Entrevista


MARIA SYLVIA CARVALHO FRANCO

Portal SESC/SP - Revista e - nº 120 - maio 2007.

 


A cientista social analisa o Brasil, seus governantes e a elite intelectual do país

Maria Sylvia Carvalho Franco formou-se em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP) em 1952 e foi colega de turma do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Doutorou-se em 1964, sob a orientação do sociólogo Florestan Fernandes, com a tese "Homens Livres na Velha Civilização do Café", considerada por um júri de intelectuais um dos 20 ensaios mais significativos da história do país. Maria Sylvia dirigiu o Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) nos anos mais repressivos da ditadura. Tornou-se livre-docente em 1970 e professora titular em 1989. Aposentada na USP, transferiu-se para o Departamento de Filosofia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), do qual se tornou professora titular em 1999. Até março foi colunista do jornal Folha de S.Paulo, do qual hoje é colaboradora. A entrevistada deste mês da Revista E falou sobre a elite intelectual no Brasil, sobre o papel das universidades e sobre a relação entre o voto e a maturidade política do brasileiro: "É a repetição mecânica de um ato que vem depois de as cabeças serem infestadas pela propaganda". A seguir, os melhores trechos.


A universidade atende à expectativa da sociedade com relação a ela - ou seja, ela auxilia o desenvolvimento tanto técnico quanto das idéias?

A Universidade de São Paulo tem um padrão: o teor de herança francesa, de ordem liberal e positivista trazido por aqueles célebres sociólogos, filósofos e cientistas políticos franceses. Desde Bastide [Roger Bastide, 1898-1974, sociólogo francês], que tem uma carga positivista enorme, até os que seguem a linha de Durkheim [Émile Durkheim, 1858-1917, considerado um dos pais da sociologia moderna]. E essa herança ficou com o peso de uma tradição que é fortemente calcada na pesquisa - inclusive tecnológica. Atrás dela está a Unesp [Universidade Estadual Paulista] com outro enfoque, mas sempre na mesma linha. E a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], que se diferenciou um pouco, mas que também continua com uma orientação. Veja que na França há o CNRS [Centre National de la Recherche Scientifique - Centro Nacional de Pesquisa Científica, numa tradução literal], e aqui temos o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico], que tem mais ou menos as mesmas funções do CNRS. Ou seja, temos os centros de estudo, que são centros de pesquisa. Além disso, há também as escolas especializadas muito tradicionais, como a Faculdade de Agronomia de Piracicaba [da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP]. Enfim, você tem escolas mais especializadas de acordo com o desenvolvimento que ocorreu no país. Isso já vem como projeto de um grupo que, em parte, seguia de forma explícita o modelo republicano, liberal, e que lutava sempre contra a tendência positivista do Rio de Janeiro e do Rio Grande do Sul, que é de uma centralização muito maior. Essa centralização acabou ganhando, porque o nosso governo central congrega uma soma de poderes muito grande.

Você acredita que esse modelo de pesquisa da universidade esteja em uma encruzilhada, diante das demandas sociais, que muitos acham necessário que sejam incorporadas por lá? O que vai ser daqui para a frente?
Eu acho que está tudo muito mal aparado. Existe mesmo essa exigência no que diz respeito ao trabalho tecnológico. Mas acho que a universidade não serve só para a tecnologia, porque não há país no mundo que possa sobreviver se não tiver uma reflexão sobre si mesmo, não há país que viva só de tecnologia. Certa vez eu estava pensando nisso. Por que os Estados Unidos têm uma capacidade crítica que você não encontra aqui? São um país centralizado também. São um país que tem o Bush com um aparato ideológico fortíssimo, um projeto claro de poder internacional - de poder para um determinado grupo, o do petróleo. Lá existe essa gente que lida com política internacional e que se instalou no Pentágono, botando a CIA para fora e o FBI à margem. Eles estão mentindo para poder declarar uma guerra do interesse deles. Ou seja, um país desse tipo, mas com um povo que vota contra, que expõe a mentira e renova o Congresso. Um povo com tudo que tem de consumismo, de repetição, que está morrendo à toa porque os governantes estão fazendo política em benefício próprio, e eles votam contra. Você não tem isso aqui.

Você acha que somos mais contemporizadores ou tolerantes?
Somos mais malformados. Os Estados Unidos têm uma consciência crítica mais aguçada. Existe uma capacidade de crítica no cinema, por exemplo. Eles sabem denunciar, tudo isso junto com o entretenimento. Veja esse [O Segredo de] Brokeback Mountain, a história de dois caubóis homossexuais que não é a história de dois homossexuais. É um retrato mais profundo da gente mais pobre, sem perspectiva, que tem um emprego que é uma droga. Os dois rapazes vão para aquele lugar para cuidar de ovelhas, um emprego péssimo. A vida sexual é péssima também. Eles se encontram e têm uma chance de vida amorosa, mas destroem isso em função do preconceito que carregam. Casam-se de um jeito desastroso, o rapaz que é mais aberto e mais simpático se casa com uma família que é um horror, que vai ficando cada vez mais rica e pior. O outro se casa mal também e tem uma personalidade que ficou muito enrustida, amarga. Enfim, é um filme com uma crítica feroz ao estilo de vida americano lá do Texas. É uma capacidade crítica muito grande e muito fina.

E por que você acha que não temos essa crítica aqui? Ou nós tínhamos e a perdemos?
Nunca tivemos. É meio velha essa interpretação - que é do Caio Prado Júnior [1907-1990, historiador, geógrafo e escritor] - de que aqui nós somos a colônia de postos comerciais onde se despejou uma porção de gente desinteressada e de bandidos. E lá [nos Estados Unidos] não. Em parte ele tinha razão, mas acho que a diferença está no projeto colonial dos dois lugares. Quem é que foi para lá? Harvard é do século 16, formada por um grupo de puritanos. Era gente que estava estudando grego, latim, Platão e Aristóteles. E nós estávamos fazendo o que aqui? Não tínhamos um éthos [conjunto de costumes e hábitos fundamentais, no âmbito do comportamento e da cultura, que vão caracterizar determinada coletividade, época ou região], uma cultura de pensamento, de reflexão, de crítica, de imposição da própria vontade política aqui no Brasil. O que existia era uma feroz repressão colonial. Para escrever meus artigos na Folha [de S.Paulo], às vezes levanto uma grande quantidade de material. Nessas pesquisas, deparei com duas datas engraçadíssimas: 1789, época da Revolução Francesa e que aqui teve a Inconfidência Mineira; e 1848, quando ocorreu também uma série de revoluções na Europa, e aqui teve a Praieira, em Pernambuco. Duas datas realmente simbólicas de revolução mundial. Mas aqui, essa gente lia as mesmas coisas, tinha os mesmos ideais, buscava saídas importantes e foi simplesmente esmagada. Entre essas duas datas você tem inúmeras revoltas, eu contei dez, e todas esmagadas pelo governo, pelo poder central. Seja na época de dom João [1767- 1826, rei de Portugal], seja depois, no Império. Enfim, o que o Brasil não tem é isso: um éthos, a capacidade de formar gente capaz de refletir sobre a própria existência, sobre o próprio país.

E a República não conseguiu sanar isso?
Não, foram os liberais que realmente fizeram a República. A primeira Constituição foi feita por Rui Barbosa [1849-1923, político, diplomata e jurista], mas o peso do positivismo foi enorme. E fez este país centralizado.

Dos anos de 1930 a 1950 falava-se muito de um "projeto Brasil". Houve tentativas de implantá-lo, mas em parte foi considerado subversivo, esquerdista, e não saiu. Hoje a nação se vê na falta de perspectiva sobre que país é esse. Por que essa incapacidade do Brasil de pensar em si?
Existiu quem tenha pensado. Você tem aí o Gilberto Freyre [1900-1987, sociólogo, antropólogo e escritor], que tem sua teoria sobre o Brasil, mas sempre com muitos pontos de vista unilaterais e "ideologizados". Não é dizer que não tenha havido intelectuais que tenham pensado no Brasil. É que, se você não consegue ter esse processo de reprodução, a coisa não muda. Você tem lá o Gilberto Freyre que pensou do jeito dele e ficou nisso. Existem os seguidores dele, e outros que o criticam. Mas o que você não tem é um processo de reprodução da capacidade de pensar para formar uma ética mesmo. Você não chega nisso.

E por que não?
Eu acho que é falta de educação no sentido completo da palavra. Usei o exemplo dos Estados Unidos porque são um país que começou, mais ou menos, na mesma época que o Brasil. Você não pode pensar na Inglaterra ou na França porque eles têm um peso enorme de tradição. Agora, um país como os Estados Unidos ficou dono do mundo - e isso nem é bom -, mas tem ao mesmo tempo esse volume de gente que é capaz de defender suas posições, de brigar, de discutir. Uma coisa boa da minha coluna da Folha é que entrava em contato com as pessoas, dos mais loucos até os mais ponderados. Quando me escreviam dizendo: "Eu não entendi direito, mas o que entendi deu para ver que é um assunto sério sobre o qual quero saber mais. A senhora, por favor, me indique as fontes que usou, os livros que eu poderia ler", só isso já valia a pena. Tem gente que faz isso. Isso é uma coisa é gratificante porque dá um parâmetro de quanto um intelectual pode fazer uma intervenção pública mais ampla.

Você acha que a nossa elite intelectual faz uma coisa apenas corporativa, no sentido de manter seus privilégios?
Eu acho que você tem toda razão nisso. O Roberto Romano escreveu um artigo uma vez no qual ele diz que não há nada mais flexível do que a espinha do intelectual brasileiro. Ele está sempre pronto para colher as vantagens. Mas acho que isso também é herança desse mundo autoritário em que a gente vive. Acho que a desgraça do Brasil é o autoritarismo, que vem lá da colônia e que não cessou nem um minuto. As pessoas ficam muito presas a grupos que são até meio que fanatizados. Não é que sejam oportunistas, acho que é porque realmente acreditam naquilo, e são capazes de fazer absurdos. Acho que entra um auto-engano para poder, por exemplo, aceitar as coisas do Lula. Por exemplo, acreditar que o Bolsa-família vai mudar a estrutura do Nordeste - isso é propaganda pura e as pessoas acreditam.

Você disse em certo momento que o projeto da USP acabou redundando, em parte, na criação de uma esquerda bastante autoritária. Eu gostaria que você falasse que esquerda é essa. Como esse autoritarismo se concretiza no cotidiano brasileiro?
No cotidiano brasileiro eu não sei, sei dentro da universidade, na qual, se você pensa diferente, já é posto de escanteio. No tempo em que fiz meu doutoramento, estava começando a aparecer uma certa resistência ao tipo de sociologia e de história que se fazia, que era muito vindo lá dos franceses - aquela coisa bem positivista do Durkheim. Começava-se a ler Marx, e isso muito em torno do Florestan [Florestan Fernandes, 1920-1995, sociólogo]. Mas a leitura do Marx era extremamente ortodoxa. Fernando Henrique [Cardoso], Octavio Ianni [1926-2004, também sociólogo] e o próprio Florestan produziram livros dentro da leitura ortodoxa do Marx. Quer dizer, eles diziam que não houve propriamente um capitalismo na formação do Brasil e das colônias devido ao modo de produção escravista. Então, eu escrevi contra isso em várias situações. Resultado: quase não defendo minha tese, porque o Florestan era muito autoritário. Ele foi um intelectual íntegro e coerente, reconheço isso tudo. Mas era autoritário também.

Mas essa articulação não faz com que a capacidade de crítica desapareça?
Exatamente, ficam todos pensando igual, e de acordo com certos interesses. Por exemplo, o Fernando Henrique saiu da USP e foi lá para o Chile, entrou nos circuitos sul-americano e norte-americano de ciências sociais. Se abrir a história daquela escola latino-americana de ciências sociais, você vê como aquilo tudo se agrega, há uma articulação de todos aqueles intelectuais. E, para o bem ou para o mal, como não tenho nenhuma afinidade, também não tenho capacidade de ler os trabalhos deles e criticar. Há uma certa forma de pensamento que é feita com exclusividade, que entra no circuito de citações - um fica citando o outro. Até escrevi uma vez para a abertura de um congresso de coordenadores da pós-graduação. E uma das coisas que estavam no auge era a questão de como fazer a avaliação, e uma das formas que subsiste até hoje é a publicação em revistas - que tem núcleo de decisão. Bom, isso tudo domina, você aceita as publicações e você cita aquele grupo determinado. Aí o sujeito tem 90 citações em tal revista, ou 50 citações em tal lugar, tudo isso entra na forma de avaliação das agências de pesquisa. Isso é um fenômeno mundial. Só que aqui é muito mais restrito. Nos Estados Unidos e na Europa, você tem aquele tanto de publicações, então isso acaba se diluindo. Mas aqui não, você tem núcleos pequenos.

Você acha que se perpetua uma maneira de evitar a crítica e aumentar a dependência?
Sim, em todos os setores realmente se impede que as pessoas pensem.


Gostaria que você comentasse dois pontos levantados em seus artigos para a Folha. Um sobre a questão do sonho, da esperança, da não-desilusão política. Você acredita que vivemos um desencanto com a política como forma de transformação?
Tudo foi despolitizado, é verdade. A respeito desse artigo, recebi uma carta interessante, na qual o leitor dizia que não votava mais por fadiga eleitoral. Até citei esse comentário na Folha. Pensei "fadiga" como realmente um esgotamento diante dessa coisa. Você tem uma esperança durante um dia, no outro dia ela já acabou. A carta dizia que o balanço na política brasileira arrebenta com qualquer um, não tem cabeça nem corpo que agüente. Então pensei na relação entre o medo e a esperança, que é o foco de todo um pensamento de crítica política. A política, inclusive, se faz com o uso do medo e da esperança. A igreja usa isso: o medo do inferno e a esperança do céu. Não só isso, mas também o medo de castigos e a esperança de salvação. E a política opera com isso também, não só opera como a gente se deixa levar. E, de repente, vem uma desilusão muito grande. Olha, durante todo o tempo em que o Lula representava uma forma de oposição, fui eleitora dele. De repente, ele se viu no poder, mas continuou com a política econômica ortodoxa. O Lula é uma bolha de propaganda, em cima dessa bolha está uma figura carismática. Esse é o governo brasileiro.

O outro artigo fala da mentira. Parece que, no mundo contemporâneo, ela se tornou um valor relativo. Sempre foi assim ou é uma tática de dominação hoje?
Sempre foi uma tática de dominação. Eu citei lá um texto de A República, de Platão, em que ele usa uma palavra que eu ainda não investiguei bem: pseudos. Essa palavra normalmente é traduzida como mentira. Platão está tratando da educação do jovem guardião, que é quem vai se encarregar da organização da cidade para que ela se mantenha. Ele dizia que estava tudo errado, que precisaria começar de novo. Então teria de iniciar com as coisas absolutamente necessárias: habitação, comida etc., o mínimo necessário para a sobrevida. Conforme a cidade vai se ampliando, desperta o interesse de outras cidades, e vai haver um conflito entre elas. Então, o que aparece? A guerra. E se aparece a guerra, o guerreiro é necessário, que é o guardião da cidade. Mas ele tem de ter uma índole boa. Há um velho provérbio ético que diz: "Seja gentil com os amigos e agressivo com os inimigos". E esse jovem guardião tinha de ter a alma e o corpo modelados. Então vem toda a educação da ginástica, da música etc. Chega um determinado ponto em que ele [Platão] faz aquela célebre censura à poesia, que é preciso tirar algumas partes da poesia. Por exemplo, Homero mostrou que Aquiles estava absolutamente desolado com a morte, chorando e fazendo absurdos. Porém, nada disso convém ao guerreiro, que precisa ter atenção e coragem. Aí é que entra o negócio da mentira: é preciso que as mães contem histórias para os meninos, e que os poetas selecionem histórias que são formadoras dessas personalidades. Então, entra o que Platão chama de mentira nobre, que é aquela que você conta para um determinado grupo de pessoas - jovens e crianças -, quando a racionalidade ainda não foi desenvolvida.


Você acredita em evolução e maturidade política? Por exemplo, há quem diga que as eleições estão provocando uma maturidade política. Você acredita nisso?

Absolutamente não. Não é a eleição que vai trazer maturidade política, e sim a formação de pessoas para pensar, refletir, decidir, ordenar sua vontade de uma maneira autônoma. Porque, se não houver autonomia, não há política. Sessenta por cento dos votos que o Lula teve não significam autonomia da vontade, significam sujeição da vontade de uma massa miserável. O fato de repetir um ato não dá maturidade a ninguém. O fato é que a Câmara está aí, com tudo o que aconteceu de mais desastroso - aquela exposição lamentável e vergonhosa que foram as CPIs, mentindo daquele jeito... E você acha que a repetição do ato pode dar maturidade a alguém? Um ato que é antecedido por propaganda e por mentira de todo jeito, que é controlado por essa propaganda? A maturidade tem de vir de uma formação de independência, de autonomia. Mas não há nem independência nem autonomia. Logo, não há condições de uma vida decente. E eu me refiro à condição de trabalho mesmo, para você manter dignamente sua família. Mas precisa de tudo isso junto com o pensamento. Você não pode dar só comida... Como você vai prover uma pessoa de condições para ela ser autônoma, se você não dá condições materiais para essa autonomia? Se você não dá emprego, como ela vai ter essa autonomia? Vai ficar dependente eternamente ou então vai cair no crime organizado. A falta da eleição é muito ruim, mas ela por si só não dá maturidade nenhuma. É a repetição mecânica de um ato que vem depois de as cabeças serem infestadas pela propaganda.

 

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Fonte: Portal SESC São Paulo

 


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