Jogo
e Educação na República
de Platão
http://www.bu.edu/wcp/Papers/Educ/EducKren.htm
Arthur A. Krenz
Resumo:
Este artigo analisa a conexão
entre jogo (paidia)
e educação (paidéia)
na República de Platão.
Mais exatamente, procura-se
mostrar que o diálogo apresenta
duas abordagens pedagógicas
opostas entre si em relação
à educação da liderança
política: a primeira, a
abordagem de um amante socrático
da sabedoria, procura libertar
os cidadãos através do jogo
filosófico fundado no ideal
de excelência (areté), que
visa à construção de uma
sociedade justa para o bem
público; e a segunda, a
abordagem dos sofistas tirânicos
que educam através da força
coercitiva para a obtenção
de vantagens particulares
e escravização dos cidadãos
em benefício dos fins pessoais
do governante. A República
de Platão pretende mostrar
que o “jogo” filosófico
é o melhor meio pedagógico
para educar uma coletividade
justa e preparar os líderes
filosóficos para governar.
Este
artigo traça uma conexão entre
jogo (paidia) e educação (paidéia)
na República de Platão.(1)
Neste diálogo, o jogo é apresentado
como o melhor meio pedagógico
para a educação de uma coletividade
justa e para o cultivo dos líderes
que podem se valer de seus conhecimentos
e experiências para estabelecer
uma cidade justa (pólis). Minha
abordagem hermenêutica à República
é modelada pelas abordagens
mais recentes aos diálogos de
Platão, que consideram a forma
do diálogo como significativa
para o entendimento do conteúdo
dos diálogos. Específico à conexão
entre jogo e educação na República
é o contexto dramático que identifica
uma batalha de vida e morte entre
a filosofia (liberdade)
e a sofística (tirania)
no que concerne à educação (cultura)
e à liderança no estabelecimento
da “cidade” justa.
Educação e jogo no contexto do
diálogo, os personagens, e a batalha
entre o livre jogo da filosofia
e o controle tirânico dos sofistas.
A forma dramática da República,
o caráter dos participantes
e o contexto político-social dos
eventos em Atenas e na Grécia
durante o tempo de Socrátes e
Platão, tudo isso tem importantes
implicações para a interpretação
do significado filosófico do diálogo.(2)
Eles ajudam o leitor a entender
seu objetivo e propósito central
– a construção (linguística) de
uma cidade justa (polin...logo,
2.369a; lexeos, 5.473a) e o cultivo
de quem governará uma comunidade
de modo justo.(3) Este objetivo
é apoiado pela busca filosófica
do Bem, a proteção da cidade justa
dos perigos que ameaçariam ocasionar
seu declínio e sua queda, e os
meios educacionais mais prováveis
para tornar possível a construção
desta cidade justa. A proposta
socrática de um processo educacional
que visa a criação de uma cidade
livre e libertadora é lúdico em
seu estilo, mas séria em
sua intenção. Previsivelmente,
este caráter lúdico é apresentado
no contexto da luta (agón) e da
contestação. Este conflito entre
as duas abordagens educacionais
– a saber, o aprendizado pela
força ou pela coerção (bía) versus
o aprendizado pelo livre jogo–
manifesta-se no conflito entre
força tirânica e persuasão filosófica,
entre a sofística e a filosofia,
e entre a vantagem particular
e o bem público.
A importância do jogo (paidiá)
na República é refletida na interação
dos interlocutores, e é particularmente
predominante no pensamento e na
vida de Sócrates e em sua extensa
discussão com Trasímaco, um arqui-sofista,
e com os dois irmãos de Platão,
Adimanto e Glaucon. Sócrates,
principal o “jogador/personagem”
do diálogo, na medida em que considera
a importância da dialética
na educação dos governantes filósofos,
descreve sua discussão com Adimanto
e Glaucon sobre a educação dos
líderes filósofos e a constituição
da “cidade em palavras” como uma
“brincadeira” (paidzomen, 7.536b-c).
Os leitores do diálogo são avisados
de que o relato falado e
escrito dos procedimentos não
é de primeira mão, mas uma “re-apresentação”
– uma nova narração de memória
– por Sócrates, que “ontem” ficou
acordado durante toda a noite
conversando no Pireu sobre a desejabilidade
de uma vida justa e de uma sociedade
justa. Leva-se aproximadamente
10 horas para ler o diálogo em
voz alta. Assim, é provável que
a conversação real tenha durado
pelo menos esse mesmo tempo. Entretanto,
mesmo que os leitores concedam
a Sócrates uma memória prodigiosa
dos detalhes de uma noite toda
de conversação no Pireu, e uma
nova narração acurada da discussão
da noite com um ouvinte anônimo
no dia seguinte, não é prudente
se pensar que Sócrates esteja
apresentando uma visão autorizada
e imparcial de quaisquer dos personagens
principais, incluindo a de Sócrates
ou mesmo a de Platão, seu engenhoso
autor. Antes, os discursos dos
participantes devem ser lidos
com cautela, não se pode assumir
que a nova narração de Sócrates
da prolongada discussão e que
o relato escrito por Platão sejam
totalmente imparciais e acurados
ou possam ser aceitos indiscriminadamente.
Os leitores devem explorar
as questões e os problemas de
interpretação por si mesmos.
A República se inicia com
o relato de Sócrates de sua viajem
para fora de Atenas: “desci ao
Pireu ontem com Glaucon", diz
ele, "o filho de Aríston, para
rezar à deusa; ao mesmo tempo,
desejava observar como eles encenavam
o festival” (1.327a). A cena dramática
do diálogo é acontece por volta
de 416 a.C., no período
da instituição do novo festival
em honra da deusa Bendis – deusa
da lua (4) e da noite – que estava
sendo celebrada nas festividades
noturnas no Pireu com um desfile
de archotes.(5) Muito tem
sido produzido acerca das características
espaço-temporais desta passagem
de abertura e de outros pontos
altos no diálogo, tal como
o Mito da Caverna.(6) Ambos envolvem
uma descida – a viajem de Sócrates
ao mundo noturno “inferior” do
porto do Pireu e, no Mito da Caverna,
a descida do filósofo ao mundo
cotidiano das sombras dentro da
escuridão da caverna. Também
é significativo que estas “descidas”
a mundos mais baixos ocorram no
escuro da noite no Pireu e na
escuridão desorientadora
que permeia a vida diária na caverna.
O
Mito da Caverna é apresentado
como uma metáfora da educação
(paideía, 7.514a), mas
pode também servir como um modelo
do papel do mentor educacional,
tal como Sócrates. Deste modo,
podemos comparar Sócrates
ao livre e sábio filósofo que
entra novamente no mundo inferior
da caverna escura – o mundo das
coisas diárias em que as
pessoas vivem e se movimentam
e existem – a fim de tentar resgatar
osque vivem neste mundo escuro,
embora enfrentando o perigo de
ter sua vida ameaçada pela reação
violenta dos “prisioneiros” dentro
da caverna que encontram seu mundo
perturbado por um libertador socrático
(7.517a). A arena para a contenda
pedagógica entre a livre investigação
filosófica e a demagogia sofística
ocorre no mundo escuro da
caverna – um mundo de sombras
e de opinião pública, um
mundo de “lucro e perda” e de
intriga política e social.
Alguns intérpretes do diálogo
têm chamado a atenção para a batalha
que ocorre no diálogo entre a
tirania e a filosofia, entre a
força violenta e a persuasão racional
(7) entre a educação como apresentada
pelos sofistas que visam o sucesso
e o domínio sobre seus estudantes,
e pelos filósofos socráticos que
procuram nutrir seus estudantes
através de uma busca filosófica
libertadora da sabedoria. Este
conflito entre a injustiça e a
justiça, entre sofística e filosofia,
é refletido não apenas nos argumentos
e no debate dos interlocutores,
mas também na própria vida e no
caráter dos próprios participantes.
Reunidos na casa
de Polemarco, onde a discussão
ocorre, estão quase uma
dúzia de homens. O que se sabe
da vida e do caráter de
alguns dos principais participantes
na discussão, assim como sua
disposição para com a tirania
e a filosofia, é também
relevante para a análise do jogo
e da educação e para a interpretação
do diálogo. Tratarei apenas de
alguns dos participantes cuja
presença é relevante para o propósito
deste artigo. Antes de mais nada,
Sócrates, nosso narrador, que
levanta a questão de uma vida
e sociedade justas e da educação
como um meio para alcançá-las,
mostra-se dedicado a uma vida
de excelência, assim como às virtudes
cardinais – temperança,
coragem, sabedoria e justiça.
Ele representa o filósofo par
excellence, que se esforça constantemente
para atingir a sabedoria e as
virtudes em sua própria vida.
O significado etimológico
dos nomes nos diálogos de Platão
freqüentemente revela características
significativas dos participantes,
e a República não é exceção.
O nome de “Sócrates” é derivado
de “sodzein” (salvar) e “kratein”
(ter o poder) que juntos significam
“aquele que tem o poder de salvar
ou resgatar.” Presumivelmente,
o poder de Sócrates para salvar
era dirigido em primeiro lugar
aos outros, pois ele próprio
não pode se “salvar” de ser declarado
culpado de irreligião e de
corromper os jovens diante do
tribunal ateniense. Entretanto,
ele “salvou-se” de pagar
o mal pelo mal, preferindo sofrer
o mal do que praticá-lo
(ver o Criton). Como um mentor
educacional, Sócrates mostra-se
como um tipo de parteira
de idéias, e um pedagogo que conduz
os líderes potenciais a
descobrir a verdade por si mesmos,
“expurgando-os” das falsas
opiniões e encorajando-os a perseguir
a verdade com a ajuda de
seu mentor filosófico. Mas Sócrates
é também um jogador cheio
de truques e um mágico (góetos),
um praticante da ironia
(1.337a) que pouco a pouco pode
fazer com que nos sintamos perdidos.
Assim, os leitores cuidadosos
não devem contentar-se com o que
ele diz “literalmente”;
antes, devem eles próprios analisar
as colocações de Sócrates e procurar
ir além delas, resolvendo por
eles mesmos pelo menos parte dos
problemas apresentados.
Sócrates é
acompanhado em sua viajem ao Pireu
por Glaucon. Ao chegarem
no local, eles se encontram com
o irmão de Glaucon, Adimanto.
Tanto Glaucon quanto o irmão mostram
um potencial filosófico,
e ambos são irmãos de Platão,
o autor do diálogo, que não estava
presente na discussão. Os três
irmãos são filhos de Aríston,
um nome que significa “o melhor”
– e que leva Sócrates ironicamente
a referir-se a Glaucon
como “você, o melhor dos homens”
(7.536e). Mais tarde, enquanto
Sócrates discute o poder da “regra
do melhor,” da aristocracia,
vemos que a designação “melhor”
aplica-se em primeiro lugar não
àqueles de nobre estirpe, mas
àqueles cujo caráter e ações são
marcadas pela excelência
e pela realização. Tanto Adimanto
quanto Glaucon distinguiram-se
corajosamente na batalha de Megara,(9)
uma indicação de sua coragem.
Sócrates descreve o caráter destes
irmãos nas palavras de um
poeta encantador como “filhos
(paides) de Aríston, prole divina
(theíon) de um homem ilustre”
(2.368.a). Glaucon e Adimanto
representam o papel de filósofos
potenciais, pegos compreendidos
na batalha entre a força tirânica
e a persuasão filosófica, entre
a opressão violenta e uma sociedade
justa, e entre os pólos
da vida filosófico-prática e a
busca sofística do auto-interesse.
Sócrates personifica
a integração de sabedoria e
justiça em sua própria vida
e põe em evidência a questão
da justiça na vida da comunidade.
Trasímaco e seus companheiros
sofistas – os políticos que usam
da força – argumentam
em favor da injustiça e do auto-interesse
personificado na definição
de Trasímaco de tirania – “que
às escondidas e à força (bia)
tira o que pertence aos
outros, tanto o que é sagrado
quanto o que é profano, o privado
e o público, não pouco a pouco,
mas tudo de uma só vez”
(1.344.a). Embora Trasímaco
participe ativamente na discussão
apenas no Livro 1, ele representa
a posição dos sofistas como
defensores do auto-interesse e
do governo tirânico da comunidade
pela força e, assim, sua
presença permanece durante
todo o diálogo. Quando ele
é introduzido pela primeira vez
na discussão, ele tem de
ser contido pelos homens sentados
próximo a ele que desejam
ouvir o argumento até o fim (1.336b).
Ele se insurge na discussão
como uma “besta selvagem” (theríon)
e “ele lançou-se sobre nós
como se nos rasgasse em pedaços”
(1.336b). A entrada de Trasímaco
na discussão é como uma ataque
de um “lobo” cruel (1.336d) –
uma alusão muito importante
ao caráter tirânico dos sofistas,
que são associados aos ataques
violentos de lobos, em oposição
ao comportamento mais amável dos
filósofos, que são ligados à vigilância
perspicaz dos cães bem disciplinados!
(10) Trasímaco representa
a intromissão violenta da força
no diálogo bem ordenado
da comunidade. Assim, ele deve
ser contido, a fim de não interromper
a discussão (1.336b). Depois de
ser subjugado, ele também
deve ser impedido de deixar a
casa até que tenha ouvido a resposta
de Sócrates a seu discurso de
que “ele despejou uma argumentação
compacta e abundante sobre nós
como se despejasse um balde d'água
em nossos ouvidos” (1.344d). Embora
Trasímaco, cujo nome significa
“hábil e audacioso em esquemas
e maquinações,” seja um
pouco “domesticado” e silenciado
por Sócrates no Livro 1, todavia,
por sua presença, ele continua
a representar as tendências poderosas
e tirânicas dos sofistas no reino
político e social.
O
conflito entre Sócrates e Trasímaco
é característico da batalha
entre filosofia e tirania, persuasão
amável e opressão violenta
durante todo o diálogo. Este conflito
também tem implicações na
interpretação da República.
Ele sugere que os discursos
não devem ser lidos “sem mais
nem menos” por assim dizer,
como se pudéssemos determinar
os pensamentos mais íntimos de
Platão e Sócrates sobre estas
questões, mas sempre no
contexto de uma batalha violenta
entre filosofia e sofística, entre
uma sociedade justa e uma tirania.
Este conflito entre “aristocracia”
– o governo “filosófico”
da cidade para o melhor
– e “tirania” também tem alguns
efeitos contrários à cidade
ideal proposta por Sócrates: esta
assume as suas próprias
características tirânicas, banindo
poetas e contadores de estórias,
de modo que Platão e até mesmo
Sócrates seriam cidadãos
indesejáveis neste cidade ideal.
Digno de nota no diálogo é
o efeito que a tirania tem sobre
a filosofia enquanto o “amor da
sabedoria,” assim como sobre
a análise de Amor (Eros e Phília)
que é apresentada. Por exemplo,
Eros, o desejo do belo, é descrito
no diálogo tal como no Fédro
e no Banquete, a saber,
como uma dádiva divina e
como a fonte criativa dos maiores
benefícios individuais e sociais
na pólis. Entretanto, na República,
Eros é descrito como um “tirano”
(1.329c, 3.402c-403) cujas “dádivas”
devem ser controladas e censuradas.
É importante levar estes aspectos
em consideração na interpretação
do texto e estar ciente
da provisoriedade da “cidade em
palavras” esboçada no diálogo
(11).
Na apresentação
dos elementos dramáticos e lúdicos
do diálogo existem elementos
de seriedade (spoudé) e jogo (paidiá)
combinados. Em primeiro lugar,
existe a “seriedade” da questão
da justiça aplicada à vida do
indivíduo e à comunidade.
Em segundo lugar, há não apenas
a tentativa lúdica de descrever
essa comunidade em palavras mas
também a lembrança irônica
de Sócrates de que a construção
da cidade é uma forma de
“peça teatral” e “jogo” (paidiá)
– uma sugestão que a “imagem”
da cidade ideal que Sócrates
descreve não deve ser tomada tão
seriamente, como se ela
fosse um anteprojeto de uma comunidade
ideal ou mesmo algo realizável.
Elementos sérios e trágicos são
também encontrados no grande
impacto sobre as vidas dos personagens
principais, no relato da
probabilidade do declínio da cidade
justa, e a entrada da política
na vida de Sócrates resultando
em sua condenação e morte
como uma ameaça perigosa à pólis
ateniense.(12) Mas como uma forma
de peça teatral, a própria República
é comicamente otimista, especialmente
na questão do estabelecimento
real desta cidade em palavras,
face às três grandes frentes de
oposição – a educação e a participação
igualitária das mulheres
como governantes (5.446a-456b),
a questão bem mais difícil
acerca dos ritos de casamento
e das esposas e crianças em comum
(5.456b-473b), e finalmente,
a soberania política dos filósofos
(5.473b-408a). Também é
significativo que cada uma destas
três “frentes” que ameaçam
a cidade ideal envolve um grau
de repressão tirânica e
de controle de Eros/Philia/Amor
na vida da cidade e, daí, na probabilidade
de se alcançar um sociedade justa.
O jogo é central
para a interação dos personagens,
para o cenário do diálogo
e para todos os níveis de
aprendizagem na República. Mesmo
as mais difíceis e mais altas
formas de investigação filosófica
tal como a dialética –
o estágio final na educação dos
governantes filósofos –
são descritas como jogo (paidiá)
e como a melhor forma de
educação para cidadãos livres
em uma sociedade justa. Sócrates
está presente no diálogo
como um mentor filosófico deste
jogo e um filósofo da mais alta
categoria. Os sofistas são a principal
oposição de Sócrates e são representados
por Trasímaco como um competidor
profissional para o governo e
a soberania da cidade, como um
anti-herói da juventude, e como
um importante jogador na disputa
pela supremacia pedagógica
no processo de estabelecimento
de uma sociedade justa ou tirânica.
Os outros que entram no jogo,
particularmente Adimanto e Glaucon,
são amadores – nem filósofos
profissionais nem sofistas. Daí
eles terem Sócrates e Trasímaco
diante deles como modelos pedagógicos
e de liderança jogando o jogo
sério da vida política e
como mentores rivais na direção
e educação de seus cidadãos. Assim,
Sócrates e Trasímaco representam
tipos opostos de liderança e de
abordagens educacionais – Trasímaco
como o sofista tirânico e dominador,
por um lado, e Sócrates
como o filósofo capacitado e co-pesquisador
da sabedoria, por outro.
O Elo entre Educação (Paideía)
e Jogo (Paidiá).
Na República
de Platão, um elo importante
é estabelecido entre a
educação ou cultura (paideía)
e jogo ou jogos (paidiá),
começando com a educação (paides)
musical das crianças e as
atividades atléticas, mas continuando
através de todo processo
educacional que culmina no “livre
jogo” dialético do rei ou
rainha filósofo. A evidência deste
elo entre educação e jogo
é considerável. L. Brandwood,
em seu A Word Index to
Plato , lista cerca de 60
citações na República com
as variantes do substantivo
“paideía” e com a forma verbal
“paideuein” em referência à educação
ou cultura e ao processo educacional.
(13) As referências a jogo
ou jogos em sua forma substantiva
ocorrem cerca de 25 vezes
e, em sua forma verbal “paidzein”,
cerca de 8 vezes na República
. (14) Os dois termos estão ligados
à educação e às atividades das
crianças – “pais” e “paides”
– mas também à educação
de filósofos dialéticos. Etimologicamente,
os termos “paideía” (a palavra
para educação ou cultura),
“paidiá” (a palavra para, jogo,
passatempo, esporte), e
“paides” (palavra para crianças),
possuem a mesma raiz em grego,
e os três termos freqüentemente
aparecem no mesmo contexto
O
jogo educacional da criança
é central à República;
entretanto, existem também
conexões importantes entre
jogo e prática da dialética
dos filósofos na aquisição
de uma educação
filosófica (15). Entender
a mensagem da República
requer grande atenção
à conexão entre
educação ou cultura
(paideía), e à abordagem
pedagógica (paidagogía)
do ensinar e do aprender, que
deve ser realizada na comunidade.
O objetivo central da pedagogia
(paidagogía) é encorajar
a aprendizagem como uma forma
de jogo (paidiá), que é
a abordagem mais persuasiva e
efetiva dos cidadãos livres
em uma sociedade que honra os
filósofos (16). Sócrates,
que discute com Glaucon a importância
do jogo na educação
dos governantes filósofos
da cidade, afirma na República,
7.536d-537a, que:
“Bem
então, o estudo do cálculo
e da geometria, e toda a educação
preparatória (propaideuthenai)
exigida pela dialética
deve ser colocada diante deles
enquanto crianças (paisin),
e a instrução
não deve dar o aspecto
de uma compulsão a aprender”
(ouk hos epanagkes mathein to
schema tes didaches).
“Por
quê não?”
“Por
que o homem livre (eleútheron)
não deve aprender nenhum
estudo servilmente. Trabalhos
forçados realizados
pelo corpo em nada tornam corpo
pior; contudo, nenhum estudo
forçado (bíaion)
permanece na alma.”
“É
verdade,” ele disse.
“Portanto,
... não usai a força
(bía) ao treinar as crianças
(paidas) nos conteúdos;
usai, antes, o jogo (paidzontas).
Deste modo, pode-se melhor
discernir para o que cada um
está naturalmente dirigido.”
Aqui,
Sócrates apresenta a
melhor abordagem possível
da educação como
uma atividade lúdica
não-coercitiva em que
as crianças devem participar
livremente (7.536e). O termo
“livremente” neste
contexto não implica
que o jogo educacional deva
ser desestruturado e sem limites,
pois a liberdade dos indivíduos
na República tem que
ser vista dentro do contexto
limitado da cidade (4.434a-e)
e na forma de um “jogo
governado por regras”
(ennomoterou...paidias, 4.424d).
Jogo
aparece tanto como um método
usado na instrução
dos dirigentes quanto comouma
atividade relacionada ao contexto
educacional (6.497). Platão
distingue entre jogo que é
passatempo lúdico (6.497a-e,
7.539b), e jogo enquanto atividade
que segue regras e que não
é um mero passatempo
(nomoterou...paidias) (4.424e-425a).
O jogo frívolo é
aquele que desvia a atenção
da meta educacional da descoberta
da verdade, e vê na atividade
dialética um esporte ou
passatempo não relacionado
com a busca da verdade. O jogo
sério preocupa-se
com a meta de introduzir o jogo
das crianças e dos dirigentes (paides
paidzein, 4.424a) na música,
nas estórias e nos jogos atléticos
com boa ordem, que fomenta a
excelência na educação (paideía)
do jovem (4.425a-b). O objetivo
do processo educacional é
incentivar o crescimento e o
desenvolvimento do aluno em
direção ao
objetivo último da contribuição
individual para uma sociedade
boa e para a visão do
próprio Bem em si. Contrariamente, os
sofistas, como educadores, procuram
primeiro refutar e contradizer
seus oponentes na discussão
– uma forma “básica” de
jogo que perdeu de vista seu
objetivo – a verdade e
o bem.
Em
nosso uso rotineiro, há
uma tendência a tratar
os termos “jogo”
e “trabalho” como
opostos e, correspondentemente,
trabalho é visto como
sério e jogo como frívolo.
Para Platão, entretanto,
jogo e trabalho não são
opostos um ao outro, na medida
em que o jogo pode ser sério
e útil quando ele contribui
para o processo educacional.
O próprio Platão
emprega o termo "jogo"
com intenção séria
na educação dos
filósofos potenciais
quando ele usa um mito imaginário
para descrever a educação
dos jovens durante o processo
no qual eles são conduzidos
de uma condição
não iluminada para uma
iluminada no Mito da Caverna
(7.514a-518b). Além do
mais, a dialética, o
estágio final da educação
do reis filósofos, é
vista como um jogo sério
que procura a verdade de modo
dialético e não
simplesmente a refutação
dos oponentes (7.539b-d).
No
contraste entre o jogo sério
e o frívolo encontra-se uma valiosa
distinção entre
o que pode ser determinado respectivamente
“jogo bom” e “jogo
mau.” Podemos diferenciar
um do outro se a atividade
relaciona-se ao fim último
da educação, isto
é, ao conhecimento do
Bem e à aplicação desta
visão à vida diária
em uma sociedade boa. Todas as
formas de jogo que visam ou
dirigem-se a este objetivo são
considerados bons jogos.
Por outro lado, o “jogo”
mau obscurece e desvia o aprendiz
do esforço para alcançar
a meta final e deve ser eliminado da
experiência educacional
dos dirigentes (2.376-3.412).
Uma distinção
similar entre o jogo nobre e
bom e o mau é introduzido
por Sócrates com relação
às dificuldades que os
dirigentes filósofos
têm ao trabalhar de modo
justo em um regime democrático
quando ele diz:
"Mas
a consideração
e ausência de qualquer
espécie de exigência,
em ninharias, e desprezo por
princípios que enumeramos
com veneração,
quando construímos a
cidade, como aquele segundo
o qual, a não ser que
se tivesse uma natureza extraordinária,
nunca uma pessoa poderia tornar-se
um homem de bem, se logo, desde
a infância, não
brincasse no meio de coisas
belas e não se dedicasse
a todas as atividades dessa
qualidade - com que arrogância
ela calca tudo aos pés,
sem querer saber para nada de
preparação com
que se vai para a carreira política,
mas só presta honras
a quem proclamar simplesmente
que é amigo do povo!"
(558a)
Mais
um vez o contraste é
entre o jogo nobre dos dirigentes
filosóficos e o jogo
básico dos dirigentes
tirânicos interessados
na manipulação
e controle da multidão.
Observações
conclusivas
Em
resumo, este artigo esboçou
brevemente a importante conexão
e o significado de jogo (paidiá)
na educação ou
cultura (paideía) do
cidadão e da comunidade
na República de Platão,
assim como as abordagens educacionais
contrastantes da coerção
sofistica e a da persuasão
filosófica. Muito mais
pode ser feito para se
examinar a relação
entre jogo e educação
no diálogo para desenvolver
o contraste entre o jogo nobre
e o ruim, e para explorar as
abordagens contrastantes na
educação e no desenvolvimento
dos dirigentes políticos
através do jogo libertador
dos filósofos dialéticos,
tal como Sócrates, versus
o jogo “enérgico”
dos sofistas tirânicos,
tal como Trasímaco.
tradução
de Charles Feldhaus (supervisão
de tradução de
Marco Antonio Franciotti)
Notas
O título grego da obra
de Platão é Politeía,
que reflete o contexto social
e político do diálogo
em relação à
liderança dos políticos
‘politikói,’
assim como a constituição
pública na comunidade
e na cidade (pólis).
Estas importantes acepções
políticas se perdem um
pouco no título latino
“República”
que é derivado de “res
publica” e significa “as
coisas públicas”
ou “questões públicas.”
No contexto político
de hoje, essa expressão
refere-se ao regime político
de uma nação estado.
Infelizmente, o título
“República”
para a cidade imaginária
(pólis) que Sócrates
constrói “em palavras”
(lógoi) é enganoso
se o interpretarmos à
luz dos significados políticos
contemporâneos. Apesar
deste perigo, usarei o título
“República”,
pois ele se encontra por demais
disseminado na história
da filosofia.
Cf.
Arthur A. Krentz, “The
Philosophical Significance of
the Form do Plato’s Dialogues,”
Philosophy and Literature, Vol.
7, No. 1 (abril, 1983, 32-47,
e A. Krentz, “Dialogue
and Dialectic: the Portrayal
of Philosophy in Plato’s
Phaedrus,” in Philosophy
and Culture, Vol.3: Proceedings
of the XVII World Congress of
Philosophy, editado por V. Cauchy.
Montreal: Edições
Montmorency, 1988, 798-802.
Allan Bloom, Tradutor e editor,
The Republic of Plato (New York:
Basic Books Inc., 1968. Todas
as citações e
referências textuais no
artigo são da tradução
de Bloom da República.
Referências textuais são
precedidas pelo número
do livro da República.
Bloom,
op. Cit., 441, n.5. Bloom indica
que Bendis era uma deusa estrangeira
introduzida pelo Trácios
neste novo festival religioso
do Pireu, o porto de Atenas
e famoso por sua abertura à
novidade. Todas as citações
e referências textuais
neste artigo são da tradução
da República de Bloom.
A fonte da luz e o papel das
sombras no festival, e o fato
de que o diálogo ocorre
de noite com a assistência
da luz de lampião e archotes,
é também uma paralelo
significativo com a parábola
do mito da caverna.
Ver John Sallis, Being and Logos:
The Way of the Platonic Dialogue
(Pittsburg, PA: Duquesne University
Press, 1975): 312-320. Para
uma ampla discussão da
significado do lugar nos diálogos
de Platão ver Drew A.
Hyland, Finitude and Transcendence
in the Platonic Dialogues (Albany,
NY: SUNY Press, 1995): 13-34.
Adi Opher, Plato’s Invisible
.
Ver
Adi Opher, Plato's Invible Cities:
Discourse and Power in the Republic
(Savage, MD: Barnes e Noble,
1991), pp. 104-110.
Ver
Adi Opher, op cit., pp. 120-125.
Ver Shorey, Republic, Book,
p.144, fn. D.
É
significativo que, por toda
a República, Sócrates
sempre jura “pelo cão!”
– o mais filosófico
dos animais.
Esta
batalha entre a persuasão
filosófica e a força
retórica é também
refletida na cena de abertura
da República. Sócrates
e Glaucon, em seu caminho do
Pireu à Atenas, são
vistos por Polemarco “de
longe, enquanto[eles] estavam
apressadamente voltando para
casa” (1.327b). Polemarco
ordena seu escravo (paidía)
a correr e faze-los esperar
por ele; o escravo agarra o
manto de Sócrates por
trás e lhe faz esperar,
ordenando-lhe a esperar. Polemarco
aproxima-se de Adimanto e de
outros, cujos nomes não
são mencionados e convida
Sócrates a ir a sua casa;
Sócrates indica que ele
e Glaucon estão voltando
a Atenas e que ele deseja continuar
seu caminho. Entretanto, Polemarco
observa que Sócrates
“deve exceder em número
aqueles que são mais
fortes e mais vigorosos (kreíttos)
que ele” (1.327c) e, por
isso, eles de modo algum o deixarão
ir. Novamente um conflito
está sendo introduzido
entre força e persuasão,
entre a tirania política
e o diálogo filosófico.
A violência física
e a discussão hostil
são aliviadas quando
Sócrates concorda em
acompanhar o grupo até
a casa de Céfalo, o pai
de Polemarco (1.328a-b). Na
discussão do livro I,
Céfalo é apresentado
como um tipo de estadista mais
velho, agora velho e rico, e
com uma piedade religiosa tradicional
enraizada nos conselhos dos
poetas (1.329-331e). Céfalo,
cujo nome significa “chefe”
ou “líder”,
representa o poder da religião
tradicional, da política
e autoridade social, mas ele
está prestes a ficar
enredado na batalha do poder
em Atenas entre os democratas
e os oligarcas – uma batalha
que ocasionará o fim
de sua família e a morte
de seus filhos, Polemarco e
Nicias. Ver Adi Opher, op.cit.,
pp.118-9.
Sócrates, no Symposium,
afirma que os melhores dramaturgos,
quer comediantes quer tragediógrafos,
devem ser igualmente hábeis
em escrever comédias
e tragédias, e em moldar
suas obras como cômico-tragédias
ou tragi-comédias. A
República, em sua análise
da justiça e da injustiça
na cidade e na vida dos cidadãos,
obviamente toma a injunção
socrática seriamente,
integrando em minúcias
a comédia lúdica
e a tragédia séria
no cenário dramático
e no conteúdo filosófico
do diálogo, assim como
na discussão da justiça
e da injustiça na cidade
e na vida dos cidadãos.
Brandwood, Leonard, A Word Index
to Plato (Leeds: W. S. Maney
and Son, 1976), pp. 697-698.
Brandwood,
op.cit.,p.699.
Huizinga, op.cit.,p.5. Huizinga
sustenta que jogo e cultura
“são entrelaçados
um com o outro” e que
“o jogo puro, genuíno,
é uma das principais
bases da civilização.”
Talvez
o mais extenso tratamento do
enfoque da educação
e da cultura (paideía)
seja a obra de Werner Jaeger,
Paideia: The Ideals of Greek
Culture, 3 Vols. Tr. Por Gilbert
Highet.(New York: Oxford University
Press, 1965). Adi Opher, Plato’s
Invisible Cities: Discourse
and Power in the Republic (Savage,
MD: Barnes & Noble, 1991)
também dá um tratamento
interessante da importância
do espaço em relação
à atividade do jogo como
essencial ao fundamento de uma
sociedade
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