Os segredos da caverna do dragão
Descubra as origens dos magos, elfos e outros seres que povoam a série de livros de Tolkien e de Harry Potter

Marcelo Ferroni

Cuidado com dragões, gnomos e magos; eles estão por toda a parte. Essas criaturas já fazem sucesso há anos, seja no mundo fantástico criado pelo escritor inglês J. R. R. Tolkien, ou na recente série de livros do aprendiz de feiticeiro Harry Potter. Mas agora elas prometem conquistar um reino ainda maior. No Brasil, acaba de ser lançado Harry Potter e o Cálice de Fogo, o quarto volume de uma série escrita pela escocesa J. K. Rowling, que já vendeu cerca de 100 milhões de exemplares no mundo todo. E, no final do ano, deve estrear nos Estados Unidos, além de um filme com o aprendiz de feiticeiro, a primeira parte da trilogia de O Senhor dos Anéis, baseada na série de livros que consagraram Tolkien como o maior escritor de ficção fantástica da atualidade.

É difícil escapar do fascínio das histórias de bruxos, espadas mágicas e guerreiros. Por dois motivos: as narrativas fazem parte da formação da literatura na Europa e, mesmo distantes, fascinam outras regiões do mundo. E foram reconstruídas com habilidade por autores que souberam tirar partido da cultura dos antepassados.

Conta-se que, em tempos remotos, existia nas terras do norte o mais famoso de todos os palácios. Heorot era seu nome; e, em sua sala principal, sentava-se o rei Hrothgar, líder dos dinamarqueses. Sua corte vivia em meio a festas e riquezas, sem saber que a movimentação fazia sofrer um poderoso monstro, chamado Grendel, que habitava uma região pantanosa nas cercanias do palácio.

A alegria prosseguiu até Grendel decidir acabar com a festa. Não foi preciso muito, pois sua força era monumental; com um só golpe, atingia 30 guerreiros. Os homens do rei Hrothgar nada podiam contra a criatura e, assim, foram sistematicamente dizimados por mais de uma década. Até que o sofrimento chegou ao fim. Ao saber da violência de Grendel, um bravo guerreiro deixou suas terras na Suécia e ofereceu ao rei Hrothgar uma ajuda para acabar com o monstro. Seu nome, todos vieram a saber depois, era Beowulf.


Moda de chapéus pontudos

O mundo dos magos faz sucesso nos dias de hoje. Basta se lembrar das peripécias do aprendiz de feiticeiro Harry Potter. A magia era um tema muito popular na Idade Média e, entre os livros sobre o assunto, o personagem que se tornou mais conhecido é o ma go Merlin.

"Ele é uma figura muito antiga, que aparece em lendas celtas transcritas entre os séculos 12 e 13, mas que devem datar dos anos 600", conta José Roberto de Almeida Mello, ex-professor de história medieval da USP. Em alguns escritos, Merlin é retratado como uma pessoa criada em estado selvagem e, em outros, ele se refugia na floresta depois de ficar louco ao provocar uma batalha. E seu nome não era Merlin; nas versões galesas, é grafado como Myrddin. "Acreditava-se, na Idade Média, que os loucos tinham o dom da profecia", diz o professor. E isso pode ter contribuído para a formação do personagem.

A crença na magia estava tão disseminada naquela época que algumas cortes possuíam seus próprios magos e, nas Sagas islandesas, freqüentemente aparecem mulheres com poderes divinatórios ou que praticam a bruxaria.

Essa história bem poderia ter saído de algum livro escrito pelo mestre da ficção fantástica John Ronald Reuel Tolkien (1892-1973). Professor de anglo-saxão (uma forma antiga do inglês) na conceituada Universidade de Oxford, no Reino Unido, Tolkien passou mais de meio século escrevendo histórias desse tipo. Suas terras, habitadas por elfos, dragões e magos, tornaram-se uma referência para tudo o que foi feito posteriormente, de filmes como Willow (EUA, 1988), a jogos de RPG (role-playing games) como Dungeons and Dragons.

Mas trata-se de uma narrativa bem anterior. Faz parte de um poema heróico composto na metade do século 8, que chegou até os nossos dias por meio de um único manuscrito, datado por volta do ano 1000. Se as semelhanças com os livros e filmes atuais são grandes, é porque o épico, chamado Beowulf, serviu de inspiração a inúmeros autores modernos e, principalmente, Tolkien. "Ele deu aulas sobre Beowulf, fez traduções e escreveu sobre ele", conta Verlyn Flieger, professora de literatura da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, especialista em Tolkien. "Quando começou a escrever suas histórias, muito do que Tolkien conhecia acabou permeando o seu trabalho."

Baixinhos

Seres pequenos, semelhantes aos humanos, povoam os livros de Tolkien e de Harry Potter. Eles podem ser os amigáveis Hobbits, de pequena estatura e pés peludos, os valentes elfos ou os terríveis guerreiros orcs. Elfos, gnomos e anões também estão na literatura medieval. "Eles parecem ser comuns a diversas tradições", conta a professora Verlyn Flieger. Os nórdicos mencionam freqüentemente a existência de gnomos, possuidores de grande inteligência e habilidade manual. A respeito dos elfos, os Edda citam a existência dos elfos luminosos, "de aparência mais formosa que o Sol", e os elfos escuros, que habitam as profundezas da terra. "A beleza dos elfos, ressaltada nos livros de Tolkien, também aparece na cultura celta", conta Flieger.

Essas criaturas, no entanto, nem sempre eram consideradas boas na Idade Média. Entre os germânicos, acreditava-se que os elfos causavam doenças nos humanos e no gado. E , à noite, traziam pesadelos ao sentar sobre o peito de uma pessoa adormecida. Já os gnomos eram pequenas criaturas deformadas, que viviam nos subterrâneos guardando tesouros.

Mundo inspirado

O que não quer dizer que ele tenha copiado trechos do épico anglo-saxão. Como professor, Tolkien acabou se envolvendo com outras narrativas antigas, germânicas, nórdicas e celtas. E, como diz Ronald Kyrmse, engenheiro e revisor técnico das traduções de Tolkien no Brasil, "ele acabou criando seu mundo a partir do conjunto de tudo o que absorveu". Em O Senhor dos Anéis, nota-se a homenagem prestada a esses épicos.

Um dos personagens principais da obra de Tolkien, o mago Gandalf, por exemplo, se parece muito com Merlin, figura enigmática das histórias que tratam do lendário rei Artur, escritas principalmente entre os séculos 12 e 13. Mas a aparência de Gandalf - um homem velho, de capuz e cajado, vagando pelas estradas - é extraída de outra narrativa.

Para a professora Verlyn Flieger, as características do velho mago são as mesmas do deus nórdico Odin, descrito em duas obras islandesas do século 13. Esses dois livros, o Edda em Prosa e o Edda em Verso, narram a criação e o fim do mundo sob o ponto de vista dos nórdicos, que habitavam a região onde hoje fica a Escandinávia. O próprio nome Gandalf aparece no Edda em Prosa. Não se refere a um mago, mas a um gnomo.

Fogo nas entranhas

Na história de Beowulf, composta entre os anos de 720 e 750, o herói não enfrenta só monstros que atacavam os dinamarqueses. Na segunda parte do poema, Beowulf, já velho e agora rei, enfrenta um dragão que devastava seu reino. A luta prova-se fatal e, apesar de derrotar a criatura, o herói também morre.

Os dragões infestam as sagas e épicos medievais, e estão presentes até no folclore celta. Muitas vezes, estão associados a grandes riquezas. Eles estão nos Edda, em histórias do rei Artur e até em um épico germânico, A Canção dos Nibelungos, uma compilação do século 13 de materiais mais antigos, que se tornou uma das obras fundadoras da literatura alemã. Nela, conta-se que um dos heróis, Siegfried, tornara-se invencível ao se banhar no sangue de um dragão que havia derrotado. "O dragão é uma figura muito antiga, e é difícil rastrear sua origem", conta Mello, ex-professor da USP.

É importante lembrar que, antes da influência cristã, os dragões não eram necessariamente maus. Na maior parte das vezes, estavam apenas interessados em guardar seus tesouros, e só reagiam se provocados.


As influências nórdicas são muito fortes nas obras de literatura fantástica. "Muitas das características dos heróis de Tolkien se devem aos épicos nórdicos e anglo-saxões", conta Flieger. São homens destemidos, em alguns casos aventureiros, que enfrentam desafios impossíveis às pessoas comuns. Na maioria dos casos, usam espadas, ou outras armas, de poder mágico . Além de Beowulf e dos Edda, esses personagens aparecem com freqüência nas chamadas Sagas. Também escritas na Islândia entre os séculos 11 e 13, essas histórias relatam o cotidiano de famílias nórdicas e as aventuras de alguns ousados - e encrenqueiros - guerreiros.

No entanto, há uma diferença básica entre o comportamento desses heróis e dos personagens das histórias fantásticas atuais. "Em O Senhor dos Anéis, há o sacrifício do herói por uma causa maior, e uma distinção clara entre o Bem e o Mal", conta Flieger. "Isso não existe nas Sagas." Mais uma vez, essa idéia de um cavaleiro ético e justo faz parte dos romances de cavalaria. Essas obras, escritas no noroeste da França, eram muito populares nas cortes européias.

Idéia na cabeça, espada na mão

Guerreiros ousados são parte essencial das histórias que lidam com mágica e reinos fantásticos. Na literatura medieval, não é diferente. Eles normalmente são pessoas muito fortes e, por vezes, confiantes ao extremo. Em A Canção dos Nibelungos, o bravo Siegfried se adianta aos seus homens para fazer um reconhecimento das forças do inimigo. Como é dito, "eram bem 40 mil homens, ou talvez ainda mais". E o herói não se assusta: "Siegfried viu isso com grande entusiasmo".

Normalmente, eles vêm acompanhados de uma arma mágica, ou, no mínimo, mais eficaz que as demais. Siegfried, por exemplo, carrega a espada Balmung. Nos romances de cavalaria, Artur assume o trono ao retirar a poderosa espada Excalibur de uma pedra. E o Edda em Prosa descreve os poderes do martelo mágico Mjölnir, do encrenqueiro deus nórdico Thor.

Um toque cristão

A base de sua composição vem principalmente de lendas celtas, como a de Merlin , mas, ao longo das décadas, foi se mesclando a diversas outras histórias germânicas, nórdicas e, principalmente, cristãs.

A influência do cristianismo é muito forte em todas as obras que tratam de dragões, elfos e magos. Isso ocorre porque, apesar de abordarem mitos pagãos, esses épicos só foram parar no papel entre os séculos 8 e 14, em um momento da História em que toda a Europa Ocidental era aos poucos convertida à nova religião.

Invisíveis e seguros

O que seria dos heróis se não fossem seus utensílios mágicos? Esses objetos, que vão de anéis a capas, estão tanto nas histórias atuais como na literatura antiga. O manto que dá invisibilidade ao jovem Harry Potter, por exemplo, encontra equivalente em A Canção dos Nibelungos: Siegfried tem a mesma vestimenta, roubada de um anão maligno.

Um dos anéis descrito em O Senhor dos Anéis, o mais poderoso deles, dá o dom da invisibilidade a quem for necessário. A Idade Média está recheada de anéis e amuletos usados para espantar os maus espíritos ou garantir proteção na batalha.

No mundo nórdico, acreditava-se que algumas inscrições também tinham poder mágico. Trata-se das runas, o alfabeto usado em culturas na Escandinávia e Islândia. Seu surgimento, contam os Edda, também tinha origem mágica: Odin conquistou o poder de usá-las ao se pendurar por nove noites na árvore Yggdrasil.

"As obras, que antes só eram transmitidas oralmente, começaram a ser redigidas principalmente por monges", conta José Roberto de Almeida Mello, professor aposentado de história medieval da USP (Universidade de São Paulo). "E esses monges decidiam usar as lendas um pouco modificadas, para que elas tivessem um fim didático, ou seja, passassem valores cristãos à população da época."

As narrativas desse período que chegaram até nós não sofreram só alterações cristãs. Ao longo dos séculos, até o fim dos anos 1300, foram contadas, recontadas, unidas ou desmembradas para formar novas histórias, e acabaram se confundindo. Para Tolkien, toda essa mistura acabou formando uma "sopa" de referências. "É difícil traçar a origem de cada lenda, seja ela celta, anglo-saxã ou nórdica", diz o professor Almeida Mello. Mas, se isso não é possível, pelo menos é fácil encontrá-las espalhadas pela Idade Média e, surpreendentemente, pelos dias de hoje.

Anote

Para navegar

  • http://www.tolkiensociety.org/

    Para ler
  • Beowulf (anônimo). Editora Hucitec. 1992
  • Edda em Prosa, Snorri Sturluson. Numen Editora. 1993
  • A Canção dos Nibelungos (anônimo). Ed. Martins Fontes. 1993
  • Romances da Távola Redonda, Chrétien de Troyes. Ed. Martins Fontes. 1998
  • Magic in the Middle Ages, Richard Kieckhefer. Cambridge. 2000
  • Fonte: Revista Galileu

    Imagens: Ronaldo L. Teixeira sobre ilustrações de Arthur Lopes

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