A crise vista do campus
Não só o Planalto e a Esplanada
vêem a crise com a apreensão. Também
a universidade tem grande interesse
no seu desfecho, assim como toda
a sociedade brasileira. Os pontos
de vista, como sempre (e ainda bem),
são distintos. Para entender melhor
o momento político, o Jornal da
Unicamp ouviu cinco intelectuais
do Instituto de Filosofia e Ciências
Humanas (IFCH) da Unicamp, todos
eles autores de importantes obras
sobre a realidade brasileira: o
historiador Edgar de Decca, o filósofo
João Quartim de Moraes, o sociólogo
Marcelo Ridenti,o filósofo Oswaldo
Giacóia Júnior e o sociólogo Ricardo
Antunes.
ÁLVARO KASSAB
EUSTÁQUIO GOMES
Jornal da Unicamp
– O Brasil é um país acostumado
a crises políticas. Inúmeras foram
as crises institucionais ao longo
de todo o período republicano. A
crise atual é a primeira do século
XXI. Em que ela se diferencia das
anteriores?
Edgar
de Decca – Do ponto de
vista histórico, está certo dizer
que as crises políticas se sucederam
ao longo do século XX no Brasil.
Eu diria até mais: talvez a sucessão
das crises políticas tenha um tempo
de duração até muito maior do que
a gente pode vir a imaginar. Há
sinais de que essa crise política
que estamos vivendo hoje talvez
venha, inclusive, da ocasião da
instalação da República, na crise
do Império.
Sem
querer fazer uma comparação muito
grosseira das relações históricas
e de contextos históricos distintos,
há inúmeros elementos que de uma
certa maneira aparecem como comuns
nas crises no Brasil. Por exemplo:
no caso do Império, era conhecida
e hoje os historiadores têm verificado,
por meio de suas pesquisas, que
inclusive o regime político então
instalado era sujeito a uma oposição
de setores que viam nele uma incapacidade
de gerir a governabilidade do país.
Esse regime acaba por si enquistando
um núcleo de poder que se beneficia
de favorecimentos e de privilégios.
No
Império, os republicanos contestaram
o regime político que, de uma certa
maneira, acabou se encastelando
e se beneficiando de privilégios
absolutamente enormes. Esses privilégios
eram aqueles obtidos por quem participava
do jogo do poder.
É
famoso, por exemplo, o Baile da
Ilha Fiscal, que, à semelhança de
situações como as de hoje – festas
de orgias em Brasília – faz com
que percebamos que, se de um lado
há uma sociedade perplexa, por outro
lado, na época tínhamos um imperador
muito popular.
Há
também um elemento de comparação
interessante: quando se instalou
a República, o Brasil também não
passava por uma crise econômica.
As condições na época eram bastante
promissoras – a economia cafeeira
estava em expansão, o processo imigratório
atingia um grau de intensidade enorme.
Tínhamos o fim da escravidão, uma
modernização nas relações de trabalho
e na urbanização, além da industrialização.
Existia uma tendência bastante forte
de uma expansão da economia, do
mesmo modo que existe hoje.
Há
de fato, no ponto das crises políticas
brasileiras, uma grande semelhança.
A crise do Império tem características
que se assemelham à crise de hoje.
Por outro lado, as crises que ocorreram
no Brasil, nos anos 30, têm pouca
semelhança com o que acontece hoje.
Do ponto de vista da avaliação histórica
dessas crises políticas que ocorreram
no Brasil, há a possibilidade de
se observar um certo descolamento
da elite política brasileira no
que concerne à sociedade civil.
No Brasil, a elites políticas tendem
a se dissociar da sociedade civil
desde o Império até o presente.
Naquele
final de século XIX, a sociedade
civil tomou a bandeira da República
e derrubou o Império, porque as
elites políticas estavam totalmente
alheias à própria sociedade e ao
desenvolvimento e às transformações.
Hoje, também está ocorrendo isso.
A sociedade civil está amadurecida,
tem capacidade de se auto-organizar,
e dá sinais de que há uma perspectiva
econômica positiva. Mas, por outro
lado, há uma profunda crise no campo
da política.
João
Quartim de Moraes – Temos
aí um pouco a magia do calendário.
Estamos muito próximos de situações
que podemos chamar de crise ou não,
mas que tiveram impacto semelhante.
Não vou remeter à crise do governo
Collor, embora ela seja a mais óbvia,
porque a configuração era inteiramente
outra, isto é, o Collor pertencia
a um governo que montou uma quadrilha
e chegou lá para assaltar os cofres
públicos. Eu acho que, por menor
que seja o apreço de alguém pelo
governo Lula, a comparação seria
totalmente falsa. O Lula pode ser
um fraco e pode ter feito alianças
espúrias. Aliás, certamente fez
– esses que estão objetivamente
torpedeando o governo com essas
acusações, ao que parece no mínimo
parcialmente verdadeiras, de corrupção,
eram aliados dele. Lula está colhendo
os frutos de alianças podres que
fez para ampliar a base de sustentação
de seu governo.
Marcelo
Ridenti - A novidade –
e a diferença – é que pela primeira
vez uma crise desse tipo atinge
em cheio um partido de esquerda,
justamente o PT, cuja trajetória
foi marcada pelo combate à corrupção
e pela ética na política. Evidentemente,
qualquer partido deve pautar sua
conduta pela ética. O drama é que
o PT tendeu com o tempo a ressaltar
acima de tudo a moralidade em si
mesma, como se fosse o único partido
virtuoso, ficando as questões propriamente
políticas em segundo plano – e isso
se afinava com sua crescente moderação
e inserção institucional. Assim,
conseguiu atrair parte de um eleitorado
moralista de classe média, que vê
o mundo dividido em “limpos” e “sujos”,
sem se dar conta de que a política
é muito mais complicada. O PT caiu
em sua própria armadilha: revelado
um esquema grave de corrupção, mesmo
que consiga depurar-se, talvez sua
imagem esteja irremediavelmente
comprometida.
Oswaldo
Giacóia Júnior –Trata-se
de uma pergunta cuja resposta exige
profundos conhecimentos da história
política republicana no Brasil,
para poder apontar semelhanças e
diferenças – conhecimentos esses
de que não disponho. O que creio
poder afirmar é que a extensão da
crise atual, a natureza dos procedimentos
fraudulentos nela implicados, o
potencial de nocividade de certos
problemas que com ela vieram à luz
(como a perversa irracionalidade
do sistema político brasileiro,
por exemplo), a contaminação da
esfera pública pelos interesses
privados, o grau de comprometimento
institucional que já se evidencia,
todos esses fatores colocam em destaque
a gravidade dessa crise.
Ricardo
Antunes – Trata-se de uma
crise que tem muitos elementos novos:
devassou um partido que teve uma
origem social de esquerda, atingiu
um governo que na sua gênese pretendia-se
distinto e diferenciado da política
tradicional e permite também aprofundar
uma diferenciação essencial, entre
a corrupção para fins privados e
aquela que em sua origem tem finalidades
prioritariamente políticas. O PT
e seu governo imaginaram que poderiam
tornar mais longevo seu governo,
corrompendo politicamente o Parlamento
em seu lado mais nefasto e pantanoso,
dados pelo PP, PTB, PL e assemelhados.
Foi por eles fagocitado. Se a corrupção
PC/Collor foi prioritariamente para
fins privados, para enriquecimento
de uma máfia privada, o esquema
Delúbio/Valério/PT/governo Lula
talvez seja o mais amplo e sistêmico
caso de corrupção para fins políticos,
estruturado para manter a qualquer
preço, a qualquer custo e com base
em valores espúrios, como se pode
constatar na forma de pagamento
a Duda Mendonça, para a eleição
de Lula e, posteriormente com o
Mensalão, também para comprar parlamentares
e votos. Claro que dessa corrupção
entre privado e públicos nasce uma
simbiose, tornando-a, portanto,
mais intensa. E tudo isso feito
por um partido (e seu governo) que
se pretendia de esquerda.
Ainda
falta saber quem são os corruptores,
de onde
veio essa soma quase incalculável
de capital,quem se
beneficiou e a quem interessava
corromper.
Ricardo Antunes, sociólogo
JU
– Comparativamente, que grau de
profundidade tem a crise atual?
Edgar
de Decca – As características
dessa crise com relação às do Império,
nesse caso, são muito distintas.
Segundo o meu ponto de vista, e
é muito difícil você fazer uma avaliação
a longo prazo dessa situação política
atual, julgaria que o principal
elemento da crise política que estamos
vivendo é bastante localizada no
campo das esquerdas. Acho que, nesse
aspecto, ela se distingue de todas
as outras. A esquerda que tornou
hegemônico o projeto político cuja
liderança é do Partidos dos Trabalhadores,
é oriunda da luta contra a ditadura
militar.
Está
encastelada hoje, no PT, uma liderança
política que é oriunda e nasceu
da ditadura militar. Ela ainda é
da época da ditadura. Com todas
as suas virtudes históricas, teve
um papel importante, traz consigo
também todos os seus defeitos e
vícios de uma geração da qual eu
inclusive faço parte, que lutou
contra a ditadura.
Essa
liderança que está hoje no Partido
dos Trabalhadores, que está sendo
alvo de toda essa investigação e
de toda essa suspeita, se acostumou
a usar a democracia como um instrumento
do seu projeto de poder. Quer dizer,
instrumentalizou a democracia e
as instituições democráticas para
um projeto de poder. Infelizmente,
com muito pesar, isso é o que está
escancarado, é o que está se desnudando
nesse panorama. De uma certa maneira,
é um ciclo histórico que está se
encerrando. Talvez a gente possa
dizer que nós estamos dando adeus
à ditadura militar, até nos seus
aspectos de contraposição de esquerda.
Com certeza, haverá novos caminhos
e outras perspectivas. Acho que
vai ser muito difícil, apesar de
todo o esforço, refundar um partido
cuja marca, no momento, está profundamente
comprometida com uma descaracterização
das instituições da democracia.
João
Quartim de Moraes – Ela
foi exagerada pela própria base
governamental. Houve exagero, notadamente
na comparação feita entre a situação
de hoje e a de 1964. Naquela época,
a situação era de ruptura mesmo.
Jango foi derrubado porque queria
nacionalizar as terras situadas
numa certa faixa das rodovias federais
para implementar a reforma agrária.
Ele caiu de pé, por medidas avançadas,
não caiu por corrupção. A direita
ali, sim, teve uma vasta mobilização
contra-revolucionária, com base
de massa, com gente na rua. Nada
comparada com o que vivenciamos
agora. Lula vai se enfraquecer fundamentalmente
por causa dos próprios erros.
Marcelo
Ridenti – Essa crise é
grave, pois atinge não apenas o
PT mas o conjunto do sistema político.
Revela os problemas de representatividade
e de corrupção de nossa democracia.
A vontade popular tende a ser distorcida
por mecanismos como o marketing
eleitoral, especialmente na televisão,
financiados por enormes gastos de
campanha – em grande parte não declarados
e com origens escusas, o famoso
“caixa 2”. Também revela a necessidade
de uma reforma política que garanta
a representatividade popular. Mas
como fazer essa reforma, de tal
modo que ela não vire um mero acordo
para acomodar os interesses estabelecidos,
especialmente no Congresso, como
ao que tudo indica é o que vai acontecer?
Oswaldo
Giacóia Júnior – Penso
que a representação parlamentar
é um dos pilares fundamentais da
vida republicana. A avalanche de
revelações perturbadoras vindas
à luz no curso das investigações
deixa atônita e indignada a opinião
pública, sobretudo porque com elas
se percebe a profundidade do enredamento
de membros do congresso nacional,
assim como de partidos políticos
e demais instituições com procedimentos
anti-éticos e inconfessáveis, que
geram e fomentam distorções gravíssimas
num processo democrático.
Ricardo
Antunes – Ainda não chegamos
ao fundo do poço. Há certamente
mais elementos que ainda virão à
tona, mostrando a farsa grotesca
que foi esse governo, cuja sujeição
servil ao projeto neoliberal tem
seu corolário da aceitação degradante
da pior prática corruptora. Ainda
falta saber quem são os corruptores,
de onde veio essa soma quase incalculável
de capital, quem se beneficiou e
a quem interessava corromper o Parlamento.
Diferentemente da crise que levou
ao suicídio de Getúlio Vargas, onde
uma contradição real cortava a nação
e o país, Lula poderá vivenciar
algo que talvez tenha certa similitude
com a renúncia de Jânio Quadros,
eleito com ampla votação e cuja
renúncia ficou calada no povo como
expressão de um ato de fraqueza.
Em Lula, o ato de fraqueza se expressa
pela evidência de que ele jamais
poderia estar em campanha sem saber
de onde vinham os recursos. Qualquer
militante que conhece o PT sabe
que Lula sempre teve o controle
de tudo dentro do partido e que
jamais Delúbio e Dirceu fariam isso
sem o conhecimento do Presidente,
nem durante a campanha e muito menos
durante o seu governo. Portanto,
quando Jânio imaginou que renunciando
voltaria nos braços do povo, esqueceu-se
que o povo tem suas formas de percepção
e apreensão dos fatos. E está ficando
evidente – veja-se a nova pesquisa
do DataFolha - que o prestígio de
Lula está escorrendo pelos dedos
da mão. Recentemente usei essa expressão:
pizza não dá mais e estamos chegando
muito perto da crise enfrentada
pelo governo Collor.
Desfecho da crise é tão imprevisível
quanto incerto o destino da esquerda
JU
– A sociedade brasileira tem dificuldade
de assimilar a crise, sobretudo
porque ela se instalou no seio de
um governo dito de esquerda e que
tinha a revolução dos costumes políticos
como um de seus emblemas. Qual o
impacto da quebra dessa crença –
crença refletida nos resultados
da eleição de 2002 – no imaginário
da sociedade e em suas expectativas?
Edgard
de Decca – É importante
avaliarmos o que significa a crise
provocada por uma máquina de partido
político e, de outro lado, a liderança
e a expectativa criada em torno
de uma liderança que foi o Lula.
Sua vitória é o renascimento de
um populismo cujas bases se fundavam
em sindicatos e organizações populares,
muito diferentes provavelmente do
populismo liderado por Vargas e
por Jânio. É um populismo que ultrapassa
a escala dos partidos. Ele é fundado
em organizações populares que vão
muito além do PT. Há uma dualidade
na composição do poder daquilo que
pode se chamar lulismo.
Está
havendo, no momento, um embate entre
essas duas tendências. Se você blindar
o presidente, talvez se possa salvaguardar
essa liderança popular, livrando-o
daquilo que seria a corrupção da
máquina do partido. É uma equação
quase impossível. Na verdade, esses
dois componentes, isto é, o populismo
lulista e a ascensão da máquina
do partido estão imbricados. São
dois movimentos distintos: a máquina
do partido crescendo ao lado da
liderança popular de Lula. A máquina
do partido vem para substituir o
Estado. Hannah Arendt, em “A origem
do totalitarismo’, estudou o movimento
de máquinas partidárias que assaltam
o Estado e o substituem na gestão
do político. Essa é grande a novidade
que nunca tinha ocorrido no Brasil
e que um partido de esquerda conseguiu
fazer – como é que uma máquina partidária
se instala e se infiltra no aparelho
do Estado. Isso é totalmente novo.
Pode ter ocorrido, em escalas muito
mais problemáticas, no fascismo
italiano, no nazismo alemão, no
comunismo soviético. No Brasil atual,
isso acontece concomitante ao movimento
de adesão popular a uma liderança
de cunho populista.
Em outras
experiências históricas, a vertente
populista solidificada na máquina
do partido deu no fascismo. A nossa
grande vantagem é que essas duas
tendências no Brasil estão dissociadas.
Hoje, a liderança do Lula está quase
que exclusivamente na capacidade
que ele tem de chamar a atenção
de suas bases eleitorais, alimentando
o populismo. A máquina do partido
está estraçalhada.
Estamos
diante de uma
possibilidade inédita de
preservar, valorizar e
consolidar, em última
instância, as instituições.
Edgard de Decca, historiador
João
Quartim de Moraes – A pergunta
é muito boa, mas já encerra, nela
mesma, uma teoria. Eu não concordo.
É udenismo achar que honestidade
no trato das finanças públicas é
a principal qualidade do governante.
Sobretudo quando se trata de virtude
de fachada, de retórica de sepulcros
caiados de branco. Acho que quem
rouba o patrimônio público é ladrão
e tem de ser condenado. Agora, transformar
a honestidade em grande bandeira,
em panacéia... Sempre escolhemos
uma grande bandeira no lugar de
outra, ou seja, no caso, as reformas
sociais em profundidade. Até acho
que havia isso no PT. Mas este partido
sempre foi uma salada ideológica
– às vezes, com uma linguagem de
extrema esquerda, mas sempre inconsistente,
com uma cara de anticomunismo muito
forte. Um exemplo decisivo: quando
viram que a União Soviética ia desmantelar
eles acharam muito bom, encheram
a boca para falar em democracia.
Na verdade, comiam na mão da ideologia
estadunidense.
No
plano interno, aquele ideal do político
ilibado é bem udenista, moralista.
É um udenismo um pouco à esquerda,
menos reacionário do que a UDN histórica
quando ela foi fundada. Vejo sem
surpresa que a popularidade de Lula
não caiu muito perante as massas
populares. A retórica da tartufice
impressionava mais certas faixas
do eleitorado de melhor renda. Mas
a massa dos eleitores pode até ficar
desanimada, mas pensa algo assim:
“O FHC também meteu a mão, só que
com mais habilidade...”. Mas não
creio que prevaleça a idéia do desapontamento
com o Lula, pelo menos enquanto
ele se mantiver um pouco acima de
tudo isso, pretendendo não se ter
comprometido pessoalmente. Acho
que no povo não se afeta muito com
a retórica de malandros fantasiados
de sacerdotisas do culto da honestidade
no trato da coisa pública.
Marcelo
Ridenti – Existe um senso
comum de que a política é por natureza
corrupta, logo, algo em que as pessoas
honestas não devem se meter. A atual
crise tende a reforçar essa ideologia
que leva ao desinteresse pela política,
como se não fosse possível transformar
nada, nem sequer elegendo um presidente
e congressistas considerados de
esquerda. Isso é péssimo para a
democracia, especialmente para as
forças interessadas em mudanças
na ordem social, econômica e política.
Oswaldo
Giacóia Júnior – De um
ponto de vista psicológico, esse
talvez seja um dos componentes dessa
crise que mais geram abatimento
e frustração. É consideravelmente
grande o percentual de pessoas que
acreditavam que o novo governo traria
consigo um elevado grau de esforço,
comprometimento e boa vontade para
buscar e implementar políticas públicas
de justiça social, alternativas
consistentes para as opções tradicionais
do jogo político brasileiro, aumento
das margens de autonomia para a
atuação dos agentes públicos, de
transparência nas decisões e negócios
do Estado – daí o extraordinário
capital de confiança generosamente
depositado na transformação radical
da moralidade política nacional,
na firmeza em relação a padrões
éticos de gestão de bens e recursos,
enfim do interesse público. É inegável
que se pode detectar sinais evidentes
de uma quebra de confiança, mas
não creio que isso implique em resignação
ou capitulação em relação a essas
expectativas. Talvez ocorra o contrário,
isto é, um incremento de ânimo na
busca intransigente dessas metas
e um desejo ainda mais ardente de
evitar desvios e distorções no caminho
que elas indicam.
Ricardo
Antunes – O primeiro impacto
é que acabou a auréola do PT como
partido diferente dos demais. O
PT (e falo aqui do PT dominado pelo
chamado Campo Majoritário) soçobrou
na vala comum dos partidos de direita.
Veja que o estopim dessa crise se
deu com o descumprimento do acordo
feito entre Dirceu, então ministro
da Casa Civil e Roberto Jefferson.
Quis negociar com essa direita e
depois dar um “chega pra lá” nela.
Deu no que deu. Claro que para o
imaginário popular, eleger Lula,
um ex-líder operário à Presidência
da República, depois de tantas disputas,
e vê-lo desmoronar desse modo, terá
fortes conseqüências e em muitos
a idéia do descrédito completo,
algo como a comprovação empírica
de tese de que “todos são iguais”.
Para a esquerda, é preciso, então,
recomeçar.
Em
algum momento a esquerda
vai se recompor, pois é difícil
imaginar que a ordem social e
econômica hoje dominante
possa ser aceita sem contestação.
Marcelo Ridenti, sociólogo
JU
– Em que medida, na sua opinião,
o ideário da esquerda brasileira
foi atingido pela crise política
em curso? Ou seja, a esquerda brasileira
será capaz de se recompor? Que tipo
de esquerda pode emergir da crise?
Edgar
de Decca – Analisando do
ponto de vista histórico, é o réquiem
da esquerda que se formou durante
a ditadura. Pode ser trágico, pode
ser lamentável reconhecer isso,
inclusive porque nós somos participantes
dessa jornada, mas ela está enterrada.
De um lado, acho que essa esquerda
formada por dois componentes – um,
ideológico, profundamente marcado
por um marxismo do tipo leninista,
que faz uma apologia muito forte
da máquina do partido como instrumento
do poder; e um corporativismo oriundo
da Era Vargas, que é profundamente
danoso para o pensamento de esquerda.
Mas a esquerda brasileira mimetizou
o corporativismo do varguismo. Não
tenho nenhuma saudade dessa vertente.
Quando
escrevi o livro “1930– O silêncio
dos vencidos”, no momento de anistia
política, estudei as alternativas
da esquerda e fiz a crítica ao período
varguista porque acreditava que
uma das tarefas do pensamento de
esquerda era a de abandonar todo
o resquício corporativista que se
formou desde a época do Estado Novo.
Não
tenho o menor pudor em dizer que
essa crise tem algo de muito positivo
nisso. Os novos movimentos sociais,
seja da parte do mundo do trabalho,
com a sua respectiva precarização
e com a crise do sindicalismo, terão
um novo papel – brigar pela qualificação
e pela preservação do trabalho.
Teremos novos movimentos sociais
oriundos das questões ambientais,
preocupados com os padrões morais
e com a ética. Esse novo campo de
demandas com certeza criará uma
nova perspectiva para a juventude
e para as gerações que almejam um
mundo mais justo. Talvez as nomenclaturas
oriundas da Revolução Francesa –esquerda
e direita – podem ser aos poucos
sendo ultrapassadas.
João
Quartim de Moraes – O mais
grave é que, embora o próprio Lula
tenha dito que não é mais de esquerda,
a verdade é que o governo é apoiado
pela grande maioria da esquerda.
Lula pode estar querendo pular fora,
mas trata-se de uma derrota para
a esquerda. A derrota do PT é uma
derrota da esquerda. Nunca fui petista,
mas fazer o quê? Não se trata de
um assunto pessoal.
Se
eu visse as coisas de uma maneira
esquerdista, eu até estaria contente.
Pensaria: “Está aí a prova. Eu que
sempre fui marxista, leninista.
Está vendo, chutaram o comunismo,
cuspiram no comunismo...”. Mas eu
não acho que isso seja auspicioso,
mesmo porque o comunismo é uma minoria.
O comunismo tomou uma cacetada enorme
em escala internacional. Existe
um preconceito de 60 anos de intoxicação
mental. O PC do B vai assumir a
esquerda? Pode ser uma força importante,
mas é pequena. É uma derrota para
a esquerda. O estrago foi grande.
Dimensionaremos isso logo, nas próximas
eleições.
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O
presidencialismo tem um elemento
que Marx chamava bonapartismo, que
é o fato de ter um homem providencial
que o povo elege para mandar, a
quem confere o poder; é o homem
escolhido pela nação para dirigi-la.
Isso do ponto de vista das constituições
democráticas dos séculos 18 e 19,
não é democracia. Não é governo
pela assembléia de representantes
do povo. É um governo de um homem
só. Esse problema do presidencialismo
é uma faca de vários gumes. Significa
também que muita performance do
Lula, caso ele consiga ganhar a
eleição, essa derrota de hoje ganha
um fôlego de mais quatro anos para
a esquerda reformular inclusive
sua posição em relação ao Lula.
Inclusive de apoio mais crítico.
Sempre preguei que era preciso sair
do apoio incondicional para o apoio
crítico. Não estão conseguindo.
Votaram aquela reforma reacionária
da Previdência e outras porcarias
para não romper.
Caso
Lula seja reeleito, essa derrota
do PT passa para o segundo plano,
até porque o eleitor está identificando
cada vez menos o Lula ao PT. Aliás
é por isso que a direita e o tucanato
estão insistindo nesse ponto. FHC,
que de bobo não tem nada, ele dá
aula de esperteza para nós todos
juntos, quer é ou fazer um acordão
para o Lula não concorrer – já que
ele ainda é um candidato forte em
termos de pesquisa – ou uma composição
com ele. Agora, se o Lula ganhar,
a esquerda tem mais quatro anos
para fazer menos bobagem.
Marcelo
Ridenti – Em algum momento
a esquerda vai se recompor, pois
é difícil imaginar que a ordem social
e econômica hoje dominante possa
ser aceita sem contestação, especialmente
numa sociedade tão desigual como
a brasileira. Resta saber como isso
se fará. Alguns colegas têm previsto
até dez, vinte anos para que haja
uma recomposição das esquerdas com
viabilidade política significativa.
Historicamente, as esquerdas no
Brasil tiveram um ciclo anarquista
no início do século XX. Depois houve
um ciclo das vanguardas, a partir
dos anos 20, em que os comunistas
foram hegemônicos. Ele se encerrou
com a derrota da esquerda armada
durante a ditadura. No final dos
anos 1970, começou a gestar-se um
ciclo que se poderia chamar “das
bases”, animado pelos então chamados
novos movimentos sociais, pelo novo
sindicalismo, pelas comunidades
eclesiais de base informadas pela
Teologia da Libertação, enfim, por
uma mobilização social de trabalhadores
urbanos e rurais, incluindo setores
significativos das classes médias,
no período da transição democrática.
O PT, criado em 1980, foi o partido
hegemônico na esquerda desde então.
Estaríamos assistindo ao fim desse
ciclo? O que viria em seu lugar?
São questões em aberto.
Oswaldo
Giacóia Júnior – Seria
apressado, injusto e equivocado
afirmar que o “ideário da esquerda
brasileira” tenha sido atingido
pela crise política que estamos
atravessando, na medida em que justamente
os programas políticos de esquerda
mais autênticos sempre se opuseram
aos acontecimentos e comportamentos
lamentáveis que vemos aflorar nessa
crise. É necessário considerar os
fatos com maturidade, lucidez, realismo
e capacidade de discernimento, para
deles poder extrair os elementos
que reforcem a responsabilidade
e o compromisso com a implementação
de valores e metas que impliquem
na erradicação de privilégios injustificáveis,
de injustiças odiosas, de indicadores
revoltantes de exclusão social,
de descaso e cinismo em relação
às desigualdades e às prioridades
na definição de metas para as políticas
de Estado.
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Ricardo
Antunes – Para a esquerda,
trata-se, uma vez mais, de recuperar
os elementos em seus experimentos
mais generosos. O PT, entre tantos
equívocos que conheceu ao longo
de sua história – que, é preciso
dizer, teve também muitos méritos,
dos quais o principal for ter tido
uma forte origem operária e popular
–, cometeu desde logo um “pecado
capital”, marcado pelo seu completo
desdém pela teoria, pela reflexão.
Só a título de exemplo: Florestan
Fernandes, Caio Prado Jr., entre
os nossos grandes intelectuais de
esquerda, para não falar dos autores
clássicos da teoria emancipatória,
como Marx, sempre foram desconsiderados
ou, no máximo, assimilados como
verniz para uma política desprovida
de teoria. Salvo os grupamentos
mais à esquerda do PT, a desconsideração
pela reflexão sempre foi um traço
do PT dominante, a começar por Lula
e sua completa repulsa pela teoria.
Um novo projeto de esquerda deverá
ressoldar seus laços com as lutas
sociais dos trabalhadores das cidades
e dos campos, única forma de recuperar
força, vitalidade e impulsão. E
recusar o caminho de linha de menor
resistência, dado pelo eleitoralismo
e institucionalismo que deixaram
o PT de joelhos, convertendo-o em
“partido da ordem”, cada vez mais
eleitoral e, finalmente, puramente
eleitoreiro.
JU
– O Partido dos Trabalhadores foi,
durantes duas décadas, um importante
canal de interlocução da cena política
junto a segmentos importantes da
sociedade, entre os quais intelectuais,
formadores de opinião e a classe
média urbana. O que restou dele?
O partido já é uma página virada
ou tem condições de reerguer-se?
Edgar
de Decca – O que se consegue
observar é que há um conflito de
gerações dentro do PT. Isso é evidente.
Há uma geração do PT formada nos
ideais democráticos, na vigência
dos princípios pós Diretas-já. Percebe-se
que essa geração entende que os
ideais partidários precisam ser
defendidos na escala das instituições
e no espaço da democracia – e não
tornar a democracia um instrumento
para a consolidação de uma máquina
do poder. É tão visível essa discrepância
que essa nova geração é herdeira
de uma responsabilidade imensa:
refundar e recriar a credibilidade
de uma sigla que, no momento, está
profundamente estigmatizada.
Se
os quadros remanescentes do PT quiserem
levantar a bandeira da esquerda
– se ainda for possível falar em
esquerda no sentido clássico – eles,
com certeza, não mais serão hegemônicos.
Essa crise no plano das esquerdas
é visível já há algum tempo, mas
agrava-se agora com o esfacelamento
do PT. De qualquer maneira, a esquerda
está completamente fragmentada nos
dias atuais. E o que é pior, desacreditada.
O quadro político-partidário vai
sofrer uma transformação muito grande
nos próximos anos, com essa crise
produzida pelo PT.
João
Quartim de Moraes – O PT
foi a principal força da esquerda
de 1980 até agora. É um quarto de
século, o que não é pouca porcaria,
mesmo em termos de história. Como
estou de fora, nunca fui petista,
vejo de longe. Admiro alguns nomes
do partido, mas é preciso analisar
que forças terão daqui para frente.
É preciso saber com clareza o que
foi essa reformulação do diretório
nacional. A coisa está ainda indefinida.
Não sabemos se vão cassar o José
Dirceu etc. Acho que ainda está
um pouco cedo para dimensionar o
tamanho da débâcle do PT.
Por
outro lado, acho que o partido sofreu
uma derrota mas não está destruído.
O PT cresceu muito nos últimos anos.
Não é um exército desbaratado em
plena derrocada. Embora tenha perdido
muito e esteja perplexo, ainda tem
muita força e ocupa posições no
aparelho governamental. A cacetada
federal abre caminho para a reformulação
e para o reequilíbrio de forças
no interior da esquerda. Acho que
o movimento marxista e até mesmo
o PT mais conseqüente, com um programa
histórico de formação social, tem
uma chance de se abrir.
Marcelo
Ridenti – É difícil prever
o que será do PT. Aposto que não
vai acabar como partido, até pela
sua força acumulada. Mas em quê
ele vai se transformar ou já vem
se transformando? Alguns acham que
ele pode depurar-se e voltar às
origens. Seria uma ilusão: já se
diluíram as coordenadas históricas
que lhe deram vida no final da ditadura
militar; nem o PT, nem o PSOL nem
qualquer outro partido tem como
reconstituir o que já não existe.
Outra possibilidade com que alguns
sonham é que o PT possa cumprir
a promessa de ser uma superação
das tradições de esquerda no século
XX, sendo uma síntese superior ao
que significaram o bolchevismo e
a social-democracia. Mas em algum
momento teria havido alguma base
real para esse sonho? A experiência
do PT lembra muito a da social-democracia
européia, só que ele realizou em
poucos anos uma virada que na Europa
demorou um século: do socialismo
democrático à gestão “responsável”
do capitalismo, que tende a aproximá-lo
de tornar-se um partido social-liberal,
ou seja, que adota medidas neoliberais
na economia, com algumas políticas
sociais compensatórias. Mais grave,
como agora se revela, um partido
tão comprometido com interesses
escusos como os outros que sempre
criticara.
Outra
alternativa, que um colega levantou:
o PT pode virar algo que lembre
o Justicialismo na Argentina, embasado
em grupos sindicais, populares e
políticos ligados a negócios de
diversas ordens, e por vezes inimigos
entre si, que lá reivindicam em
comum o legado de Peron, e aqui
poderão contar com o messianismo
de Lula.
Seja
qual for o destino do PT, parece
que ele está estruturalmente comprometido
com um processo de burocratização
e institucionalização que penetrou
em suas entranhas, tende a ser cada
vez mais uma pálida sombra da utopia
socialista democrática que o constituiu.
Mas o PT ainda conta com militantes
sinceros que apostam na velha utopia
e devem fazer parte de uma refundação
das esquerdas para o século XXI,
que provavelmente vai se desenhar
também no cenário internacional,
ainda que não esteja claro o que
virá a ser.
Oswaldo
Giacóia Júnior – Considerado
a partir do ponto de vista de sua
história de formação e do tipo de
comportamento que tem pautado sua
atuação, o Partido dos Trabalhadores
foi e continua sendo uma das forças
atuantes mais importantes e significativas
da vida política brasileira nessas
últimas décadas. Se em todo julgamento
justo é necessário evitar a prevenção
e a precipitação, isso é ainda mais
verdadeiro no caso de um julgamento
nessas condições. Penso que o PT
deve passar por um período de séria,
intensa e produtiva auto-reflexão
e autocrítica, de que devem resultar
importantes transformações. É muito
cedo para afirmar que se encontra
liquidado, ou que não tenha condição
de se refazer.
Ricardo
Antunes – Penso que o PT
acabou enquanto partido de esquerda.
Converteu-se numa espécie de PMDB
do novo século. Acho muito difícil
essa tentativa atual de repô-lo,
pois os vícios de origem se mantêm.
E é sempre bom lembrar que a antiga
Articulação, hoje denominada Campo
Majoritário, legitimou quase tudo
isso que presenciamos hoje: o Caixa
2, os recursos de origem duvidosa,
a conversão do PT e de suas campanhas
em pura manipulação propagandística,
deu garantias para o lema Lulinha
paz e Amor e jamais questionou –
ao contrario, legitimou – a contratação
de Duda Mendonça, as alianças com
setores da direita, alguns deles
capazes de envergonhar a própria
direita. Tudo isso foi respaldado
pelo Campo Majoritário. O desafio,
agora, é ver quais serão os caminhos
dos vários grupamentos de esquerda,
ainda no PT, e que estão em estado
de estupefação, torpor e repulsa.
Se
eu quiser ter uma visão mais otimista,
vislumbrar o melhor
cenário, eu diria que o Lula seria
reeleito, mediocremente, como
um homem acima dos partidos.
João Quartim
de Moraes, filósofo
JU
– Em sua opinião, o arcabouço institucional
que dá suporte à democracia mostra-se
sólido o suficiente para dar conta
da crise?
Edgar
de Decca – Do ponto de
vista histórico, o que mais nos
deixa apreensivos nas tradições
políticas do Brasil é que a política
brasileira sempre foi um retrato
muito fiel daquilo que o Sergio
Buarque de Holanda dizia: os brasileiros
são uns desterrados dentro de sua
própria terra. Os brasileiros vêem
o próprio Brasil como um país de
passagem. Você tem que exaurir tudo,
porque tudo tem que ser aproveitado
de uma maneira a mais imediata possível.
Há uma certa dificuldade de perenidade
do ponto de vista das instituições
brasileiras. Esse é o grande risco
que vive permanentemente o Brasil
nas suas sucessivas crises políticas.
A
crise política do presente revela
esse desterro brasileiro – uma máquina
de poder que chega ao Estado e quer
aproveitar ao máximo e com todas
as suas potencialidades exaurir
o território da política e perpetuar-se
o quanto for possível. Essa falta
de distanciamento no que concerne
a esfera pública – essa cupidez
é resultado da esfera privada –
gera o corporativismo e a instalação
de interesses de uma máquina privada
de poder. A esfera pública e suas
instituições não têm grande valor.
Prevalece a ambição de poder da
esfera do privado. Isso dá a dimensão
do nosso desterro.
Desde
a chegada dos portugueses, o Brasil
é um lugar para se tomar conta,
aproveitar o máximo e ir embora.
Nessa crise há também uma certa
sensação dessa idéia do desterro.
Ninguém é responsabilizado pela
preservação das instituições. Eles
chegam, arrasam – como foram arrasados
territórios imensos na exploração
colonial – e abandonam a terra.
Esse assalto ao Estado, que não
é privilégio da esquerda, existe
no Brasil desde a formação das instituições
coloniais.
João
Quartim de Moraes – Se
eu responder sem pensar muito, eu
diria que se esse arcabouço é o
mesmo que permite, nos Estados Unidos,
reeleger um neonazista como o Bush,
disposto a dobrar o mundo na base
de míssil, eu realmente estou pouco
ligando para ele. Democracia, para
mim, é outra coisa. Eu não defino
a democracia arbitrariamente, mas
sim no sentido até etimológico.
Ela é o predomínio do interesse
coletivo sobre o interesse de minorias.
Esse arcabouço que está aí não garante
isso. Não sei se perderíamos muita
coisa sem esse arcabouço. É claro
que, se perder isso e vier o DOI-CODI,
eu prefiro isso, mas sem entusiasmo.
Foi um avanço em relação à ditadura,
mas que esse sistema eleitoral é
viciado não há a menor dúvida. Basta
olhar para o Duda Mendonça e caterva.
Se
eu quiser ter uma visão mais otimista,
vislumbrar o melhor cenário, eu
diria que o Lula seria reeleito,
mediocremente, como um homem acima
dos partidos, como um homem que
não está manchado pelo Dirceu, Delúbio
etc. E o Dirceu assumirá a culpa.
Não sou débil mental em acreditar
que Lula não sabia o que está acontecendo.
É como acreditar que criança nasce
em repolho. Lula não é um gênio
intelectual, mas de bobo não tem
nada. Não creio também que José
Dirceu tenha se locupletado. Creio
simplesmente que ele queria quebrar
a direita usando métodos de direita.
Com
a reeleição de Lula, a esquerda
teria um espaço de tempo para ser
mais exigente e crítica, sem ser
estafeta do governo. Caso Lula seja
reeleito, será por todo o mundo
que está contra o tucanato, inclusive
a direita. A esquerda podia ser
uma força de pressão maior, sem
se comprometer em votar aquilo que
o Lula quisesse, exercendo uma pressão
no sentido de fazer alguma reforma
social. Num cenário pior, a derrota
de Lula acabaria de desmoralizar
a esquerda. De qualquer forma, o
cenário é medíocre, de baixa esperança.
Marcelo
Ridenti – Se o arcabouço
institucional dá conta da crise?
Sim, no sentido de que parece não
haver ameaça de golpe à vista. Mas
não é sólido no sentido apontado
anteriormente, pois é certo que
uma crise como essa tende a desacreditar
a própria política, semeando o campo
para alternativas antidemocráticas.
Oswaldo
Giacóia Júnior – Tenho
profunda confiança em que as instituições
democráticas brasileiras demonstrem
dispor de um potencial de responsabilidade,
probidade, solidez e maturidade
suficientes para conduzir a bom
termo processos que levem à resolução
da crise, de modo a restaurar a
confiança e o ânimo político do
cidadão brasileiro.
Ricardo
Antunes – Penso que sim,
porque, chegando cada vez mais próximo
o impeachment de Lula, ele deverá
ser resultado de ações rigorosamente
constitucionais, e a sociedade tem
demostrado maturidade crescente.
E Lula, embora atribua a crise,
de modo manupulatório e messiânico,
às “elites”, destroçou a força social
organizada que o elegeu, desconstruiu,
ao longo de seus mais de dois anos
de mandato, grande parte da organização
dos movimentos sociais que anteriormente
encontravam no PT inspiração ou
lhe davam sustentação. O caso do
neopeleguismo da CUT é exemplar.
Lula hoje se mantém no poder porque
as “elites” – especialmente o grande
capital financeiro – assim quer.
Nunca lucrou tanto, nem com a ditadura
militar, nem com Collor e nem com
FHC. Aliás, exclusivamente nesse
sentido, Lula tem um curioso traço
de bonapartismo: nunca lucraram
tanto os estratos burgueses, cujo
governo encontra-se (ao menos virtualmente)
nas mãos de um ex-líder operário.
Há aqui, de novo, algo de farsa,
além da tragédia.
JU
– Que lições podem ser tiradas da
crise?
Edgar
de Decca – A maior lição
é que estamos diante de uma possibilidade
inédita de preservar, valorizar
e consolidar, em última instância,
as instituições. Isso está ocorrendo
desde o final da ditadura militar.
Um exemplo são as universidades
brasileiras. Hoje, as universidades
paulistas conquistaram a autonomia
financeira e a capacidade de separar
as suas crises e seus embates políticos.
Sucedem-se as reitorias, mas a institucionalidade,
a preservação da instituição, a
probidade administrativa e o bom
uso dos recursos públicos estão
assegurados. A Unicamp é um microcosmo
exemplar dessa maturidade que a
gente espera que se atinja em outros
níveis e em todas as outras instituições.
Espero que o Congresso também tenha
essa maturidade de não ficar fazendo
uma disputa exclusivamente partidária.
É preciso enxergar um passo além.
João
Quartim de Moraes – Que
a eleição não é panacéia. Numa ordem
capitalista, o sistema eleitoral
é altamente permeável ao poder do
dinheiro. O PT subestimou largamente
isso. Ou subestimou ou se corrompeu...
Marcelo
Ridenti – Vou me restringir
a algumas questões para as quais
as esquerdas devem estar atentas,
se quiserem refundar-se. O compromisso
com a ética na política é fundamental,
mas ele não deve ser a principal
preocupação de partidos de esquerda.
Além de moralizar, é preciso acima
de tudo questionar e lutar para
transformar a ordem social, econômica
e política. De um ponto de vista
crítico, não cabe a ilusão de que
a ordem estabelecida seria adequada,
uma vez moralizada – essa é tradicionalmente
uma bandeira da direita, de políticos
como Eduardo Gomes, Carlos Lacerda
e Jânio Quadros, da velha União
Democrática Nacional (UDN).
Outra
ponderação: deve ser abandonada
a ideologia do marco zero que tem
marcado as passagens dos ciclos
históricos das esquerdas a que me
referi. Desde os anos 1920, os comunistas
supunham ser a novidade, livres
dos erros anarco-sindicalistas.
Por sua vez, nos anos 1970/80, ressurgiu
a ideologia do marco zero, muito
forte no PT, que fazia de conta
que nada tinha a ver com a tradição
de esquerda imediatamente passada,
comunista ou trabalhista. Uma refundação
das esquerdas, que talvez venha
a abrir um novo ciclo de sua história,
passa pela reflexão sobre os alcances
e limites de suas políticas ao longo
do último século. O que implica
também aprender a desconfiar das
próprias certezas.
Oswaldo
Giacóia Júnior – Fundamentalmente
que o único caminho lúcido para
resolução de problemas, por mais
profundos e graves que sejam, é
o exercício vigilante da autonomia,
enquanto capacidade para fazer livre
uso do próprio entendimento, e da
cidadania responsável.
Prefiro
dizer que, com base no
conhecimento dos dados de que
dispomos, enquanto cidadãos
comuns, o impeachment não se
afigura como uma medida sensata.
Oswaldo Giacóia
Júnior, filósofo
JU
– Em sua opinião, o impeachment
é uma possibilidade no horizonte
da crise?
Edgar
de Decca – Vou fazer uma
outra comparação do final da ditadura
militar – até o presente – com a
Revolução Francesa. O fim da ditadura
militar poderíamos caracterizar
como a Queda da Bastilha, em 1789.
O período que se sucedeu à Revolução
Francesa é um período de monarquia
constitucional – que se assemelha
ao período que deu origem às eleições
indiretas e à consolidação das instituições
por intermédio de figuras que estiveram
ligadas ao antigo regime. As liberdades
democráticas são conquistadas, e
tem-se a perspectiva dos primeiros
governos eleitos pelo povo.
O
populismo de Lula é o regime populista
de Robespierre. É o momento em que
predominam as tendências populares
e as tendências políticas que lutaram
pelo fim da ditadura. Predomina
a hegemonia dessas forças jacobinas
e tem-se o regime de Robespierre
– que na Revolução Francesa foi
conhecido como o regime do terror.
É o regime em que a máquina jacobina
substitui o Estado, e o populismo
se transforma numa arma poderosa
de mobilização política.
É
interessante que, desde a semana
passada, a Ordem dos Advogados do
Brasil e o próprio presidente do
PT, falam na convocação do Conselho
da República – que está prevista
na Constituinte. De uma certa, foi
a saída que se encontrou, na Revolução
Francesa, com a crise do jacobinismo
e do populismo de Robespierre. Um
Conselho da República que, uma vez
convocado, é o reconhecimento na
esfera política de que o presidente,
sozinho, é incapaz de preservar
as instituições democráticas. A
convocação do Conselho da República
supõe que, no nosso sistema, os
presidentes da Câmara e do Senado
têm de fazer a convocação desse
conselho para que as instituições
se preservem.
Eu
diria que se isso vier a ocorrer,
nas próximas semanas, é um a maneira
de evitar o impeachment. É uma maneira
de preservar a governabilidade.
Isso se assemelha à Revolução Francesa.
É uma saída histórica bastante plausível.
Trata-se de uma alternativa de governabilidade.
Não sei se é a melhor, mas pelo
menos, está prevista na Constituição
de 1988.
Por
outro lado, há um problema sério
nessa crise. A governabilidade não
está mais com o governo, o que é
um dado fundamental. A governabilidade,
nesse momento, está nas mãos da
oposição. Ela vai ditar o cronograma
da governabilidade. A crise é muito
grande porque, quando a governabilidade
não está com o governo, surge o
impasse. O impeachment não depende
mais daquilo que o governo pode
ou não sinalizar. A decisão está
nas mãos das oposições.
João
Quartim de Moraes – Acho
que não é fatal, mas a direita está
bem assanhada. A esquerda, por maior
que seja a miséria política do governo
Lula, tem de se bater contra o impeachment.
Marcelo
Ridenti - É uma possibilidade,
pois não se pode ter certeza até
onde uma crise como essa pode levar.
Pouca gente nos meios políticos
tem dúvida de que o presidente,
além de ser o principal beneficiário
político do esquema de corrupção,
tinha conhecimento dele no essencial.
Contudo, parece improvável que se
abra um processo de impeachment,
pois ele traria riscos ao conjunto
das classes dirigentes, poderia
gerar transtornos na estabilidade
dos negócios empresariais e, ademais,
incentivar uma eventual mobilização
popular para defender o mandato
de Lula, cuja liderança messiânica
é temida. Manter o atual governo
acuado e desacreditá-lo cada vez
mais, para ser batido nas próximas
eleições, parece ser o plano da
maior parte da oposição. Ademais,
ela concorda no essencial com a
política econômica – que dá continuidade
à do governo FHC – de modo que não
haveria urgência em derrubar o governo.
O
importante para os defensores do
status quo não é derrubar Lula,
mas desmoralizar não propriamente
o PT – essa máquina burocrática
emperrada e negocista em que parece
ter-se convertido – mas sua imagem
como partido crítico da ordem e
com base popular sólida. Tentam
assim riscar do mapa político quaisquer
alternativas de esquerda, estigmatizadas
como incompetentes, irresponsáveis
e corruptas. Convenhamos que a direção
do PT e uma parte da militância
deram um prato cheio para a direita
regalar-se, jogando o conjunto das
esquerdas num atoleiro.
Oswaldo
Giacóia Júnior – Falar
sobre possibilidade, num contexto
em ebulição alucinada em que os
acontecimentos se produzem, parece-me
demasiado abstrato. Prefiro dizer
que, com base no conhecimento dos
dados de que dispomos, enquanto
cidadãos comuns, o impeachment não
se afigura como uma medida sensata,
muito menos como uma solução que
pusesse fim à crise.