensamento verbal, ou da fala significativa - uma união da palavra e do pensamento (1989: 104).

Segundo Piaget & Inhelder (1966), a imagem mental é de natureza simbólica, o que poderia levar à conclusão que sua concepção está próxima à de Vygotsky. Mas para entender o que querem dizer com isso, é necessário lembrar que, segundo eles, a função semiótica recobre tanto os símbolos - que implicam uma relação de semelhança entre simbolizante e simbolizado- quanto os signos - onde a relação entre significante e significado é de natureza arbitrária e social (ib. pg. 447). Em contraposição aos signos, que são de origem social, os símbolos podem ser criações individuais (1971: 45). Isso explica porque esses autores conferem à imagem mental um caráter simbólico: ela é uma criação individual que guarda uma analogia ou semelhança com o objeto real que substitui, como o mostra seu aspecto figurativo. Não é mera cópia do objeto, mas não deixa de ser sua reprodução, como o desenho, o jogo do "faz de conta" e a imitação o são dos seus respectivos modelos. Talvez seja esta concepção do símbolo, um equivalente do ícone de Peirce, que os leve esses autores a dispensar a palavra na função representativa da imagem.

Tal concepção difere da idéia que Wallon e Vygotsky têm da atividade semiótica. Tanto no caso da imitação, analisada em detalhe por Wallon (1942), quanto no caso do jogo simbólico, detalhado por Vygotsky (1984), o que torna semióticas essas atividades é a significação que elas têm para o outro (grupo social) e não sua semelhança com o objeto representado, a qual nem sempre existe.

As coisas em si não seriam totalmente conhecidas se não fossem reconhecidas pelo pensar humano através da palavra. É o que ocorre com a criança antes que ela adquira a palavra que diga o que é a imagem fugaz da coisa, feita esta de impressões sensoriais que se fazem e desfazem como pequenos cristais num caleidoscópio. A palavra, mesmo ainda confundida com a imagem (primeiros anos da infância), confere a esta sua significação. Ao nomear as coisas, a palavra (logos) diz o que elas são. Em outros termos, a palavra associa a ordem do real (o das coisas) à ordem do simbólico (das suas representações), o que torna aquela pensável e comunicável. Isso coloca a questão dos signos.

Não existe consenso entre os autores sobre a definição do signo nem dos critérios para a sua classificação. Segundo uma antiga linha de pensamento retomada por Peirce (1976), um signo é qualquer coisa (representamen ou significante) que serve para representar outra coisa (objeto ou referente) para alguém sob algum aspecto (interpretante ou significado). Por exemplo, o som "casa" (significante) serve aos integrantes de uma mesma comunidade lingüística para se representarem o objeto casa (referente) sob o aspecto de "lugar de residência" (significado) que o distingue de outras construções (como mercado, igreja. colégio etc.). O signo implica, portanto, três elementos: um significante (realidade física: gesto, som, grafismo ou imagem), um referente (aquilo, material ou não, a que o significante refere) e um significado (aspecto sob qual o significante refere ao referente). Esta definição triádica do signo difere da definição didática dada por F. Saussure (1987), para quem o signo (ele só fala do signo lingüístico) é uma unidade composta de dois elementos: o significante (ou imagem acústica) e o significado (ou conceito), tradição na qual situa-se Piaget.

O que define os signos é sua função representativa. Eles foram criados pelos homens para representar-se o real (objetivo e subjetivo) e comunicar suas experiências. Como tais, resultam de uma convenção social que atribui a determinadas coisas a função de representar ou significar outras. Uma das características dos signos é que, pela sua própria natureza, admitem múltiplas significações (polissemia) o que faz que eles não garantam uma interpretação única nem, por isso mesmo, segura da realidade que significam. Cabe aos indivíduos interpretá-los em função do contexto em que eles se apresentam, correndo sempre o risco de cometer erros de interpretação (Pino, 1991).

Nas sociedades históricas, o sistema de signos lingüísticos adquiriu um papel dominante. A razão disso reside, sem dúvida, na sua maior funcionalidade para a comunicação humana e para a produção do pensamento. Nos seus estudos sobre as relações entre linguagem e pensamento, Vygotsky (1984) mostra que, a palavra (signo lingüístico) tanto serve para indicar um objeto concreto na sua individualidade como para representar as características comuns a diferentes objetos. Por exemplo, a palavra "casa" tanto pode servir para indicar uma casa concreta como a casa em geral, ou seja toda e qualquer construção que reuna as características atribuídas à palavra "casa". No primeiro caso, a palavra deve estar contextualizada, ou seja, acompanhada de "indicadores", lingüísticos ou não, que permitam identificar a casa de que se fala. No segundo caso, a palavra aparece descontextualizada, seu significado então eqüivale a um conceito. Desta forma, diz Luria (1987), a palavra cumpre o enorme trabalho realizado na história social da linguagem: servir de meio de comunicação e de instrumento do pensamento.

Se as pessoas não têm dificuldade, em geral, para entender a função comunicativa da linguagem, o mesmo não ocorre com a sua função representativa. Em sentido amplo, representar significa, tornar presente algo ausente ou apresentá-lo de outra maneira. Entendido assim, a imagem mental, uma imagem essencialmente de memória (Changeux, 1985), pode ser vista como uma representação do real. Todavia, em sentido restrito, esse termo aplica-se, com mais propriedade, à função atribuída aos sistemas de signos, os quais permitem reconstruir o real num nível em que a relação entre a representação e a coisa representada ou não tem fundamento natural, mas convencional (o símbolo, um dos tipos de signo de que fala Peirce), ou tem apenas um fundamento analógico ou de equivalência (o ícone e o índice, respectivamente, outros dois tipos de signo de Peirce).

Limitando-me aos signos lingüísticos, pode-se dizer que sua função representativa supõe o poder de generalização das palavras, a qual, por sua vez, envolve várias operações que constituem um trabalho de desconstrução / reconstrução do real, característica do processo de conhecer. Essas operações são fundamentalmente quatro: análise ou desconstrução de um todo nos seus elementos constitutivos; abstração ou individualização dos elementos de acordo com suas peculiaridades; generalização ou identificação de elementos comuns a varias realidades diferentes; agrupamento dos elementos comuns em sistemas abstratos complexos: os conceitos. Segundo Changeux, do ponto de vista da sua formação neurológica, existe um "parentesco" entre impressões sensoriais (o percepto), a imagem (formada delas) e o conceito (constituído de elementos abstratos da imagem).

O conceito aparece como uma imagem simplificada, "esquelética", reduzida aos traços essenciais, formalizada, do objeto designado. Desenha-se a existência de um "parentesco" entre o percepto, a imagem e o conceito, que sugere uma mesma materialidade neural em todos eles (Changeux, 1985: 179).

Dentro dos devidos limites, esse parentesco faz sentido pois a materialidade dos signos são os sinais procedentes do real que constituem nossas impressões sensoriais, das quais são feitas as imagens. Isso coloca o difícil problema - ainda não plenamente esclarecido- da natureza da significação.

As diferentes operações acima descritas só são possíveis em razão, particularmente, da natureza representativa da linguagem. Como o mostra Vygostky nos seus trabalhos sobre o significado das palavras (1984, 1989), este permite a formação de conceitos e de sistemas conceituais de complexidade crescente, constitutivos do pensamento.

Se as imagens sensoriais constituem a única forma da relação da criança com o mundo na primeira fase da infância, expressão da sua realidade biológica, pouco a pouco, porém, os processos representacionais vão instalando-se nela ao longo da infância, adquirindo formas cada vez mais complexas em função da progressiva complexificação da rede neural e da experiência cultural da criança. Surgem assim, a partir da linguagem, os sistemas conceituais cada vez mais complexos, cuja análise foi objeto das pesquisas de Vygotsky e sua equipe (1989). Esses sistemas conceituais habilitam a criança a lidar com formas de pensamento de natureza lógica proposicional. Sem um bom domínio da linguagem (ou, na sua ausência, de outros sistemas sígnicos equivalentes), a criança dificilmente terá acesso a essas formas complexas de pensamento que lhe abram o caminho do conhecimento da realidade oculta das coisas.

 

QUESTÕES PSICOPEDAGÓGICAS

Como já foi salientado no início deste trabalho, as várias concepções sobre a natureza do conhecimento e dos processos da sua aquisição determinam diferentes concepções dos modos de ensino escolar. Das várias significações atribuídas ao ato de ensinar, cabe destacar as duas que parecem dominar, atualmente, a prática pedagógica: a que concebe o ensino-aprendizagem escolar como simples transmissão e a que o concebe como um trabalho de descoberta-pesquisa. Essas concepções, como foi dito, determinam modos de ensinar que, por sua vez, determinam formas diferentes de relação pedagógica, com repercussões nos resultados escolares da criança.

As teorias do conhecimento não são, necessariamente, as melhores "conselheiras" para definir uma prática pedagógica. A transposição pura e simples de uma teoria psicológica ao campo pedagógico tem resultado em saldos mais negativos que positivos particularmente se aquele que realiza essa operação não reúne suficiente conhecimento da teoria e uma boa dose de habilidade pedagógica (uma vez que a simples experiência, contabilizada em termos de anos de trabalho, nem sempre é uma garantia de competência). Se isso é verdade em relação a teorias fortemente estruturadas - como o modelo epistemológico piagetiano- com maior razão deve sê-lo em relação a elaborações teóricas que, apesar da sua sólida consistência epistemológica, não têm a pretensão de constituir um modelo teórico acabado, como ocorre com a corrente histórico - cultural.

 

Modelos de relação pedagógica

A continuação é apresentado um quadro composto de possíveis combinações dos elementos que integram a relação pedagógica (S1 / Objeto de conhecimento / S2) em função das diferentes concepções que se tem do ato de ensinar . Elas traduzem duas concepções principais: as de tipo transferencial (onde o conhecimento passa de S1 a S2) e as de tipo descoberta-pesquisa (onde o conhecimento é resultado de descoberta por parte de S2 sob a guia de S1). Vejamos as possíveis combinações :

 

S1 (professor) repassa a S2 (aluno) as informações a respeito do OC que ele retira de livros.

 

                   OC

                       S1        S2

 

S2( aluno) reproduz as informações a respeito do OC retiradas de livros indicados por S1 (professor).

 

OC
                     
         S1 ---------------------- S2

 

S1 (professor) repassa a S2 (aluno) as informações a respeito do OC elaboradas por ele.

 

OC
S1            S2

 

S2 (aluno) elabora informações a respeito do OC obtidas nas fontes indicadas por S1 (professor)

 

OC
                       
          S1------------------------- S2

 

S2 (aluno) elabora informações a respeito do OC procuradas nas fontes sob a guia de S1 (professor).

 

OC

   S1                                             S2

 

A) Na concepção de tipo transferencial (cujas formas são mostradas em I, II, III), o conhecimento é visto como simples reprodução por um sujeito "suposto não-saber" (S2), o aluno, de determinadas informações existentes num outro sujeito "suposto saber" (S1), ou numa determinada fonte ("livro didático") indicada por este. S1 pode limitar-se a repassar a S2 as informações contidas em livros de texto ou pode reelaborá-las a partir de outras obtidas em outras fontes. No extremo, S1 pode limitar-se a "cobrar" de S2 a reprodução das informações contidas num determinado "livro de texto". Em todos esses casos, S1 espera que S2 seja capaz de reproduzir - retornos controlados através de provas- o maior número possível de informações, sem dar maior atenção à sua assimilação e compreensão. S2 mantém com o OC uma relação fundamentalmente passiva e com S1 uma relação de subordinação. O ensino deste tipo, de forma geral, vê a aquisição do conhecimento como uma simples reprodução do que já existe "em algum lugar".

O aspecto mais negativo desses três modelos é que S2 (o aluno) não é orientado para encontrar a natureza semiótica do conhecimento, ou seja a razão (z) que permite relacionar uma coisa (x), teoria, com outra coisa (y), realidade (idéias, eventos, fenômenos etc.). Exemplos desse tipo de compreensão da aquisição do conhecimento são os sistemas de ensino fundados na memorização, mera retenção de informações, e na repetição de operações (a que se reduzem certas aquisições de conhecimentos matemáticos).

B) Na concepção do tipo descoberta-pesquisa (cujas formas são mostradas em IV, V), a aquisição do conhecimento é vista, de forma geral, como um processo de procura e elaboração por parte de S2 das informações a respeito de um determinado OC existentes em diferentes fontes, sob a orientação de S1. Os princípios subjacentes a esta concepção são: de um lado, que o conhecimento não existe num "lugar" preciso mas difundido em inúmeras fontes e, do outro lado, que ele tem que ser, de alguma maneira, "refeito" por S2 com a ajuda de S1, que por ser mais "experimentado" é capaz de guiar S2 seja só na sua procura (caso IV) seja também no processo de sua elaboração (caso V).

A investigação e a elaboração são condições necessárias para falar de reprodução do conhecimento, ou em termos mais adequados, de constituição do conhecimento no sujeito conhecedor. A investigação do objeto de conhecimento (idéias, eventos, fenômenos etc) suscita, logicamente, questões e interrogações que esperam serem respondidas com ajuda das explicações já disponíveis (dadas por outros investigadores) ou, até mesmo, procurando uma nova explicação quando aquelas não parecem ser totalmente satisfatórias. Se o conhecimento é uma produção social é porque ele é obra de muitos "outros", os quais se constituem por isso mesmo em guias na atividade de conhecer. Mas, a investigação leva, logicamente, à elaboração pessoal das explicações já disponíveis, de forma que elas passem a constituir o arsenal de conhecimentos constitutivo do sujeito conhecedor. O aspecto mais positivo destes dois modelos é que S2 (o aluno) é orientado por S1 (professor) para encontrar a natureza semiótica do conhecimento, ou seja a razão (z) que permite relacionar uma coisa (x), teoria, com outra coisa (y), realidade (idéias, eventos, fenômenos etc.).

Esta atividade de conhecer, permanecendo uma atividade pessoal de cada sujeito, ganha o pode ocorrer seja de forma solitária, seja de forma solidária, onde S2 trabalha com S1 e sob a sua guia. Cabe incluir na forma solidária a investigação / elaboração com outros S2 (companheiros de classe).

 

 


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