A memória pública

Os lugares da memória

Maria de Lourdes Parreiras Horta 1

O historiador Pierre Nora definiu como “lugares de memória” 2 locais materiais ou imateriais nos quais se encarnam ou cristalizam as memórias de uma nação, e onde se cruzam memórias pessoais, familiares e de grupo: monumentos, uma igreja, um sabor, uma bandeira, uma árvore centenária podem constituir-se em “lugares de memória”, como espelhos nos quais, simbolicamente, um grupo social ou um povo se “reconhece” e se “identifica”, mesmo que de maneira fragmentada. Estes “lugares”, ou “suportes” da memória coletiva funcionam como “detonadores” de uma seqüência de imagens, idéias, sensações, sentimentos e vivências individuais e de grupo, num processo de “revivenciamento”, ou de “reconhecimento”, das experiências coletivas, que têm o poder de servir como substância aglutinante entre os membros do grupo, garantindo-lhes o sentimento de “pertença” e de “identidade”, a consciência de si mesmos e dos outros que compartilham essas vivências. “Reconstrói-se, por essas memórias, a representação que um povo faz de si mesmo”, afirma Mary del Priore na proposta para essa série. Se todos os países e culturas vivem sob o “reino da Memória”, como afirma a autora, cabe aos historiadores encontrar não só esses “lugares”, ou “locus/loci” da rememoração, como também demonstrar de que maneira e por meio de quais instrumentos essa memória é construída ao longo do tempo, e quais os “modelos” que vão embasar essas construções. Histórias, lendas, mitos e tradições populares têm muitas vezes por fundo acontecimentos e conjunturas do passado histórico dessas populações, cuja “verdade” e explicação podem vir à tona num trabalho de “arqueologia” dos sentidos, significados e estruturas de pensamento, encontrados por trás do véu dos relatos, entre os “ossos”, no fundo dos “baús” do patrimônio cultural, material e imaterial , que configuram a “herança” cultural de um povo. Nas feiras populares, nos folhetos de cordel e nos repentes dos cantadores, nas histórias da “carochinha” ou contadas à beira do fogão pelas avós de outros tempos, repetidas de geração em geração, com enriquecimentos, omissões e acréscimos (“quem conta um conto, aumenta um ponto”) a tradição oral (ou o que se pode chamar de “ História Oral ”, nas pesquisas acadêmicas) perpetua memórias, valores e crenças coletivos. Os fragmentos recolhidos por diversos caminhos e instrumentos, como cartas, diários, documentos, testamentos, recibos de compra e venda, relatórios e inventários particulares e oficiais, as imagens e outros suportes concretos da informação são as “fontes escritas” a serem garimpadas pelos historiadores e estudiosos da cultura e da sociedade, que vão ser contrapostas e interpretadas em face da memória popular e dos seus “lugares” instituídos, dos hábitos e costumes, dos rituais e gestos, dos saberes e dos fazeres, dos gostos e das preferências de um povo, como fundamento do trabalho da “historiografia”. Como procura mostrar esta série, a “memória” e o exercício de rememoração constituem, na verdade, não uma recuperação de imagens e dados permanentes armazenados no cérebro dos indivíduos, mas o resultado de um complexo processo operatório desencadeado no pensamento em conseqüência de fatores “motivadores” ou “detonadores” desses mecanismos de rememoração. Quanto mais ricas e diversificadas as experiências vividas e compartilhadas por um grupo de pessoas vivendo em comunidade, mais rica e complexa será esta “Memória”, ou rememoração.

O aprendizado e o conhecimento desses processos de memória são fundamentais para a capacitação dos indivíduos na elaboração e compreensão de sua própria história, de sua habilidade de “fazer história” através dos fragmentos e relatos encontrados nos diferentes “baús”, pessoais, familiares, coletivos e institucionais. O ensino da História só pode ser o ensino de como “fazer história”, de como desconstruir os mitos e as verdades estabelecidas, e de identificar o modo como estes mitos e verdades foram construídos ao longo do tempo, de conhecer os diversos tipos de “fontes” para esse fazer histórico, de como dominar seus códigos e como estabelecer comparações e análises críticas entre os diferentes materiais. Esses “saberes” são parte indispensável do processo educacional, quando se busca, como propõe Paulo Freire, uma “pedagogia da autonomia” 3 .

A “cartografia mental”, que corresponde aos “mapas mentais” existentes no pensamento, pode explicar o processo operacional de estabelecer conexões entre as diferentes vivências, imagens e memórias gravadas no cérebro, de forma desorganizada (como nos aparecem nos sonhos, por exemplo), de acordo com a intenção e a emoção do momento em que o processo se inicia. Cartografia que funciona, metaforicamente, como um mapa em que se indicam os caminhos, estradas, vias férreas, pontes, atalhos, pontos de referência. Enriquecer a cartografia mental dos estudantes é o trabalho do professor no estudo da História e da Memória, capacitando-os a estabelecer as conexões lógicas ou que, aparentemente, não têm sentido, a buscar atalhos e alternativas de interpretação e de rememoração, como faz um comandante de um navio ao se debruçar sobre as cartas dos ventos e das correntes marítimas (apesar de que hoje tudo isso é feito por computador, nos navios e aviões modernos, bem como no sistema escolar e de pesquisa, o que na verdade gera uma deficiência, uma incapacidade de encontrarem-se os caminhos sem a ajuda da inteligência artificial). Fazer História, falar de Memória, de Cultura e de Patrimônio é, essencialmente, estabelecer conexões entre os infinitos nódulos de sentido, na verdade “constelações de sentidos”, de fatos e de referências, que podemos encontrar nesta peregrinação.

  O mapa da mina

Nossa intenção, neste texto, é demonstrar o “mapa da mina” das referências históricas e culturais, das fontes primárias e secundárias, ao qual podemos recorrer para traçar nosso percurso. As “minas”, no caso, são os lugares institucionalizados de Memória, constituídos e mantidos para servir ao público, nas instituições que denominamos Arquivos, Bibliotecas e Museus . Podemos, assim, abordar a importância e os mecanismos que regulam esses três tipos de “baús”: Os baús de “coisas”, que são os Museus, os baús de documentos , que são os Arquivos Históricos, e os baús de Livros , que são as Bibliotecas. Essa diferenciação é bem simplista, servindo apenas para organizar o tema, pois podemos encontrar em museus, como no Museu Imperial, em Petrópolis, RJ, um Arquivo Histórico e uma Biblioteca, que funcionam paralelamente ao “Museu” Palácio, residência de verão do imperador D. Pedro II. Mas a organização, a metodologia e o funcionamento desses diferentes gêneros de instituições dedicadas a guardar a memória pública e privada do desaparecimento são bastante diferentes.

Em muitas Bibliotecas, encontramos seções de documentos manuscritos, de iconografia , isto é, uma coleção de imagens visuais, em diferentes suportes e técnicas, dentre as quais se situa a fotografia , de mapas ( cartografia ), de jornais ( periódicos), revistas, de música (partituras e gravações), depoimentos de personagens entrevistadas (também gravadas ou filmadas em vídeo), e até mesmo de algumas obras de arte de pintura, escultura, etc., que ali vieram a ser guardadas e acumuladas. Há Bibliotecas que podem ser vistas como verdadeiros “museus”, pelas obras de Arte que contêm, como a Biblioteca do Vaticano, por exemplo, e no Rio de Janeiro, a Biblioteca Nacional ou o Gabinete Português de Leitura, no centro da cidade, um raro monumento de arquitetura em estilo “mourisco”, muito ao gosto do princípio do século XX. Em Arquivos Históricos também poderemos encontrar, além de manuscritos originais, folhetos impressos, álbuns com imagens e textos, diários, fotografias, discos e gravações (arquivos musicais e de depoimentos) e publicações oficiais e legais de diferentes períodos abrangidos pela Instituição. Arquivos Administrativos de empresas e instituições também são importantes fontes para o estudo de uma época (o arquivo de uma indústria importante desativada por diferentes razões, por exemplo) e da própria história da empresa e de seus funcionários, da vida econômica local e dos métodos de trabalho de um determinado período ou localidade. Outras fontes indispensáveis ao estudo da história local e das comunidades são os Arquivos Paroquiais pertencentes às Igrejas, em especial à Católica, que mantêm o registro de batismo dos habitantes locais e dos que ali se batizaram. Em geral, encontramos nesses arquivos eclesiásticos um inventário dos seus habitantes, ocupações, idade, número de filhos, posse de escravos, relações de parentesco, etc. Infelizmente, muitos sacerdotes e religiosos não compreendem a importância dessas fontes para o estudo e a historiografia brasileira, e muitos arquivos importantes se perderam por descaso, abandono e deterioração. Arquivos de instituições de ensino, de hospitais e de cemitérios podem ser fontes importantes de informação sobre a história local e seus habitantes. Podemos ainda lembrar do interesse fundamental dos Arquivos Familiares, que muitas vezes não são considerados “importantes' pelos próprios familiares. Certidões de casamento, de batismo, de óbito, de compra e venda de propriedades, diários pessoais, cartas e postais vindos de outros lugares, cadernos de anotações financeiras, fotografias, negativos estão entre os materiais mais comumente encontrados em qualquer gaveta de uma casa antiga, do mesmo modo como os encontraremos em nossas residências contemporâneas. As fotografias, principalmente, são histórias de vida de nossas famílias. Um trabalho educacional consistente e altamente produtivo tem sido realizado em experiências de Educação Patrimonial, como é o caso do PREP (Programa Regional de Educação Patrimonial) da 4 a . Colônia de Imigração Italiana no Rio Grande do Sul, que já foi abordado em séries anteriores do Programa. O trabalho comparativo (ontem e hoje), investigatório “detetivesco”, consultando as gerações mais velhas para ouvir e descobrir a “identidade narrativa” dos habitantes de um lugar (a que se refere o texto básico introdutório da série), a pesquisa e localização de imagens, inclusive nos jornais de época, são atividades educacionais que facilmente se poderão levar a cabo e serem desenvolvidas dentro do currículo escolar. Passaportes, salvo-condutos e certidões de identidade são excelentes “detonadores” das histórias de vida e histórias familiares que se quer trabalhar e rememorar, como ponto de partida de uma análise mais crítica do contexto político e social do período estudado.

As Bibliotecas públicas, institucionais e privadas são outra importante e indispensável fonte de pesquisa histórica e de referências para o mapeamento das memórias e histórias coletivas. O uso das bibliotecas é bastante familiar para alunos e professores, o que não quer dizer que não se constituam em mananciais inesgotáveis de referências e de conexões. Como já dissemos acima, muitas bibliotecas contêm, além de livros e jornais, alguma iconografia (fotografias, gravuras, litografias), álbuns de imagens e recortes, discos, vídeos e gravações, e muitas vezes até arquivos de cinema e documentários. Muitas bibliotecas já estão informatizadas, possibilitando a consulta vasta e extensiva a outras instituições no gênero. A navegação pelo oceano de informações contidas em uma Biblioteca permite-nos refazer, ao menos virtualmente, as viagens de circunavegação e de descobrimento que transformaram a face do mundo a partir do século XVI. Podemos ir à Lua e aos confins do Universo, utilizando a virtualidade digital, se soubermos utilizar em toda a sua potencialidade os recursos de uma biblioteca. A auto-estrada digital aberta a todos pela Internet e os recursos tecnológicos da computação estão cada vez mais acessíveis, tornando o mundo e o acesso ao conhecimento cada vez mais próximos. A Biblioteca escolar e a criação de uma biblioteca de sala de aula são recursos importantes para a compreensão do funcionamento e da função dessas instituições para a pesquisa e o conhecimento.

Os Museus também são minas de informação e importantes espaços de aquisição de conhecimento, que ultrapassam o domínio da leitura e da palavra escrita. As “lições das coisas” que podem ser usufruídas nessas instituições requerem uma capacitação especial, no sentido do aprendizado da “leitura” e da interpretação das palavras tridimensionais que são os objetos da cultura. A metodologia da Educação Patrimonial introduzida no Brasil no Museu Imperial, a partir de 1983, vem a ser um tipo de “alfabetização cultural” que independe da capacidade de leitura do indivíduo ou do aluno. Esta alfabetização propõe a “leitura” e a decodificação dos significados dos objetos materiais produzidos pela trajetória da cultura, bem como a compreensão de seu sentido “imaterial', conceito que deu origem recentemente à distinção entre “patrimônio material” e “imaterial”, pelos órgãos de tombamento e registro dos bens culturais. Os objetos recolhidos aos museus podem ser vistos como “textos” tridimensionais, ou bidimensionais, que trazem em si as marcas de autoria, a impressão digital de seus criadores. Além de objetos, os Museus abrigam também em suas coleções documentos, imagens, uma pinacoteca (coleção de pinturas), álbuns de gravuras e litografias, coleções fotográficas, e todo o tipo de produto da produção cultural de um povo. Decodificar esses elementos, compreender o sentido desses textos cristalizados nos objetos recolhidos, são habilidades adquiridas com o trabalho sistemático da Educação nos Museus e sítios históricos, ou melhor, da Educação Patrimonial, a partir e sobre o Patrimônio Cultural.

Escavando o passado para conhecer o presente…

Outras fontes importantes para o conhecimento do passado e da história de uma região são os sítios arqueológicos, históricos e pré-históricos, dos quais está coberto o território nacional. As regras científicas de exploração e pesquisa arqueológica requerem dos professores a consulta aos especialistas e arqueólogos, bem como aos órgãos responsáveis pela fiscalização das pesquisas. No caso, os órgãos do patrimônio nacional (IPHAN), estadual e municipal, e as Universidades. A Serra da Capivara, no Piauí, município de São Raimundo Nonato, é um dos locais mais importantes e significativos para a História do homem americano, com datações que já remontam a mais de 40 mil anos. Os monumentos e sítios históricos, como as Missões Jesuítico-Guaranis, na região oeste do Rio Grande do Sul, são outros espaços de exploração do passado, do presente e da trajetória histórica vivenciada pelas populações que habitaram e ainda habitam a região. Os “sambaquis”, depósitos de conchas e ossos de animais, restos de fogueiras e de ocupação humana, presentes em toda a costa brasileira, são sítios arqueológicos importantes para o estudo das primeiras ocupações humanas em nosso território. Todos esses sítios arqueológicos só podem ser visitados e conhecidos mediante autorização dos órgãos responsáveis pela pesquisa e a proteção patrimonial. As inscrições “rupestres”, gravadas ou pintadas na pedra (“petroglifos”), são mistérios intrigantes para os pesquisadores, e podem gerar interessantes trabalhos de pesquisa e atividades artísticas.

As casas-grandes e as senzalas do Vale do Paraíba, RJ, ou as fazendas de café de Minas, São Paulo e no Sul do país, são fontes de “pedra e cal”, que detêm em suas paredes e terreiros, moendas e usinas de eletricidade movidas à roda d'água, são verdadeiros museus ao ar livre onde se pode também explorar a investigação do passado e dos caminhos que nos trazem ao presente.

A pesquisa nas fontes primárias (dos arquivos, museus, e depoimentos orais), nas fontes secundárias (documentos, periódicos, livros e publicações), e nos próprios locais estudados, visando à interpretação e ao conhecimento das evidências culturais e históricas encontradas, são exercícios pedagógicos e recursos para o professor, para enriquecer e ampliar as capacidades e habilidades de seus alunos, e estimulá-los a estabelecer as conexões significativas que constituem a “trama” e o tecido da História.

Nos últimos cinqüenta anos, como nos aponta o texto inicial dessa série, uma revolução das mídias, possível graças à revolução científica dos séculos XVII e XVIII, multiplicou instrumentos de observação e medida. A fotografia, a fonografia, o cinema, o rádio, a televisão, o vídeo criaram conjuntamente uma nova memória coletiva, objetivada sob a forma de imagens, discos, filmes, fitas magnéticas, cassetes, acessíveis a um público crescente. Essa revolução dos meios de comunicação permite reavivar o passado, revendo cenas, ouvindo sons, conferindo ao passado uma dimensão sensível. É um novo tipo de memória que se sobrepõe à memória escrita, assim como essa se sobrepôs à memória oral. Os discos rígidos das memórias dos computadores podem abrigar milhões de informações e dados, mais do que os arquivos em papel do passado poderiam abrigar, e estão à disposição de qualquer jovem em seu quarto de estudos, ou nas escolas. Essa revolução nos meios, mecanismos e suportes da Memória aponta os caminhos do futuro, garante a permanência do passado, mas não dispensa o exercício do contato direto, táctil, visual e sensorial com os fragmentos e testemunhos do patrimônio cultural acumulado desde os nossos antepassados até o nosso olhar inteligente e comprometido com sua preservação e continuidade.

Notas

Museóloga e diretora do Museu Imperial de Petrópolis. Consultora dessa série.

2 Pierre Nora. Les lieux de mémoire (dir.) Paris, Gallimard, 1997, 7 volumes.

3 Paulo Freire. Pedagogia da Autonomia. 30 a edição. São Paulo: Paz e Terra, 2004. (Coleção Leitura)

FONTE: SALTO PARA O FUTURO / TV ESCOLA
WWW.TVEBRASIL.COM.BR/SALTO


 

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