Jornal Unicamp

A crise vista do campus

Não só o Planalto e a Esplanada vêem a crise com a apreensão. Também a universidade tem grande interesse no seu desfecho, assim como toda a sociedade brasileira. Os pontos de vista, como sempre (e ainda bem), são distintos. Para entender melhor o momento político, o Jornal da Unicamp ouviu cinco intelectuais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, todos eles autores de importantes obras sobre a realidade brasileira: o historiador Edgar de Decca, o filósofo João Quartim de Moraes, o sociólogo Marcelo Ridenti,o filósofo Oswaldo Giacóia Júnior e o sociólogo Ricardo Antunes.

ÁLVARO KASSAB

EUSTÁQUIO GOMES

Tumulto provocado por lista apócrifa apresentada pelo deputado petista Paulo Pimenta em sessão conjunta das CPMIs dos Correios e do Mensalão, no Senado, no último dia 10Jornal da Unicamp – O Brasil é um país acostumado a crises políticas. Inúmeras foram as crises institucionais ao longo de todo o período republicano. A crise atual é a primeira do século XXI. Em que ela se diferencia das anteriores?

Edgar de Decca – Do ponto de vista histórico, está certo dizer que as crises políticas se sucederam ao longo do século XX no Brasil. Eu diria até mais: talvez a sucessão das crises políticas tenha um tempo de duração até muito maior do que a gente pode vir a imaginar. Há sinais de que essa crise política que estamos vivendo hoje talvez venha, inclusive, da ocasião da instalação da República, na crise do Império.

Sem querer fazer uma comparação muito grosseira das relações históricas e de contextos históricos distintos, há inúmeros elementos que de uma certa maneira aparecem como comuns nas crises no Brasil. Por exemplo: no caso do Império, era conhecida e hoje os historiadores têm verificado, por meio de suas pesquisas, que inclusive o regime político então instalado era sujeito a uma oposição de setores que viam nele uma incapacidade de gerir a governabilidade do país. Esse regime acaba por si enquistando um núcleo de poder que se beneficia de favorecimentos e de privilégios.

No Império, os republicanos contestaram o regime político que, de uma certa maneira, acabou se encastelando e se beneficiando de privilégios absolutamente enormes. Esses privilégios eram aqueles obtidos por quem participava do jogo do poder.

É famoso, por exemplo, o Baile da Ilha Fiscal, que, à semelhança de situações como as de hoje – festas de orgias em Brasília – faz com que percebamos que, se de um lado há uma sociedade perplexa, por outro lado, na época tínhamos um imperador muito popular.

Há também um elemento de comparação interessante: quando se instalou a República, o Brasil também não passava por uma crise econômica. As condições na época eram bastante promissoras – a economia cafeeira estava em expansão, o processo imigratório atingia um grau de intensidade enorme. Tínhamos o fim da escravidão, uma modernização nas relações de trabalho e na urbanização, além da industrialização. Existia uma tendência bastante forte de uma expansão da economia, do mesmo modo que existe hoje.

Há de fato, no ponto das crises políticas brasileiras, uma grande semelhança. A crise do Império tem características que se assemelham à crise de hoje. Por outro lado, as crises que ocorreram no Brasil, nos anos 30, têm pouca semelhança com o que acontece hoje. Do ponto de vista da avaliação histórica dessas crises políticas que ocorreram no Brasil, há a possibilidade de se observar um certo descolamento da elite política brasileira no que concerne à sociedade civil. No Brasil, a elites políticas tendem a se dissociar da sociedade civil desde o Império até o presente.

Naquele final de século XIX, a sociedade civil tomou a bandeira da República e derrubou o Império, porque as elites políticas estavam totalmente alheias à própria sociedade e ao desenvolvimento e às transformações. Hoje, também está ocorrendo isso. A sociedade civil está amadurecida, tem capacidade de se auto-organizar, e dá sinais de que há uma perspectiva econômica positiva. Mas, por outro lado, há uma profunda crise no campo da política.

João Quartim de Moraes – Temos aí um pouco a magia do calendário. Estamos muito próximos de situações que podemos chamar de crise ou não, mas que tiveram impacto semelhante. Não vou remeter à crise do governo Collor, embora ela seja a mais óbvia, porque a configuração era inteiramente outra, isto é, o Collor pertencia a um governo que montou uma quadrilha e chegou lá para assaltar os cofres públicos. Eu acho que, por menor que seja o apreço de alguém pelo governo Lula, a comparação seria totalmente falsa. O Lula pode ser um fraco e pode ter feito alianças espúrias. Aliás, certamente fez – esses que estão objetivamente torpedeando o governo com essas acusações, ao que parece no mínimo parcialmente verdadeiras, de corrupção, eram aliados dele. Lula está colhendo os frutos de alianças podres que fez para ampliar a base de sustentação de seu governo.

Marcelo Ridenti - A novidade – e a diferença – é que pela primeira vez uma crise desse tipo atinge em cheio um partido de esquerda, justamente o PT, cuja trajetória foi marcada pelo combate à corrupção e pela ética na política. Evidentemente, qualquer partido deve pautar sua conduta pela ética. O drama é que o PT tendeu com o tempo a ressaltar acima de tudo a moralidade em si mesma, como se fosse o único partido virtuoso, ficando as questões propriamente políticas em segundo plano – e isso se afinava com sua crescente moderação e inserção institucional. Assim, conseguiu atrair parte de um eleitorado moralista de classe média, que vê o mundo dividido em “limpos” e “sujos”, sem se dar conta de que a política é muito mais complicada. O PT caiu em sua própria armadilha: revelado um esquema grave de corrupção, mesmo que consiga depurar-se, talvez sua imagem esteja irremediavelmente comprometida.

Oswaldo Giacóia Júnior –Trata-se de uma pergunta cuja resposta exige profundos conhecimentos da história política republicana no Brasil, para poder apontar semelhanças e diferenças – conhecimentos esses de que não disponho. O que creio poder afirmar é que a extensão da crise atual, a natureza dos procedimentos fraudulentos nela implicados, o potencial de nocividade de certos problemas que com ela vieram à luz (como a perversa irracionalidade do sistema político brasileiro, por exemplo), a contaminação da esfera pública pelos interesses privados, o grau de comprometimento institucional que já se evidencia, todos esses fatores colocam em destaque a gravidade dessa crise.

Ricardo Antunes – Trata-se de uma crise que tem muitos elementos novos: devassou um partido que teve uma origem social de esquerda, atingiu um governo que na sua gênese pretendia-se distinto e diferenciado da política tradicional e permite também aprofundar uma diferenciação essencial, entre a corrupção para fins privados e aquela que em sua origem tem finalidades prioritariamente políticas. O PT e seu governo imaginaram que poderiam tornar mais longevo seu governo, corrompendo politicamente o Parlamento em seu lado mais nefasto e pantanoso, dados pelo PP, PTB, PL e assemelhados. Foi por eles fagocitado. Se a corrupção PC/Collor foi prioritariamente para fins privados, para enriquecimento de uma máfia privada, o esquema Delúbio/Valério/PT/governo Lula talvez seja o mais amplo e sistêmico caso de corrupção para fins políticos, estruturado para manter a qualquer preço, a qualquer custo e com base em valores espúrios, como se pode constatar na forma de pagamento a Duda Mendonça, para a eleição de Lula e, posteriormente com o Mensalão, também para comprar parlamentares e votos. Claro que dessa corrupção entre privado e públicos nasce uma simbiose, tornando-a, portanto, mais intensa. E tudo isso feito por um partido (e seu governo) que se pretendia de esquerda.

Ainda falta saber quem são os corruptores, de onde
veio essa soma quase incalculável de capital,quem se
beneficiou e a quem interessava corromper.
Ricardo Antunes, sociólogo

JU – Comparativamente, que grau de profundidade tem a crise atual?

Edgar de Decca – As características dessa crise com relação às do Império, nesse caso, são muito distintas. Segundo o meu ponto de vista, e é muito difícil você fazer uma avaliação a longo prazo dessa situação política atual, julgaria que o principal elemento da crise política que estamos vivendo é bastante localizada no campo das esquerdas. Acho que, nesse aspecto, ela se distingue de todas as outras. A esquerda que tornou hegemônico o projeto político cuja liderança é do Partidos dos Trabalhadores, é oriunda da luta contra a ditadura militar.

Está encastelada hoje, no PT, uma liderança política que é oriunda e nasceu da ditadura militar. Ela ainda é da época da ditadura. Com todas as suas virtudes históricas, teve um papel importante, traz consigo também todos os seus defeitos e vícios de uma geração da qual eu inclusive faço parte, que lutou contra a ditadura.

Essa liderança que está hoje no Partido dos Trabalhadores, que está sendo alvo de toda essa investigação e de toda essa suspeita, se acostumou a usar a democracia como um instrumento do seu projeto de poder. Quer dizer, instrumentalizou a democracia e as instituições democráticas para um projeto de poder. Infelizmente, com muito pesar, isso é o que está escancarado, é o que está se desnudando nesse panorama. De uma certa maneira, é um ciclo histórico que está se encerrando. Talvez a gente possa dizer que nós estamos dando adeus à ditadura militar, até nos seus aspectos de contraposição de esquerda. Com certeza, haverá novos caminhos e outras perspectivas. Acho que vai ser muito difícil, apesar de todo o esforço, refundar um partido cuja marca, no momento, está profundamente comprometida com uma descaracterização das instituições da democracia.

João Quartim de Moraes – Ela foi exagerada pela própria base governamental. Houve exagero, notadamente na comparação feita entre a situação de hoje e a de 1964. Naquela época, a situação era de ruptura mesmo. Jango foi derrubado porque queria nacionalizar as terras situadas numa certa faixa das rodovias federais para implementar a reforma agrária. Ele caiu de pé, por medidas avançadas, não caiu por corrupção. A direita ali, sim, teve uma vasta mobilização contra-revolucionária, com base de massa, com gente na rua. Nada comparada com o que vivenciamos agora. Lula vai se enfraquecer fundamentalmente por causa dos próprios erros.

Marcelo Ridenti – Essa crise é grave, pois atinge não apenas o PT mas o conjunto do sistema político. Revela os problemas de representatividade e de corrupção de nossa democracia. A vontade popular tende a ser distorcida por mecanismos como o marketing eleitoral, especialmente na televisão, financiados por enormes gastos de campanha – em grande parte não declarados e com origens escusas, o famoso “caixa 2”. Também revela a necessidade de uma reforma política que garanta a representatividade popular. Mas como fazer essa reforma, de tal modo que ela não vire um mero acordo para acomodar os interesses estabelecidos, especialmente no Congresso, como ao que tudo indica é o que vai acontecer?

Oswaldo Giacóia Júnior – Penso que a representação parlamentar é um dos pilares fundamentais da vida republicana. A avalanche de revelações perturbadoras vindas à luz no curso das investigações deixa atônita e indignada a opinião pública, sobretudo porque com elas se percebe a profundidade do enredamento de membros do congresso nacional, assim como de partidos políticos e demais instituições com procedimentos anti-éticos e inconfessáveis, que geram e fomentam distorções gravíssimas num processo democrático.

Ricardo Antunes – Ainda não chegamos ao fundo do poço. Há certamente mais elementos que ainda virão à tona, mostrando a farsa grotesca que foi esse governo, cuja sujeição servil ao projeto neoliberal tem seu corolário da aceitação degradante da pior prática corruptora. Ainda falta saber quem são os corruptores, de onde veio essa soma quase incalculável de capital, quem se beneficiou e a quem interessava corromper o Parlamento. Diferentemente da crise que levou ao suicídio de Getúlio Vargas, onde uma contradição real cortava a nação e o país, Lula poderá vivenciar algo que talvez tenha certa similitude com a renúncia de Jânio Quadros, eleito com ampla votação e cuja renúncia ficou calada no povo como expressão de um ato de fraqueza. Em Lula, o ato de fraqueza se expressa pela evidência de que ele jamais poderia estar em campanha sem saber de onde vinham os recursos. Qualquer militante que conhece o PT sabe que Lula sempre teve o controle de tudo dentro do partido e que jamais Delúbio e Dirceu fariam isso sem o conhecimento do Presidente, nem durante a campanha e muito menos durante o seu governo. Portanto, quando Jânio imaginou que renunciando voltaria nos braços do povo, esqueceu-se que o povo tem suas formas de percepção e apreensão dos fatos. E está ficando evidente – veja-se a nova pesquisa do DataFolha - que o prestígio de Lula está escorrendo pelos dedos da mão. Recentemente usei essa expressão: pizza não dá mais e estamos chegando muito perto da crise enfrentada pelo governo Collor.

Desfecho da crise é tão imprevisível
quanto incerto o destino da esquerda

JU – A sociedade brasileira tem dificuldade de assimilar a crise, sobretudo porque ela se instalou no seio de um governo dito de esquerda e que tinha a revolução dos costumes políticos como um de seus emblemas. Qual o impacto da quebra dessa crença – crença refletida nos resultados da eleição de 2002 – no imaginário da sociedade e em suas expectativas?

Edgard de Decca – É importante avaliarmos o que significa a crise provocada por uma máquina de partido político e, de outro lado, a liderança e a expectativa criada em torno de uma liderança que foi o Lula. Sua vitória é o renascimento de um populismo cujas bases se fundavam em sindicatos e organizações populares, muito diferentes provavelmente do populismo liderado por Vargas e por Jânio. É um populismo que ultrapassa a escala dos partidos. Ele é fundado em organizações populares que vão muito além do PT. Há uma dualidade na composição do poder daquilo que pode se chamar lulismo.

Está havendo, no momento, um embate entre essas duas tendências. Se você blindar o presidente, talvez se possa salvaguardar essa liderança popular, livrando-o daquilo que seria a corrupção da máquina do partido. É uma equação quase impossível. Na verdade, esses dois componentes, isto é, o populismo lulista e a ascensão da máquina do partido estão imbricados. São dois movimentos distintos: a máquina do partido crescendo ao lado da liderança popular de Lula. A máquina do partido vem para substituir o Estado. Hannah Arendt, em “A origem do totalitarismo’, estudou o movimento de máquinas partidárias que assaltam o Estado e o substituem na gestão do político. Essa é grande a novidade que nunca tinha ocorrido no Brasil e que um partido de esquerda conseguiu fazer – como é que uma máquina partidária se instala e se infiltra no aparelho do Estado. Isso é totalmente novo. Pode ter ocorrido, em escalas muito mais problemáticas, no fascismo italiano, no nazismo alemão, no comunismo soviético. No Brasil atual, isso acontece concomitante ao movimento de adesão popular a uma liderança de cunho populista.

Em outras experiências históricas, a vertente populista solidificada na máquina do partido deu no fascismo. A nossa grande vantagem é que essas duas tendências no Brasil estão dissociadas. Hoje, a liderança do Lula está quase que exclusivamente na capacidade que ele tem de chamar a atenção de suas bases eleitorais, alimentando o populismo. A máquina do partido está estraçalhada.

Estamos diante de uma
possibilidade inédita de
preservar, valorizar e
consolidar, em última
instância, as instituições.
Edgard de Decca, historiador

João Quartim de Moraes – A pergunta é muito boa, mas já encerra, nela mesma, uma teoria. Eu não concordo. É udenismo achar que honestidade no trato das finanças públicas é a principal qualidade do governante. Sobretudo quando se trata de virtude de fachada, de retórica de sepulcros caiados de branco. Acho que quem rouba o patrimônio público é ladrão e tem de ser condenado. Agora, transformar a honestidade em grande bandeira, em panacéia... Sempre escolhemos uma grande bandeira no lugar de outra, ou seja, no caso, as reformas sociais em profundidade. Até acho que havia isso no PT. Mas este partido sempre foi uma salada ideológica – às vezes, com uma linguagem de extrema esquerda, mas sempre inconsistente, com uma cara de anticomunismo muito forte. Um exemplo decisivo: quando viram que a União Soviética ia desmantelar eles acharam muito bom, encheram a boca para falar em democracia. Na verdade, comiam na mão da ideologia estadunidense.

No plano interno, aquele ideal do político ilibado é bem udenista, moralista. É um udenismo um pouco à esquerda, menos reacionário do que a UDN histórica quando ela foi fundada. Vejo sem surpresa que a popularidade de Lula não caiu muito perante as massas populares. A retórica da tartufice impressionava mais certas faixas do eleitorado de melhor renda. Mas a massa dos eleitores pode até ficar desanimada, mas pensa algo assim: “O FHC também meteu a mão, só que com mais habilidade...”. Mas não creio que prevaleça a idéia do desapontamento com o Lula, pelo menos enquanto ele se mantiver um pouco acima de tudo isso, pretendendo não se ter comprometido pessoalmente. Acho que no povo não se afeta muito com a retórica de malandros fantasiados de sacerdotisas do culto da honestidade no trato da coisa pública.

Marcelo Ridenti – Existe um senso comum de que a política é por natureza corrupta, logo, algo em que as pessoas honestas não devem se meter. A atual crise tende a reforçar essa ideologia que leva ao desinteresse pela política, como se não fosse possível transformar nada, nem sequer elegendo um presidente e congressistas considerados de esquerda. Isso é péssimo para a democracia, especialmente para as forças interessadas em mudanças na ordem social, econômica e política.

Oswaldo Giacóia Júnior – De um ponto de vista psicológico, esse talvez seja um dos componentes dessa crise que mais geram abatimento e frustração. É consideravelmente grande o percentual de pessoas que acreditavam que o novo governo traria consigo um elevado grau de esforço, comprometimento e boa vontade para buscar e implementar políticas públicas de justiça social, alternativas consistentes para as opções tradicionais do jogo político brasileiro, aumento das margens de autonomia para a atuação dos agentes públicos, de transparência nas decisões e negócios do Estado – daí o extraordinário capital de confiança generosamente depositado na transformação radical da moralidade política nacional, na firmeza em relação a padrões éticos de gestão de bens e recursos, enfim do interesse público. É inegável que se pode detectar sinais evidentes de uma quebra de confiança, mas não creio que isso implique em resignação ou capitulação em relação a essas expectativas. Talvez ocorra o contrário, isto é, um incremento de ânimo na busca intransigente dessas metas e um desejo ainda mais ardente de evitar desvios e distorções no caminho que elas indicam.

Ricardo Antunes – O primeiro impacto é que acabou a auréola do PT como partido diferente dos demais. O PT (e falo aqui do PT dominado pelo chamado Campo Majoritário) soçobrou na vala comum dos partidos de direita. Veja que o estopim dessa crise se deu com o descumprimento do acordo feito entre Dirceu, então ministro da Casa Civil e Roberto Jefferson. Quis negociar com essa direita e depois dar um “chega pra lá” nela. Deu no que deu. Claro que para o imaginário popular, eleger Lula, um ex-líder operário à Presidência da República, depois de tantas disputas, e vê-lo desmoronar desse modo, terá fortes conseqüências e em muitos a idéia do descrédito completo, algo como a comprovação empírica de tese de que “todos são iguais”. Para a esquerda, é preciso, então, recomeçar.

Em algum momento a esquerda
vai se recompor, pois é difícil
imaginar que a ordem social e
econômica hoje dominante
possa ser aceita sem contestação.
Marcelo Ridenti, sociólogo

 

Edgar de Decca João Quartim de Moraes

JU – Em que medida, na sua opinião, o ideário da esquerda brasileira foi atingido pela crise política em curso? Ou seja, a esquerda brasileira será capaz de se recompor? Que tipo de esquerda pode emergir da crise?

Edgar de Decca – Analisando do ponto de vista histórico, é o réquiem da esquerda que se formou durante a ditadura. Pode ser trágico, pode ser lamentável reconhecer isso, inclusive porque nós somos participantes dessa jornada, mas ela está enterrada. De um lado, acho que essa esquerda formada por dois componentes – um, ideológico, profundamente marcado por um marxismo do tipo leninista, que faz uma apologia muito forte da máquina do partido como instrumento do poder; e um corporativismo oriundo da Era Vargas, que é profundamente danoso para o pensamento de esquerda. Mas a esquerda brasileira mimetizou o corporativismo do varguismo. Não tenho nenhuma saudade dessa vertente.

Quando escrevi o livro “1930– O silêncio dos vencidos”, no momento de anistia política, estudei as alternativas da esquerda e fiz a crítica ao período varguista porque acreditava que uma das tarefas do pensamento de esquerda era a de abandonar todo o resquício corporativista que se formou desde a época do Estado Novo.

Não tenho o menor pudor em dizer que essa crise tem algo de muito positivo nisso. Os novos movimentos sociais, seja da parte do mundo do trabalho, com a sua respectiva precarização e com a crise do sindicalismo, terão um novo papel – brigar pela qualificação e pela preservação do trabalho. Teremos novos movimentos sociais oriundos das questões ambientais, preocupados com os padrões morais e com a ética. Esse novo campo de demandas com certeza criará uma nova perspectiva para a juventude e para as gerações que almejam um mundo mais justo. Talvez as nomenclaturas oriundas da Revolução Francesa –esquerda e direita – podem ser aos poucos sendo ultrapassadas.

João Quartim de Moraes – O mais grave é que, embora o próprio Lula tenha dito que não é mais de esquerda, a verdade é que o governo é apoiado pela grande maioria da esquerda. Lula pode estar querendo pular fora, mas trata-se de uma derrota para a esquerda. A derrota do PT é uma derrota da esquerda. Nunca fui petista, mas fazer o quê? Não se trata de um assunto pessoal.

Se eu visse as coisas de uma maneira esquerdista, eu até estaria contente. Pensaria: “Está aí a prova. Eu que sempre fui marxista, leninista. Está vendo, chutaram o comunismo, cuspiram no comunismo...”. Mas eu não acho que isso seja auspicioso, mesmo porque o comunismo é uma minoria. O comunismo tomou uma cacetada enorme em escala internacional. Existe um preconceito de 60 anos de intoxicação mental. O PC do B vai assumir a esquerda? Pode ser uma força importante, mas é pequena. É uma derrota para a esquerda. O estrago foi grande. Dimensionaremos isso logo, nas próximas eleições.

Marcelo Ridenti Oswaldo Giacóia Júnior

O presidencialismo tem um elemento que Marx chamava bonapartismo, que é o fato de ter um homem providencial que o povo elege para mandar, a quem confere o poder; é o homem escolhido pela nação para dirigi-la. Isso do ponto de vista das constituições democráticas dos séculos 18 e 19, não é democracia. Não é governo pela assembléia de representantes do povo. É um governo de um homem só. Esse problema do presidencialismo é uma faca de vários gumes. Significa também que muita performance do Lula, caso ele consiga ganhar a eleição, essa derrota de hoje ganha um fôlego de mais quatro anos para a esquerda reformular inclusive sua posição em relação ao Lula. Inclusive de apoio mais crítico. Sempre preguei que era preciso sair do apoio incondicional para o apoio crítico. Não estão conseguindo. Votaram aquela reforma reacionária da Previdência e outras porcarias para não romper.

Caso Lula seja reeleito, essa derrota do PT passa para o segundo plano, até porque o eleitor está identificando cada vez menos o Lula ao PT. Aliás é por isso que a direita e o tucanato estão insistindo nesse ponto. FHC, que de bobo não tem nada, ele dá aula de esperteza para nós todos juntos, quer é ou fazer um acordão para o Lula não concorrer – já que ele ainda é um candidato forte em termos de pesquisa – ou uma composição com ele. Agora, se o Lula ganhar, a esquerda tem mais quatro anos para fazer menos bobagem.

Marcelo Ridenti – Em algum momento a esquerda vai se recompor, pois é difícil imaginar que a ordem social e econômica hoje dominante possa ser aceita sem contestação, especialmente numa sociedade tão desigual como a brasileira. Resta saber como isso se fará. Alguns colegas têm previsto até dez, vinte anos para que haja uma recomposição das esquerdas com viabilidade política significativa. Historicamente, as esquerdas no Brasil tiveram um ciclo anarquista no início do século XX. Depois houve um ciclo das vanguardas, a partir dos anos 20, em que os comunistas foram hegemônicos. Ele se encerrou com a derrota da esquerda armada durante a ditadura. No final dos anos 1970, começou a gestar-se um ciclo que se poderia chamar “das bases”, animado pelos então chamados novos movimentos sociais, pelo novo sindicalismo, pelas comunidades eclesiais de base informadas pela Teologia da Libertação, enfim, por uma mobilização social de trabalhadores urbanos e rurais, incluindo setores significativos das classes médias, no período da transição democrática. O PT, criado em 1980, foi o partido hegemônico na esquerda desde então. Estaríamos assistindo ao fim desse ciclo? O que viria em seu lugar? São questões em aberto.

Oswaldo Giacóia Júnior – Seria apressado, injusto e equivocado afirmar que o “ideário da esquerda brasileira” tenha sido atingido pela crise política que estamos atravessando, na medida em que justamente os programas políticos de esquerda mais autênticos sempre se opuseram aos acontecimentos e comportamentos lamentáveis que vemos aflorar nessa crise. É necessário considerar os fatos com maturidade, lucidez, realismo e capacidade de discernimento, para deles poder extrair os elementos que reforcem a responsabilidade e o compromisso com a implementação de valores e metas que impliquem na erradicação de privilégios injustificáveis, de injustiças odiosas, de indicadores revoltantes de exclusão social, de descaso e cinismo em relação às desigualdades e às prioridades na definição de metas para as políticas de Estado.

Ricardo Antunes

Ricardo Antunes – Para a esquerda, trata-se, uma vez mais, de recuperar os elementos em seus experimentos mais generosos. O PT, entre tantos equívocos que conheceu ao longo de sua história – que, é preciso dizer, teve também muitos méritos, dos quais o principal for ter tido uma forte origem operária e popular –, cometeu desde logo um “pecado capital”, marcado pelo seu completo desdém pela teoria, pela reflexão. Só a título de exemplo: Florestan Fernandes, Caio Prado Jr., entre os nossos grandes intelectuais de esquerda, para não falar dos autores clássicos da teoria emancipatória, como Marx, sempre foram desconsiderados ou, no máximo, assimilados como verniz para uma política desprovida de teoria. Salvo os grupamentos mais à esquerda do PT, a desconsideração pela reflexão sempre foi um traço do PT dominante, a começar por Lula e sua completa repulsa pela teoria. Um novo projeto de esquerda deverá ressoldar seus laços com as lutas sociais dos trabalhadores das cidades e dos campos, única forma de recuperar força, vitalidade e impulsão. E recusar o caminho de linha de menor resistência, dado pelo eleitoralismo e institucionalismo que deixaram o PT de joelhos, convertendo-o em “partido da ordem”, cada vez mais eleitoral e, finalmente, puramente eleitoreiro.

JU – O Partido dos Trabalhadores foi, durantes duas décadas, um importante canal de interlocução da cena política junto a segmentos importantes da sociedade, entre os quais intelectuais, formadores de opinião e a classe média urbana. O que restou dele? O partido já é uma página virada ou tem condições de reerguer-se?

Edgar de Decca – O que se consegue observar é que há um conflito de gerações dentro do PT. Isso é evidente. Há uma geração do PT formada nos ideais democráticos, na vigência dos princípios pós Diretas-já. Percebe-se que essa geração entende que os ideais partidários precisam ser defendidos na escala das instituições e no espaço da democracia – e não tornar a democracia um instrumento para a consolidação de uma máquina do poder. É tão visível essa discrepância que essa nova geração é herdeira de uma responsabilidade imensa: refundar e recriar a credibilidade de uma sigla que, no momento, está profundamente estigmatizada.

Se os quadros remanescentes do PT quiserem levantar a bandeira da esquerda – se ainda for possível falar em esquerda no sentido clássico – eles, com certeza, não mais serão hegemônicos. Essa crise no plano das esquerdas é visível já há algum tempo, mas agrava-se agora com o esfacelamento do PT. De qualquer maneira, a esquerda está completamente fragmentada nos dias atuais. E o que é pior, desacreditada. O quadro político-partidário vai sofrer uma transformação muito grande nos próximos anos, com essa crise produzida pelo PT.

João Quartim de Moraes – O PT foi a principal força da esquerda de 1980 até agora. É um quarto de século, o que não é pouca porcaria, mesmo em termos de história. Como estou de fora, nunca fui petista, vejo de longe. Admiro alguns nomes do partido, mas é preciso analisar que forças terão daqui para frente. É preciso saber com clareza o que foi essa reformulação do diretório nacional. A coisa está ainda indefinida. Não sabemos se vão cassar o José Dirceu etc. Acho que ainda está um pouco cedo para dimensionar o tamanho da débâcle do PT.

Por outro lado, acho que o partido sofreu uma derrota mas não está destruído. O PT cresceu muito nos últimos anos. Não é um exército desbaratado em plena derrocada. Embora tenha perdido muito e esteja perplexo, ainda tem muita força e ocupa posições no aparelho governamental. A cacetada federal abre caminho para a reformulação e para o reequilíbrio de forças no interior da esquerda. Acho que o movimento marxista e até mesmo o PT mais conseqüente, com um programa histórico de formação social, tem uma chance de se abrir.

Marcelo Ridenti – É difícil prever o que será do PT. Aposto que não vai acabar como partido, até pela sua força acumulada. Mas em quê ele vai se transformar ou já vem se transformando? Alguns acham que ele pode depurar-se e voltar às origens. Seria uma ilusão: já se diluíram as coordenadas históricas que lhe deram vida no final da ditadura militar; nem o PT, nem o PSOL nem qualquer outro partido tem como reconstituir o que já não existe. Outra possibilidade com que alguns sonham é que o PT possa cumprir a promessa de ser uma superação das tradições de esquerda no século XX, sendo uma síntese superior ao que significaram o bolchevismo e a social-democracia. Mas em algum momento teria havido alguma base real para esse sonho? A experiência do PT lembra muito a da social-democracia européia, só que ele realizou em poucos anos uma virada que na Europa demorou um século: do socialismo democrático à gestão “responsável” do capitalismo, que tende a aproximá-lo de tornar-se um partido social-liberal, ou seja, que adota medidas neoliberais na economia, com algumas políticas sociais compensatórias. Mais grave, como agora se revela, um partido tão comprometido com interesses escusos como os outros que sempre criticara.

Outra alternativa, que um colega levantou: o PT pode virar algo que lembre o Justicialismo na Argentina, embasado em grupos sindicais, populares e políticos ligados a negócios de diversas ordens, e por vezes inimigos entre si, que lá reivindicam em comum o legado de Peron, e aqui poderão contar com o messianismo de Lula.

Seja qual for o destino do PT, parece que ele está estruturalmente comprometido com um processo de burocratização e institucionalização que penetrou em suas entranhas, tende a ser cada vez mais uma pálida sombra da utopia socialista democrática que o constituiu. Mas o PT ainda conta com militantes sinceros que apostam na velha utopia e devem fazer parte de uma refundação das esquerdas para o século XXI, que provavelmente vai se desenhar também no cenário internacional, ainda que não esteja claro o que virá a ser.

Oswaldo Giacóia Júnior – Considerado a partir do ponto de vista de sua história de formação e do tipo de comportamento que tem pautado sua atuação, o Partido dos Trabalhadores foi e continua sendo uma das forças atuantes mais importantes e significativas da vida política brasileira nessas últimas décadas. Se em todo julgamento justo é necessário evitar a prevenção e a precipitação, isso é ainda mais verdadeiro no caso de um julgamento nessas condições. Penso que o PT deve passar por um período de séria, intensa e produtiva auto-reflexão e autocrítica, de que devem resultar importantes transformações. É muito cedo para afirmar que se encontra liquidado, ou que não tenha condição de se refazer.

Ricardo Antunes – Penso que o PT acabou enquanto partido de esquerda. Converteu-se numa espécie de PMDB do novo século. Acho muito difícil essa tentativa atual de repô-lo, pois os vícios de origem se mantêm. E é sempre bom lembrar que a antiga Articulação, hoje denominada Campo Majoritário, legitimou quase tudo isso que presenciamos hoje: o Caixa 2, os recursos de origem duvidosa, a conversão do PT e de suas campanhas em pura manipulação propagandística, deu garantias para o lema Lulinha paz e Amor e jamais questionou – ao contrario, legitimou – a contratação de Duda Mendonça, as alianças com setores da direita, alguns deles capazes de envergonhar a própria direita. Tudo isso foi respaldado pelo Campo Majoritário. O desafio, agora, é ver quais serão os caminhos dos vários grupamentos de esquerda, ainda no PT, e que estão em estado de estupefação, torpor e repulsa.

Se eu quiser ter uma visão mais otimista,
vislumbrar o melhor
cenário, eu diria que o Lula seria
reeleito, mediocremente, como
um homem acima dos partidos.
João Quartim de Moraes, filósofo

JU – Em sua opinião, o arcabouço institucional que dá suporte à democracia mostra-se sólido o suficiente para dar conta da crise?

Edgar de Decca – Do ponto de vista histórico, o que mais nos deixa apreensivos nas tradições políticas do Brasil é que a política brasileira sempre foi um retrato muito fiel daquilo que o Sergio Buarque de Holanda dizia: os brasileiros são uns desterrados dentro de sua própria terra. Os brasileiros vêem o próprio Brasil como um país de passagem. Você tem que exaurir tudo, porque tudo tem que ser aproveitado de uma maneira a mais imediata possível. Há uma certa dificuldade de perenidade do ponto de vista das instituições brasileiras. Esse é o grande risco que vive permanentemente o Brasil nas suas sucessivas crises políticas.

A crise política do presente revela esse desterro brasileiro – uma máquina de poder que chega ao Estado e quer aproveitar ao máximo e com todas as suas potencialidades exaurir o território da política e perpetuar-se o quanto for possível. Essa falta de distanciamento no que concerne a esfera pública – essa cupidez é resultado da esfera privada – gera o corporativismo e a instalação de interesses de uma máquina privada de poder. A esfera pública e suas instituições não têm grande valor. Prevalece a ambição de poder da esfera do privado. Isso dá a dimensão do nosso desterro.

Desde a chegada dos portugueses, o Brasil é um lugar para se tomar conta, aproveitar o máximo e ir embora. Nessa crise há também uma certa sensação dessa idéia do desterro. Ninguém é responsabilizado pela preservação das instituições. Eles chegam, arrasam – como foram arrasados territórios imensos na exploração colonial – e abandonam a terra. Esse assalto ao Estado, que não é privilégio da esquerda, existe no Brasil desde a formação das instituições coloniais.

João Quartim de Moraes – Se eu responder sem pensar muito, eu diria que se esse arcabouço é o mesmo que permite, nos Estados Unidos, reeleger um neonazista como o Bush, disposto a dobrar o mundo na base de míssil, eu realmente estou pouco ligando para ele. Democracia, para mim, é outra coisa. Eu não defino a democracia arbitrariamente, mas sim no sentido até etimológico. Ela é o predomínio do interesse coletivo sobre o interesse de minorias. Esse arcabouço que está aí não garante isso. Não sei se perderíamos muita coisa sem esse arcabouço. É claro que, se perder isso e vier o DOI-CODI, eu prefiro isso, mas sem entusiasmo. Foi um avanço em relação à ditadura, mas que esse sistema eleitoral é viciado não há a menor dúvida. Basta olhar para o Duda Mendonça e caterva.

Se eu quiser ter uma visão mais otimista, vislumbrar o melhor cenário, eu diria que o Lula seria reeleito, mediocremente, como um homem acima dos partidos, como um homem que não está manchado pelo Dirceu, Delúbio etc. E o Dirceu assumirá a culpa. Não sou débil mental em acreditar que Lula não sabia o que está acontecendo. É como acreditar que criança nasce em repolho. Lula não é um gênio intelectual, mas de bobo não tem nada. Não creio também que José Dirceu tenha se locupletado. Creio simplesmente que ele queria quebrar a direita usando métodos de direita.

Com a reeleição de Lula, a esquerda teria um espaço de tempo para ser mais exigente e crítica, sem ser estafeta do governo. Caso Lula seja reeleito, será por todo o mundo que está contra o tucanato, inclusive a direita. A esquerda podia ser uma força de pressão maior, sem se comprometer em votar aquilo que o Lula quisesse, exercendo uma pressão no sentido de fazer alguma reforma social. Num cenário pior, a derrota de Lula acabaria de desmoralizar a esquerda. De qualquer forma, o cenário é medíocre, de baixa esperança.

Marcelo Ridenti – Se o arcabouço institucional dá conta da crise? Sim, no sentido de que parece não haver ameaça de golpe à vista. Mas não é sólido no sentido apontado anteriormente, pois é certo que uma crise como essa tende a desacreditar a própria política, semeando o campo para alternativas antidemocráticas.

Oswaldo Giacóia Júnior – Tenho profunda confiança em que as instituições democráticas brasileiras demonstrem dispor de um potencial de responsabilidade, probidade, solidez e maturidade suficientes para conduzir a bom termo processos que levem à resolução da crise, de modo a restaurar a confiança e o ânimo político do cidadão brasileiro.

Ricardo Antunes – Penso que sim, porque, chegando cada vez mais próximo o impeachment de Lula, ele deverá ser resultado de ações rigorosamente constitucionais, e a sociedade tem demostrado maturidade crescente. E Lula, embora atribua a crise, de modo manupulatório e messiânico, às “elites”, destroçou a força social organizada que o elegeu, desconstruiu, ao longo de seus mais de dois anos de mandato, grande parte da organização dos movimentos sociais que anteriormente encontravam no PT inspiração ou lhe davam sustentação. O caso do neopeleguismo da CUT é exemplar. Lula hoje se mantém no poder porque as “elites” – especialmente o grande capital financeiro – assim quer. Nunca lucrou tanto, nem com a ditadura militar, nem com Collor e nem com FHC. Aliás, exclusivamente nesse sentido, Lula tem um curioso traço de bonapartismo: nunca lucraram tanto os estratos burgueses, cujo governo encontra-se (ao menos virtualmente) nas mãos de um ex-líder operário. Há aqui, de novo, algo de farsa, além da tragédia.

JU – Que lições podem ser tiradas da crise?

Edgar de Decca – A maior lição é que estamos diante de uma possibilidade inédita de preservar, valorizar e consolidar, em última instância, as instituições. Isso está ocorrendo desde o final da ditadura militar. Um exemplo são as universidades brasileiras. Hoje, as universidades paulistas conquistaram a autonomia financeira e a capacidade de separar as suas crises e seus embates políticos. Sucedem-se as reitorias, mas a institucionalidade, a preservação da instituição, a probidade administrativa e o bom uso dos recursos públicos estão assegurados. A Unicamp é um microcosmo exemplar dessa maturidade que a gente espera que se atinja em outros níveis e em todas as outras instituições. Espero que o Congresso também tenha essa maturidade de não ficar fazendo uma disputa exclusivamente partidária. É preciso enxergar um passo além.

João Quartim de Moraes – Que a eleição não é panacéia. Numa ordem capitalista, o sistema eleitoral é altamente permeável ao poder do dinheiro. O PT subestimou largamente isso. Ou subestimou ou se corrompeu...

Marcelo Ridenti – Vou me restringir a algumas questões para as quais as esquerdas devem estar atentas, se quiserem refundar-se. O compromisso com a ética na política é fundamental, mas ele não deve ser a principal preocupação de partidos de esquerda. Além de moralizar, é preciso acima de tudo questionar e lutar para transformar a ordem social, econômica e política. De um ponto de vista crítico, não cabe a ilusão de que a ordem estabelecida seria adequada, uma vez moralizada – essa é tradicionalmente uma bandeira da direita, de políticos como Eduardo Gomes, Carlos Lacerda e Jânio Quadros, da velha União Democrática Nacional (UDN).

Outra ponderação: deve ser abandonada a ideologia do marco zero que tem marcado as passagens dos ciclos históricos das esquerdas a que me referi. Desde os anos 1920, os comunistas supunham ser a novidade, livres dos erros anarco-sindicalistas. Por sua vez, nos anos 1970/80, ressurgiu a ideologia do marco zero, muito forte no PT, que fazia de conta que nada tinha a ver com a tradição de esquerda imediatamente passada, comunista ou trabalhista. Uma refundação das esquerdas, que talvez venha a abrir um novo ciclo de sua história, passa pela reflexão sobre os alcances e limites de suas políticas ao longo do último século. O que implica também aprender a desconfiar das próprias certezas.

Oswaldo Giacóia Júnior – Fundamentalmente que o único caminho lúcido para resolução de problemas, por mais profundos e graves que sejam, é o exercício vigilante da autonomia, enquanto capacidade para fazer livre uso do próprio entendimento, e da cidadania responsável.

Prefiro dizer que, com base no
conhecimento dos dados de que
dispomos, enquanto cidadãos
comuns, o impeachment não se
afigura como uma medida sensata.
Oswaldo Giacóia Júnior, filósofo

JU – Em sua opinião, o impeachment é uma possibilidade no horizonte da crise?

Edgar de Decca – Vou fazer uma outra comparação do final da ditadura militar – até o presente – com a Revolução Francesa. O fim da ditadura militar poderíamos caracterizar como a Queda da Bastilha, em 1789. O período que se sucedeu à Revolução Francesa é um período de monarquia constitucional – que se assemelha ao período que deu origem às eleições indiretas e à consolidação das instituições por intermédio de figuras que estiveram ligadas ao antigo regime. As liberdades democráticas são conquistadas, e tem-se a perspectiva dos primeiros governos eleitos pelo povo.

O populismo de Lula é o regime populista de Robespierre. É o momento em que predominam as tendências populares e as tendências políticas que lutaram pelo fim da ditadura. Predomina a hegemonia dessas forças jacobinas e tem-se o regime de Robespierre – que na Revolução Francesa foi conhecido como o regime do terror. É o regime em que a máquina jacobina substitui o Estado, e o populismo se transforma numa arma poderosa de mobilização política.

É interessante que, desde a semana passada, a Ordem dos Advogados do Brasil e o próprio presidente do PT, falam na convocação do Conselho da República – que está prevista na Constituinte. De uma certa, foi a saída que se encontrou, na Revolução Francesa, com a crise do jacobinismo e do populismo de Robespierre. Um Conselho da República que, uma vez convocado, é o reconhecimento na esfera política de que o presidente, sozinho, é incapaz de preservar as instituições democráticas. A convocação do Conselho da República supõe que, no nosso sistema, os presidentes da Câmara e do Senado têm de fazer a convocação desse conselho para que as instituições se preservem.

Eu diria que se isso vier a ocorrer, nas próximas semanas, é um a maneira de evitar o impeachment. É uma maneira de preservar a governabilidade. Isso se assemelha à Revolução Francesa. É uma saída histórica bastante plausível. Trata-se de uma alternativa de governabilidade. Não sei se é a melhor, mas pelo menos, está prevista na Constituição de 1988.

Por outro lado, há um problema sério nessa crise. A governabilidade não está mais com o governo, o que é um dado fundamental. A governabilidade, nesse momento, está nas mãos da oposição. Ela vai ditar o cronograma da governabilidade. A crise é muito grande porque, quando a governabilidade não está com o governo, surge o impasse. O impeachment não depende mais daquilo que o governo pode ou não sinalizar. A decisão está nas mãos das oposições.

João Quartim de Moraes – Acho que não é fatal, mas a direita está bem assanhada. A esquerda, por maior que seja a miséria política do governo Lula, tem de se bater contra o impeachment.

Marcelo Ridenti - É uma possibilidade, pois não se pode ter certeza até onde uma crise como essa pode levar. Pouca gente nos meios políticos tem dúvida de que o presidente, além de ser o principal beneficiário político do esquema de corrupção, tinha conhecimento dele no essencial. Contudo, parece improvável que se abra um processo de impeachment, pois ele traria riscos ao conjunto das classes dirigentes, poderia gerar transtornos na estabilidade dos negócios empresariais e, ademais, incentivar uma eventual mobilização popular para defender o mandato de Lula, cuja liderança messiânica é temida. Manter o atual governo acuado e desacreditá-lo cada vez mais, para ser batido nas próximas eleições, parece ser o plano da maior parte da oposição. Ademais, ela concorda no essencial com a política econômica – que dá continuidade à do governo FHC – de modo que não haveria urgência em derrubar o governo.

O importante para os defensores do status quo não é derrubar Lula, mas desmoralizar não propriamente o PT – essa máquina burocrática emperrada e negocista em que parece ter-se convertido – mas sua imagem como partido crítico da ordem e com base popular sólida. Tentam assim riscar do mapa político quaisquer alternativas de esquerda, estigmatizadas como incompetentes, irresponsáveis e corruptas. Convenhamos que a direção do PT e uma parte da militância deram um prato cheio para a direita regalar-se, jogando o conjunto das esquerdas num atoleiro.

Oswaldo Giacóia Júnior – Falar sobre possibilidade, num contexto em ebulição alucinada em que os acontecimentos se produzem, parece-me demasiado abstrato. Prefiro dizer que, com base no conhecimento dos dados de que dispomos, enquanto cidadãos comuns, o impeachment não se afigura como uma medida sensata, muito menos como uma solução que pusesse fim à crise.


 

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