A
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Original desta
Palestra, feita pelo SESC de São Paulo,
poderá ser visitada em http://www.uol.com.br/sesc/spu/spupb406.htm
Um
sentido para a vida
Palestra
realizada em 20 de novembro de 1997
na Federação do Comércio do Estado
de São Paulo, onde Frei Betto, um
dos maiores teólogos e intelectuais
brasileiros, fala do papel da ciência,
da educação e da religiosidade no
mundo moderno
Minha
intenção é falar sobre o momento que
estamos vivendo, momento confuso em
termos de perspectiva do futuro. A
primeira evocação que faço é da pintura
de Michelangelo na Capela Sistina,
"A criação de Adão", em que a figura
de Deus, recoberto de mantos e com
a barba longa, estende o dedo para
Adão. Ao mesmo tempo em que Adão,
como símbolo da humanidade, é atraído
em direção à Terra, ele estende o
dedo na direção do Criador, espécie
de premonição nostálgica de que é
preciso não perder o contato com a
fonte, com a raiz, que é Deus. Michelangelo
foi genial, porque é muito difícil
compreender o momento em que se vive.
É fácil analisar os momentos depois
que eles passaram. O artista, com
sua intuição, com seu talento, tem
o dom de captar o momento, que depois
a epistemologia e a filosofia tentam
explicar.
O
que acontecia naquele momento da "descoberta"
da América, da "descoberta" do Brasil?
A passagem. Diria que não estamos
vivendo uma época de mudanças. Estamos
vivendo, hoje, uma mudança de época.
A última mudança de época foi justamente
na "descoberta" da América, quando
o Ocidente passou do período medieval
para o moderno. A pintura de Michelangelo
expressa, com genialidade, essa chegada
de um tempo em que o conhecimento,
a epistemologia, se desloca de uma
perspectiva teocêntrica para uma perspectiva
antropocêntrica. A rainha das ciências,
durante mil anos, no período medieval,
foi a teologia. A rainha das ciências,
da modernidade é a física. O período
medieval se baseava na fé; o moderno,
na razão. O período medieval se baseava
na contemplação das verdades reveladas;
o moderno, na busca da compreensão
da mecânica deste mundo e no pragmatismo,
na transformação deste mundo.
Quando
os camponeses medievais preparavam
o campo, aspergiam água benta e ainda
pagavam aos padres pela água comprada.
Até que apareceu um sujeito, que não
era cristão, com um pozinho preto,
dizendo: "Ponham isso na terra, e
irão produzir mais do que com a água
benta dos padres". De fato, o adubo
resultou numa produtividade muito
maior do que a água benta. Isso criou
uma crise de fé no fim da Idade Média.
Por quê? Porque a fé medieval, como
muitas vezes a nossa fé hoje, é uma
fé sociológica, que tem como anteparo
nossa compreensão do mundo. Uma vez
que essa compreensão é mudada, a fé
desaba. Aliás, muitas vezes passamos
por crises espirituais que, na verdade,
não deveriam ser entendidas assim,
mas como crises de cosmovisões ou
de mundividências que sustentam nossa
maneira de compreender a experiência
da fé.
Descartes
e Newton
A
modernidade aparece, primeiro, com
o grande movimento da globalização
que foram as navegações ibéricas.
Falamos hoje em globalização como
se fosse novidade. Mas, na Escola
de Sagres, já se falava em globalização,
com outras palavras. E tanto globalizaram
que conseguiram abarcar outras regiões
do planeta, embora Colombo tenha morrido
sem saber que havia chegado à América.
Morreu convencido de que tinha alcançado
Cipango, nome que se dava ao Japão.
As descobertas marítimas, a criação
das universidades, principalmente
da Sorbonne, que é do século 12, e
da Universidade de Bolonha, e as corporações
marítimas, que são as matrizes dos
sindicatos, foram três fatores que,
de certa forma, prepararam o advento
da modernidade. Todos nós somos filhos
da modernidade. Nossa estrutura de
pensamento é moderna, mas nem sempre
foi assim, e nem em toda parte do
mundo é assim.
Qual
é a característica da modernidade?
São duas pernas: a filosofia de René
Descartes e a física de Isaac Newton.
Descartes, com o "Penso, logo existo",
mostrou que a razão é capaz de decifrar
os enigmas do conhecimento. Já contemporaneamente
a ele, ou um pouco antes, um acontecimento
marcou decisivamente a introdução
da visão moderna: a astronomia de
Nicolau Copérnico, depois complementada
por Galileu Galilei. Copérnico fez
algo de revolucionário, a ponto de
hoje se falar de revolução copernicana,
porque até então as pessoas olhavam
o mundo com os pés na Terra. Copérnico
fez o inverso: como será a Terra se
eu me imaginar com os pés no Sol?
A partir dessa mudança, ele teve uma
compreensão completamente diferente
do universo, mas só ousou partilhá-la
em seu leito de morte, com medo da
Inquisição. Depois veio Galileu e
acabou com a idéia de que a ciência
é baseada no senso comum. Detalhe:
o que Galileu constatou cientificamente
no século 17, Eratóstenes já havia
comprovado na Grécia, três séculos
antes de Cristo. Eratóstenes, astrônomo
grego, afirmava que a Terra é redonda
e gira. Ele teve o cuidado de colocar
estacas entre duas cidades e medir
a incidência do Sol sobre essas estacas,
constatando que a sombra que o Sol
projetava comprovava que a Terra era
redonda e gira. Mas Eratóstenes não
tinha lobby suficiente para fazer
prevalecer sua opinião. O mais fantástico
é que ousou medir a cintura da Terra,
e chegou à conclusão de que ela tinha
39 mil quilômetros. No século 20,
a ciência constatou que são 40.008
quilômetros.
A
idéia de que vivemos num planeta,
que não é o centro do universo, foi
extremamente desconfortável para a
Igreja, primeiro porque, na Bíblia,
consta que Josué parou o Sol. Se a
palavra de Deus afirma que Josué parou
o Sol, como um cientista ousa afirmar
que não é o Sol que gira, mas é a
Terra que gira em torno do seu próprio
eixo e em torno do Sol? E depois,
diziam a Galileu, o Sol nasce no leste,
passa sobre nossas cabeças, desce
no oeste, durante a noite caminha
por baixo da Terra e, de repente,
renasce novamente no leste. É ele
que gira. A grande revolução que introduz
a modernidade foi provar que a ciência
não é o que parece, mas o que se comprova
pela experiência e pela pesquisa.
Descartes
levou isso ao plano filosófico. Ele
tanto influenciou a modernidade que
ainda hoje nossa ciência e nossa chave
de conhecimento são profundamente
cartesianas. O exemplo mais óbvio
é a medicina. Você vai ao médico,
tem um problema cardíaco e ele receita
um remédio muito bom para o coração.
O resultado é o aparecimento de um
pequeno problema colateral no intestino,
mas para o coração o medicamento é
ótimo. Se o problema é intestino,
você toma um outro remédio, que vai
provocar uma pequena insônia, mas
não se preocupe. Ou vai ao médico
do espírito, o terapeuta, o psicanalista,
e alguns nem sequer lhe estendem a
mão porque não pode haver contato
físico. Mas o médico do corpo, que
manda fazer uma série de exames, nem
sempre tem o cuidado de perguntar
sobre sua história familiar, seus
hábitos, como é o seu cotidiano, o
que você come. Ou seja, a cultura
moderna é tão cartesiana, tão fragmentada,
sem percepção do todo, que não temos,
como na China e no Tibete de antigamente,
o médico da pessoa, nós temos o médico
do detalhe. Na China antiga você pagava
o médico enquanto tinha saúde. Ficando
doente, ele tinha que tratá-lo de
graça, porque a responsabilidade do
médico é assegurar sua saúde. Nós
pagamos o médico quando ficamos doentes.
Então ele não se sente propriamente
responsável pela preservação de minha
saúde.
A
segunda perna da modernidade é a física
de Newton, que imaginou o universo
como um grande relógio, sendo Deus
o relojoeiro. Como os nossos relógios,
o universo possui uma mecânica interna.
No meu relógio os ponteiros coincidem
com o movimento do tempo pela razão
dessa mecânica interna. Não preciso
dar corda a cada minuto no meu relógio,
nem preciso mover com o dedo os ponteiros
para que haja essa coincidência. Então
Newton concluiu que o universo também
possui leis endógenas: quanto mais
conseguimos decompor as coisas em
seus mecanismos internos, melhor vamos
conhecer essas coisas. Resultado:
toda a ciência da modernidade é uma
ciência da decantação, da decomposição,
da fragmentação. Ninguém escapa disso.
A física se tornou a rainha das ciências
porque conseguiu provar que os fenômenos
não acontecem por acaso, mas possuem
leis. Podemos não entender essas leis.
Os índios pueblos, no México, acreditavam,
antes da chegada de Colombo, que o
Sol nascia graças aos ritos que eles
promoviam todas as madrugadas. Acredito
que os índios pueblos nunca tenham
se arriscado a dormir até mais tarde,
com medo de o universo ficar escuro.
Newton acharia graça nessa história,
porque ele dizia: "Independentemente
da minha vontade, o Sol vai nascer
todos os dias, pelo fenômeno da rotação
da Terra". No fim do século 17, um
astrônomo inglês chamado Edmund Halley
viu um cometa cruzar os céus de Londres
e passou a noite debruçado sobre sua
escrivaninha fazendo cálculos. No
dia seguinte, reuniu a comunidade
científica e previu: "Dentro de 77
anos, aquele cometa, que ontem à noite
atravessou os céus de Londres, voltará
a passar". Muitos acharam que Halley
tinha ficado louco: como alguém, sem
nenhum instrumento capaz de captar
o movimento dos astros, fechado em
sua casa, pode afirmar, com tamanha
segurança, que aquele astro brilhante
vai voltar exatamente dentro de 77
anos? Mas a comunidade científica
o levou a sério e, efetivamente, em
1759, 77 anos depois (Halley já tinha
morrido), o cometa que leva hoje seu
nome atravessou de novo os céus de
Londres. Foi a glória da razão. Ou
seja, se a razão é capaz de prever
com tamanha exatidão o movimento dos
astros, é capaz de reequacionar todos
os problemas humanos. Aí vem o Iluminismo
para dizer: o que não é racional não
é real. A religião, então, passou
a escanteio total, como pura superstição.
A
natureza somos nós
A
modernidade se construiu com a supervalorização
da razão, com a capacidade de transformar
o todo nas suas partes. Mas, muitas
vezes, vendo as árvores sem perceber
a floresta. E, no fim de cinco séculos
de modernidade, qual é o saldo que
temos? Lamentavelmente, não é dos
mais positivos. É por isso que se
fala em crise da modernidade. Primeiro,
graças ao avanço da ciência e da tecnologia,
temos hoje capacidade bélica para
destruir o planeta pelo menos 30 vezes
e não chegamos à capacidade humana
de salvá-lo uma vez. Lamentavelmente,
temos hoje 5,8 bilhões de pessoas
no planeta, das quais cerca de 2 bilhões
vivem abaixo da linha da pobreza.
Esse é um primeiro fenômeno.
Segundo
a FAO (Food and Agricultural Organization),
temos produção de alimentos suficiente
para 10 bilhões de pessoas e, conforme
a própria FAO, o Brasil é um país
privilegiado porque é o único que
tem potencial para colher três safras
por ano. Com dimensões continentais,
não é afetado por nenhuma catástrofe
natural. Não tem vulcão, não tem deserto,
não tem terremoto, não tem furacão,
não tem geleiras, não tem zonas inabitáveis,
como a China, que é apenas 1 milhão
de quilômetros quadrados maior do
que o Brasil, mas é habitável só em
16% do território.
Outro
fenômeno: não superamos os conflitos
regionais internacionais. Ainda somos
uma humanidade guerreira. E há também
o fenômeno da destruição do meio ambiente.
A razão instrumental, característica
da modernidade, fez com que, ao usarmos
a natureza, nós a destruíssemos. Só
que a natureza se vinga. Não é que
a natureza se vinga porque está raivosa,
mas porque não há, ao contrário do
que supunha a modernidade, diferença
entre nós e a natureza. Nós somos
seres da e na natureza, fazemos a
natureza, fazemos a nós e ao nosso
próprio corpo. E agora começamos a
sentir os reflexos disso.
Mais:
a modernidade está em crise porque
as quatro grandes instituições, nas
quais ela se apoiou, estão em crise:
família, Igreja, escola e Estado.
Sabemos que os modelos antigos não
estão vigorando mais. Alguns, numa
atitude saudosista, querem ainda manter
ou trazer à atualidade aquilo que
foi bom no passado. Não é fácil, porque
há novos paradigmas sendo forjados
nisso que hoje os filósofos já chamam
de pós-modernidade.
A
crise da família é a crise das relações
de gênero – ou seja, uma vez
que o patriarcalismo começa a fracassar,
a emancipação feminina se afirma e
novos papéis sexuais, como o dos homossexuais,
se desclandestinizam. Isso nos obriga
a encarar a questão da família e das
relações de gênero por uma outra ótica.
Segundo, a Igreja. As igrejas históricas
contavam com o anteparo do consenso
social. Isso não acontece mais. Vivemos
numa sociedade pluralista, uma sociedade
onde as crenças são tão variadas quanto
possível e não têm mais força para
se impor como uma espécie de teologia
com anteparo estatal, como aconteceu
no período medieval ou mesmo na ascensão
dos Estados modernos na Europa, que
sustentaram o protestantismo. Martinho
Lutero só não foi parar na fogueira
da Inquisição graças aos príncipes
europeus, que estavam interessados
em romper com a tutela do Vaticano.
E os Estados europeus só adquiriram
autonomia porque buscaram legitimação
religiosa no protestantismo nascente.
Tivesse o papa assegurado sua hegemonia,
Lutero teria ido para a Inquisição,
como os albigenses e tantos outros.
A hegemonia católica sobre a Europa
teria se mantido, e possivelmente
o protestantismo, pelo menos naquele
momento, não teria se expandido com
a força que teve.
Hoje,
essa crise é provocada pelo fenômeno
da globalização, que faz com que o
mundo se transforme numa pequena aldeia,
de tal maneira que as várias modalidades
de crenças religiosas possam ser intimamente
conhecidas por povos entre os quais
elas não têm raiz, como é o caso do
budismo ou do islamismo.
Massa
disforme
A
escola está em crise, porque nada
é mais cartesiano e newtoniano do
que a escola. Se os paradigmas da
modernidade entram em crise, a escola
também entra em crise. E por que a
escola entra em crise? São Tomás de
Aquino tem uma frase de que gosto
muito: "A razão é a imperfeição da
inteligência". Ou seja, a inteligência
vem de intus leggere (ser capaz de
ler dentro). Há pessoas analfabetas
que são sumamente inteligentes. Inteligir
uma situação não depende propriamente
de cultura, depende de sensibilidade,
de intuição, daquilo que a Bíblia
chama de sabedoria. E hoje constatamos
que a escola nos torna cultos, mas
não nos torna necessariamente inteligentes.
Passei 22 anos nos bancos escolares,
e a escola nunca tratou dos temas
limites da vida, nunca falou de experiências
pelas quais passamos, se não por todas,
pelo menos pela maioria, nunca falou
de doença, nunca falou de fracasso,
nunca falou de ruptura de laços afetivos,
nunca falou de dor, nunca falou de
morte, nunca falou de sexualidade
e, se falou de religião, não falou
de espiritualidade. Ou seja, temos
uma escola tipicamente cartesiana,
barroca. É como aqueles anjos das
igrejas de Minas Gerais e da Bahia,
que só têm cabeça, o resto é uma massa
disforme. Nossa escola cartesiana
acha que devemos saber como são os
conceitos da física, mas saímos da
escola sem saber consertar automóvel,
televisão, geladeira, pregar um botão
na camisa, cozinhar um ovo, fazer
café. Não somos preparados para prestar
primeiros socorros, para fazer coisas
absolutamente triviais do nosso cotidiano,
porque a escola separa a cabeça das
mãos, não nos abarca na totalidade,
na formação do ser como tal para a
vida. Ela dá instrumentos de compreensão
e modificação da natureza, que constituem
a cultura, mas não propriamente de
uma interação com a natureza.
Por
fim, o Estado. O Estado hoje, devido
à globalização e ao papel que os grandes
conglomerados empresariais desempenham
no mundo, é parceiro de um projeto
de desenvolvimento, mas não é mais
o fator determinante desse projeto.
A transnacionalização da economia
rompe com as fronteiras nacionais,
questiona o conceito de soberania
e traz um momento de crise. Isso porque
a globalização é inevitável, os meios
de comunicação transformaram o mundo
numa pequena aldeia. Minha avó, em
São João del Rei, via pela janela
de sua casa o mundo se transformar
a cada dez ou 15 anos. Hoje, a janela
pela qual vemos as mudanças do mundo
é a telinha da televisão. Se para
a minha avó as mudanças levavam dez
anos, para nós elas acontecem em dez
segundos. Essa aceleração das mutações
mexe profundamente com nossos valores
tradicionais e tem reflexos sérios
do ponto de vista dos paradigmas da
modernidade.
Quais
são os setores mais atingidos por
essa crise? Na modernidade, falava-se
em desenvolvimento. Encíclicas papais
e políticos falavam disso. O conceito
de desenvolvimento tem uma dimensão
ética. Hoje a palavra é modernização,
cujo conceito tem uma dimensão mais
tecnológica, no qual nem sempre se
inclui o bem-estar de todos, como
no conceito de desenvolvimento. Aliás,
já não existem projetos de países
ricos para o desenvolvimento de áreas
pobres do mundo. Falávamos em produção.
Hoje falamos em especulação. O mundo
virou um cassino global (está aí a
crise das Bolsas), em que dinheiro
rende dinheiro. Há mais dinheiro virtual
do que real. Falávamos em trabalho;
o trabalho era, na modernidade, o
fator de identificação do ser humano.
Hoje, fala-se de mercado, quem está
e quem não está no mercado. A Bíblia,
lida por certa ótica, diz que o trabalho
é um castigo: "Comerás o pão com o
suor do teu rosto". Viviane Forrester,
em Horror econômico, lembra que, hoje,
o trabalho é uma bênção: "Feliz de
quem tem um trabalho".
Minha
geração deve ter sido a última que
teve o luxo de ter vocação. A gente
chegava aos 15 anos perguntando: "Qual
será a minha vocação?" É muito difícil
achar um jovem, hoje, que esteja terminando
o curso colegial e fale em vocação,
tenha idéia de qual é a sua vocação.
Trabalho na Pastoral Operária. Há
dez anos, via muitos operários dizerem:
"Eu tenho profissão". No meio operário
há uma diferença entre aquele que
tem profissão e o que não tem. Hoje,
profissão também está ficando um luxo.
A questão é a seguinte: como faço
para ter um emprego? Antônio Ermírio
de Moraes, certo dia, disse na televisão:
a empresa dele tinha, há dez anos,
62 mil funcionários, hoje tem 40 mil.
Quando cheguei a São Bernardo do Campo
(SP), em 1980, a Volkswagen tinha
45 mil funcionários e fabricava 750
veículos por dia. Hoje produz 1,25
mil diariamente, com 25 mil funcionários.
A Benetton inaugurou em Milão, na
Itália, uma máquina de confecção automatizada
e, no dia seguinte, despediu 3 mil
funcionários. Estamos vivendo um processo
angustiante de avanço tecnológico
sem uma reflexão, não digo nem política,
porque a questão é muito mais ampla,
uma reflexão sobre a questão do trabalho,
do emprego, das condições sociais
geradas pela globalização. Eu faria
até um paralelo: é como querer ganhar
a guerra. Você pode ganhar a guerra
com a bomba atômica, como afinal se
ganhou a Segunda Guerra em Hiroshima
e Nagasaki. O custo humano, porém,
é muito grande. Será que ele não pode
ser evitado? Será que não podemos
ganhar a guerra do desenvolvimento
tecnológico e científico com menos
custo para as pessoas?
Educação
televisiva
Falávamos
em bem comum. Essa expressão está
sumindo até dos documentos da Igreja.
Hoje, falamos em tecnologia de ponta.
Falávamos em nação, hoje falamos em
globalização. Falávamos em cultura.
Hoje, de tal maneira os veículos de
cultura estão atrelados à publicidade
que estamos tendo menos cultura e
mais entretenimento. A sensação que
tenho, depois de passar uma semana
vendo a televisão brasileira, é de
ter ficado mais pobre espiritualmente,
sobretudo no domingo, que é o dia
nacional da imbecilização geral. Na
segunda-feira, a gente tem ressaca
moral, precisa de um tempo para se
refazer, depois de ver o ser humano
sendo tão degradado, ridicularizado
e ainda com um toque de humor.
Vivemos
uma esquizofrenia social. De um lado,
queremos defender os nossos valores
religiosos, morais etc., e, de outro,
temos, dentro de casa, uma pessoa
da família, eletrônica – a telinha
–, que não foi convidada, não
pede licença, não dialoga e nos impõe
valores que nem sempre conferem com
os nossos. É a história da minha cunhada,
que me disse: "Betto, fui aluna de
colégio de freira, por isso paguei
muitos anos de análise para me livrar
da idéia de que tudo é pecado. Espero
que meus filhos, quando adultos, escolham
se querem ou não ter uma religião,
mas não pretendo ensinar-lhes nenhuma
religião". Eu lhe disse: "Você, como
mãe, tem todo o direito de fazer essa
opção. Mas, como pessoa, não tem o
direito de ser ingênua. Ou você educa
ou a Xuxa educa. Não pense que existe
neutralidade. Se você não educar,
a televisão vai ensinar a seus filhos
o que é bem, o que é mal, o que é
certo, o que é errado, o que é justo,
o que é injusto". É uma questão de
opção.
Falávamos
em valores, hoje falamos de sucesso.
E introduzimos cada vez mais na linguagem
e na prática a idéia da competitividade.
Às vezes, faço treinamento de recursos
humanos em empresas, e os treinamentos
são interessantes porque não se trata
de fazer palestras, trata-se de captar
o pano de fundo da cultura da empresa.
Um dos detalhes mais interessantes
é o seguinte: os funcionários de uma
mesma empresa praticam entre si a
competitividade. A idéia da competição
com outras empresas é internalizada
de tal maneira, que a coisa emperra
porque a competitividade está lá dentro,
onde deveria haver cooperação. A competitividade
vai entrando de tal forma que as pessoas
já não sabem estabelecer um nível
mínimo de cooperação.
Falávamos
de realidade, hoje falamos de virtualidade.
A realidade virtual é positiva, do
ponto de vista da interação no planeta,
que se transforma numa pequena aldeia,
mas perigosa do ponto de vista da
abstração dos valores. Em outras palavras,
do meu quarto no convento no bairro
das Perdizes, em São Paulo, posso
ter um amigo íntimo em Tóquio, mas
não quero nem saber o nome do vizinho
de porta. Então sou um amigo virtual.
Há até o sexo virtual, por computador,
que está trazendo um problema para
a teologia moral: o adultério virtual.
Sofremos o risco de entrar numa concepção
de virtualidade que nos leva a falar
em cidadania e continuar jogando lata
de refrigerante e cerveja pela janela
do carro, invadindo a faixa de pedestre
etc. Vamos criando toda uma linguagem
que é virtual e não tem incidência
no real. Na vida real, ficamos cada
vez mais agressivos, mais violentos,
mais competitivos.
Falávamos
em história. Esse é outro fator da
crise da modernidade: estamos perdendo
a idéia do tempo como história. Daí
a dificuldade das novas gerações de
construir um projeto. Nossa geração
foi educada pela literatura e não
pela televisão. Somos a última geração
literária da humanidade. O que isso
muda? Quem foi educado pela literatura
percebe o tempo como passado, presente
e futuro, como projeto. A televisão
rompe a historicidade do tempo e introduz
a circularidade. Ao mesmo tempo que
vejo na metade da tela Ayrton Senna
vivo, na outra metade vejo-o morto.
Então, na cabeça das novas gerações
não há história. Daí a dificuldade
de seu filho ou de seu neto fazerem
projeto. A geração deles é tudo "aqui
e agora". Por que hoje não se fala
em QI, mas em inteligência emocional?
Porque muitas empresas constatam que
seus executivos, do ponto de vista
do QI, são geniais, mas são garotões,
emocionalmente infantilizados, e isso
afeta profundamente sua relação com
as pessoas, na medida em que hoje
há um processo de perenização da juventude,
o que é saudável de um lado e perigoso
de outro.
As
pessoas malham muito o corpo, mas
esquecem de malhar o espírito. Não
tenho nada contra o fato de malhar
o corpo. Minha preocupação é a seguinte:
como é que se malha o espírito? A
cidade de Ribeirão Preto (SP), em
1960, tinha seis livrarias e duas
academias de ginástica; hoje tem 60
academias de ginástica e seis livrarias.
Como se resolve isso?
Por
fim, estamos perdendo, na crise da
modernidade, a idéia da contextualidade
das coisas, ou seja, que tudo está
relacionado com tudo – que é
o novo paradigma holístico. Não há
eu de um lado e a natureza de outro.
Todos somos frutos da evolução do
universo. Cada um de nós tem 15 bilhões
de anos. Foram precisos 15 bilhões
de anos de evolução para que o universo
um dia se singularizasse na sua pessoa.
Enquanto não existíamos, enquanto
não existia o ser humano (a menos
que haja vida inteligente em outro
planeta. Até acredito que sim, mas
tendo captado nossas transmissões
de TV eles chegaram à conclusão de
que na Terra não há vida inteligente,
e, então, não convém se aproximar,
não vale a pena o esforço), o universo
era cego, não sabia que era belo.
Então o universo criou a nós, que
somos seus olhos e sua mente. Através
de nós o universo sabe que é belo
e, por isso, o chamamos de cosmo,
que tem a mesma raiz grega da palavra
"cosmético", aquilo que traz beleza.
Um
sentido para a vida
Esse
paradigma holístico que a pós-modernidade
procura reatar – os gregos de
certa maneira tinham isso –
vai nos dando a dimensão de que, na
natureza, há mais cooperação do que
segregação, do que seleção, como o
neodarwinismo tanto defende. E na
sociedade também esse processo de
cooperação deve prevalecer sobre a
competição.
A
holística, hoje, nasce da emergência
do fenômeno ecológico, mas se estende
para o campo social e filosófico.
Dentro disso, há uma percepção das
pessoas a respeito dos limites da
razão e há um certo cansaço do racionalismo.
Isso leva a um fenômeno novo, que
é a emergência da espiritualidade.
Hoje, em qualquer livraria de qualquer
país, a literatura religiosa, esotérica
e espiritualista tem uma grande aceitação.
Isso significa que as pessoas estão
ficando mais religiosas? Não necessariamente.
É que as pessoas estão ficando saturadas
de tanto racionalismo. Elas estão
buscando algo que o consumismo não
oferece, um sentido para a vida. Ou
seja, não posso encontrar o sentido
para minha vida no automóvel novo
que comprei ou na lata de cerveja
que bebo. E a modernidade, com o excessivo
racionalismo e o processo de secularização,
foi clandestinizando a questão do
sentido: por que vivo, qual a razão
desta minha única experiência de ser
no mundo, neste breve espaço dos meus
anos de vida? A sede de sentido é
que explica a busca desenfreada de
religiosidade. Somos o único ser aberto
à transcendência, o único ser que
tem fome de Deus. Um cavalo está na
sua plenitude eqüina; uma samambaia,
no canto da sala, deve nos olhar com
muita pena, dizendo: "Coitados, ainda
têm que trabalhar, viver emoções atribuladas.
Eu estou aqui na minha plenitude vegetal,
preciso apenas de um pouco de água
e sol".
É
aí que entra o desafio que se apresenta
para nós hoje: como resgatar a espiritualidade?
Quando falo em espiritualidade, falo
em algo que vai além das religiões
institucionais. Estou falando em como
resgatar a subjetividade humana, como
resgatar os valores da subjetividade,
como voltar a uma cultura onde o trabalho,
o pragmatismo ceda lugar à contemplação,
à reflexão, à sabedoria, ao aprofundamento
dos valores. Como restabelecer vínculos
humanos que estão se perdendo com
a aceleração da tecnologia? Às vezes
brinco dizendo que sonho escrever
uma peça de teatro sobre uma família
que vive numa casa no campo, onde
o acesso à cidade mais próxima não
é fácil. De repente, a luz acaba nessa
casa e, por uma semana, ninguém pode
ver televisão. O que aconteceria nessa
família obrigada pela circunstância
a dialogar entre si? É capaz de o
pai falar para a filha: "Mas, moça,
como é que você se chama mesmo?" Enfim,
isso para mostrar que há uma sede
de recuperação desses valores. Se
não abrirmos esses espaços, corremos
o risco de tê-los como núcleos fundamentalistas
de retrocesso. Quando as coisas não
encontram espaço na cidade, na polis,
elas surgem, como contestação, de
uma maneira fundamentalista, sectária,
perigosa.