Lya Luft
O
gato comeu
"Cadê
a vergonha,
a dignidade
e a coragem,
devoradas
por esse monstruoso
gato que agora
lambe os bigodes
e olha com
risinho sarcástico
o mapa do
Brasil político,
onde corremos
feito ratos?"
Ando
colecionando
informações
sobre coisas
importantes
que algum
gato comeu
em 2005, deixando
um vazio em
2006. Porque
certamente
um gato enorme,
voraz e sombrio,
tirou da bandeja
dos acontecimentos
que poderiam
melhorar o
país
(e a nossa
vida) algumas
guloseimas
éticas
e morais,
deu fim a
interrogações
sem resposta:
Cadê
o ânimo
inicial de
quando começaram
a ser desmascaradas
falcatruas
respeitáveis
envolvendo
governo e
política,
e a gente
acreditava
que as coisas
finalmente
iam ser postas
em seus lugares,
e começariam
a mudar?
Cadê
fonte e destino
especificados
da fortuna
inimaginável
manobrada
por um tesoureiro
de partido,
cadê
o nome da
pessoa que
lhe deu autoridade
para administrar
tanta e tão
suspeita grana,
e continuar
sem punição
real?
Cadê
o responsável,
singular ou
plural, pela
fortuna muito
maior que
rola nas mãos
de um publicitário,
calculada
em bilhões
que poderiam
comprar escolas,
construir
ou melhorar
hospitais,
salvar milhares
de vidas,
tornar menos
miserável
este pobre
país?
Cadê
a deposição
dos cargos,
a prisão,
a punição
superexemplar
dos mais que
culpados (os
que se conseguiu
encontrar)
dessa lambança
toda, que
seria de fazer
rir, se não
fosse trágica?
Cadê
aquele que
ministrou
o elixir do
esquecimento
a autoridades
que não
podiam se
eximir de
saber tudinho?
Cadê
o impedimento
de quem nega
às
CPIs informações
valiosíssimas,
faz sumir
documentos,
promove atrasos
inexplicáveis
e provoca
insuportáveis
confusões
– para
que tudo apareça,
menos a verdade?
Cadê
o apoio ao
esforço
gigantesco
dos membros
de CPIs que
acreditam
em justiça
e honradez,
e ainda insistem
em descobrir
as manobras,
procurar os
criminosos,
enfrentar
as barras
que não
devem estar
sendo muito
leves?
Cadê
a punição
de quem se
introduziu
em entidades
vetustas e
tribunais
imaculados
para que,
não
mais que de
repente, notássemos
que o governo
e/ou o PT
estavam sendo
favorecidos,
e não
a justiça
nem a verdade?
Cadê
a fábrica
de caras-de-pau
que preservam
(só
para os burros
ou ladinos,
claro) as
aparências
de que as
coisas funcionam
– tudo
engrenado,
lubrificado,
dentro dos
eixos e com
os parafusos
apertados
como nunca
antes –,
as autoridades
de nada sabendo
neste país
delirante?
Cadê
o nome de
quem nos roubou
a certeza
de que enfim
a casa seria
faxinada e
habitada sem
medo daquilo
que mostra
rabo e patas
nas frestas
desse imenso
barraco em
que se transformou
o país?
Cadê
a vergonha,
a dignidade
e a coragem,
devoradas
por esse monstruoso
gato que agora
lambe os bigodes
e olha com
risinho sarcástico
o mapa do
Brasil político,
onde corremos
feito ratos
acovardados
ou pouco inteligentes?
Notas
sobre novas
descobertas,
muitas provas
que os cínicos
dizem ignorar
e os mal-intencionados
desprezam,
ainda espocam
aqui e ali,
fazendo com
que a gente
não
desista de
todo enquanto
os mais bobos
batem palmas.
Mas
vamos deixar
de lado tanta
pergunta,
ou seremos
os empata-alegrias,
os chatos
de galocha.
Sejamos simpáticos
otimistas:
mesmo que
aqui dentro
as coisas
cheirem mal,
lá
fora o Brasil
vai mostrar
o que mais
sabe, futebol.
As eleições
vão
reavivar a
malandragem
e animar ainda
mais a demagogia,
explorando
a nossa credulidade
e embotando
a nossa mente.
Poucos vão
continuar
reclamando
das mutretas
e indignidades,
tentando arrancar
as verdades
impensáveis
de debaixo
dos tapetes
públicos
e privados.
Estamos
em pleno futuro:
viva o Carnaval
que se aproxima
e ajuda a
esquecer,
viva o futebol
que será
brilhante
e renovará
nosso entusiasmo
pela mãe-pátria,
e viva, não
esqueçam,
o gato que
comeu nossas
preocupações,
bebeu nossa
passageira
ira, e hoje
se diverte
com nossa
covarde acomodação
e nossa tão
fraca memória.
Talvez
seja mesmo
melhor assim.
Lya
Luft é
escritora
Fonte:
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