O
Fim da Arte e a Dissolução
dos Ideais Revolucionários
Paula Mateus
Em
After the End of Art Arthur C. Danto
defende que a arte - ou pelo menos
um certo tipo de arte - chegou ao
fim. A ideia não é nova.
É o próprio Danto quem
nos informa que entende por "fim
da arte" exactamente o mesmo
que Hegel já havia anunciado
há mais de um século.
Pela
designação que tem,
a tese do fim da arte pode levar-nos
a pensar que Danto e Hegel descrevem
um momento a partir do qual não
se fazem obras de arte, uma espécie
de mundo em que os artistas deixam
de existir ou de ter algum papel a
desempenhar. Obviamente, uma tese
deste género seria afastada
com rapidez, caso os seus autores
tivessem a pretensão de a aplicar
quer ao passado quer ao presente,
pois a experiência poderia mostrar
que tanto hoje como no tempo de Hegel
continuam e existir artistas que produzem
obras de arte, e muitas destas continuam
a produzir efeitos nas vidas das pessoas
que as conhecem.
O
fim da arte não é o
fim das obras de artes - de quadros,
de esculturas, de música ou
de literatura. É sim o fim
de um tipo de arte que pode ser compreendido
pela história da arte, uma
história que agrupa estilos,
relaciona movimentos, explica obras
particulares, e sobretudo, parece
mostrar uma linha quase contínua
de evolução e progresso
artístico. O que morreu não
foi a arte, mas sim a possibilidade
de explicar a arte através
de manifestos e narrativas. Os artistas
depois do fim da história comprometem-se
mais com a liberdade de escolher qualquer
estilo ou tipo de arte, do que com
os compromissos dos manifestos. Produzem
aquilo que querem, como querem, quando
querem. E por isto deixa de poder
dizer-se como as obras têm de
ser. Podem até ser indiscerníveis
dos objectos do quotidiano. A arte
que assume estas possibilidades torna-se
auto-consciente, filosófica.
Numa palavra poderíamos dizer
que os artistas do fim da arte não
deixam de fazer arte, deixam de fazer
história. Quanto a isto, Danto
nada acrescenta a Hegel.
Mas
para Danto o fim da história
não aconteceu com o romantismo,
como supunha Hegel, nem Shakespeare
é o autor das obras em que
a arte se torna auto-consciente. O
fim da arte aconteceu nos anos sessenta,
com a arte Pop, e Andy Warhol é
talvez um dos seus maiores mentores.
Para
que um acontecimento nos pareça
um fim é indispensável
perceber o que está antes dele
e como a sua presença marca
de facto uma diferença. Para
isso, e antes de explorarmos o tema
do fim da arte, procuraremos entender
o que existe antes dele, na época
das narrativas, no curso da história
da arte.
Narrativas e Manifestos
A
era da arte não tem início
quando se começam a produzir
obras de arte, ou pelo menos aquilo
a que hoje chamamos obras de arte,
mas sim quando certos objectos começam
a ser pensados em termos estéticos.
E também não acaba quando
deixam de existir obras de arte, mas
sim quando a produção
das mesmas deixa de ser coerente e
quando essa falta de coerência
é consciente e assumida. Entre
o princípio e o fim da arte
conta-se uma história, a história
da arte que primeiro foi mimética
e depois foi moderna. Danto acredita
terem existido duas grandes narrativas
da arte, dois grandes discursos acerca
do que a arte é e do que deve
ser, a saber, o de Giorgio Vasari,
no sec. XVI e o de Clement Greenberg
no sec. XX. Nas palavras de ambos
encontra Danto bons exemplos de como
foi possível tornar compreensível
em poucas palavras a arte de vários
séculos, mostrando em que consiste
a essência da mesma e como esta
pode ser realizada. É de Greenberg
que Danto mais se serve para mostrar
o que é uma narrativa e como
ela deixou de fazer sentido para a
arte dos nossos dias.
Clement
Greenberg é conhecido por todos
como um dos grandes teorizadores do
modernismo, mais propriamente da pintura
modernista. Não é Greenberg
o primeiro modernista, mas é
quem nos oferece uma teorização
do modernismo que nos permite compreender
como a arte evoluiu até chegar
ao modernismo e como deve ser a arte
a partir dele. Uma aproximação
teórica como a de Greenberg
permite compreender tanto o passado
como o presente e o futuro da arte.
Faz com que ela tenha uma história,
uma coerência, um percurso.
Segundo Greenberg a pintura deve mostrar
os limites e os meios da própria
pintura. As influências de Kant
em Greenberg são claras: tal
como a razão se auto-analisou
nas Críticas kantianas, concluindo
que a razão prática
deve ser pura, também a pintura
alcança a perfeição
quando se auto-reflecte, quando serve
para nos mostrar o que é a
própria pintura, quais os seus
recursos e os seus instrumentos. A
pintura, tal como a razão,
deve tornar-se pura, prescindindo
de todos os caracteres das outras
artes. Não entendamos que a
pintura deve tornar-se obrigatoriamente
abstracta; a arte modernista como
Greenberg a entende pode continuar
a ser figurativa, mas terá
de prescindir do tipo de espaço
em que se moviam as figuras da pintura
mimética, porque este é
o espaço próprio da
escultura. O expressionismo abstracto
- com nomes como Jackson Pollock,
M. Gorky, Rothko, Frankenthaler e
Dubuffet - e posteriormente a pintura
do campo de cor (Frank Stella e Paul
Jenkins) são a materialização
clara do que Greenberg julgava dever
ser a pintura.
Uma
pintura de Jackson Pollock tornava
visível tudo o que Kant havia
pensado acerca da beleza. Com ele
o público pode ter uma intuição
da imaginação criativa
à qual não pode ser
dado qualquer conceito. A forma e
só a forma da pintura, o modo
como a tinta se liberta em direcção
à tela e esta a recebe, pode
provocar um prazer desinteressado,
comunicável e universalmente
necessário. No juízo
de gosto, diz Kant, devem suspender-se
a moralidade, as considerações
sobre a utilidade do objecto e as
expectativas de vantagens pessoais.
O respeito de Greenberg pelas palavras
de Kant é tal que chega por
vezes a atingir momentos caricaturais.
Para cumprir o que o mestre havia
dito sobre o juízo de gosto,
Greenberg costumava utilizar uma técnica
curiosa para fazer a apreciação
de obras de arte: deslocava-se ao
atelier de jovens pintores e pedia
que nada lhe fosse mostrado até
estar pronto, voltava-se de costas
e de repente gritava: "Hit me!",
momento em o quadro lhe era mostrado
como que de surpresa. A apreciação
resultante desse momento sui generis
deveria tornar-se em juízo
universal, servindo geralmente de
trampolim para a fama aos jovens pintores.
As
considerações que Greenberg
tece sobre a natureza da arte estabelecem
um critério claro para aquilo
que deve ser a arte, mas permitem
também traçar um percurso
mais ou menos contínuo na história
da arte a partir dos impressionistas.
Com Cézanne as formas representadas
aproximam-se das formas da tela e
com Manet, por exemplo, torna-se claro
que as cores saíram de dentro
de boiões de tinta. A partir
daí os princípios da
arte modernista desenvolvem-se das
mais variadas maneiras, deste os expressionistas,
como Gauguin, passando por Picasso,
pelo suprematismo de Malevich e pelo
neo-plasticismo de Mondrian. No entanto,
não deve entender-se que os
museus de arte moderna se transformaram
em exposições de quadrados
pretos e rectângulos vermelhos,
ou de mulheres bicudas e animais coloridos.
Algo mais radical aconteceu com o
modernismo. Dado que a forma, e não
o conteúdo, passou a ser o
objecto da arte, o critério
para identificar uma obra como modernista
passou também a ser, naturalmente,
um certo tratamento "geometrizado"
da forma, uma exploração
radical das potencialidades e dos
instrumentos de cada tipo de arte,
e uma especial atenção
à cor. Assim, muitas obras
feitas antes do aparecimento do modernismo
tornaram-se modernistas, nomeadamente
o artesanato das chamadas culturas
primitivas que até aí
se encontrava nos museus de Etnologia.
Segundo esta perspectiva, o modernismo
parece ter as suas raízes no
passado, onde podemos procurar a sua
história.
De
vez em quando surgem algumas pedras
no sapato do modernismo visto por
Greenberg. O Surrealismo foi uma delas.
O conteúdo, e não a
forma, preocupam o surrealismo. É
recuperada a representação
do espaço tridimensional em
que as figuras desfilam. Obviamente,
o surrealismo não é
um regresso à arte narrada
por Vasari, porque a imitação
da realidade exterior não é
o seu objectivo. Mas se não
é nem realismo nem modernismo,
que poderá ser? Segundo Greenberg,
o Surrealismo é algo que está
fora do rumo da história, uma
manifestação marginal
que em nada contribui para o progresso
da arte.
Repare-se
que este tipo de exclusão é
típico de qualquer narrativa
que institua um critério para
definir a essência da arte.
Os impressionistas já tinham
sido alvo de algo muito parecido,
quando foram apelidados de loucos,
pela apresentação de
uma arte que saía fora dos
limites da história (out of
the pale of history). Sair destes
limites é apenas fazer um tipo
de arte que não pode ser compreendida
à luz das teorias históricas
vigentes. Quando um conjunto de obras
parece sair dos limites da história,
a primeira coisa que há a fazer
é tentar interpretá-lo
segundo os parâmetros estabelecidos.
Foi o que aconteceu, por exemplo,
com as obras mais polémicas
de Duchamp. Depois do choque inicial,
foi fácil interpretá-las
como tentativas do autor de pôr
em destaque as propriedades formais
(as linhas, as cores, as formas, as
texturas) de objectos do quotidiano.
O que inicialmente foi um protesto
contra a arte do modernismo, tal como
é vista por Greenberg, transformou-se
em mais um exemplo do mesmo tipo de
arte. Quando não é possível
fazer este tipo de reintegração,
o veredicto é um só:
alguns tipos de arte são menores,
impuros, desprezíveis, e talvez
até indignos do nome "arte",
visto que a essência da arte
não se encontra neles.
Os
princípios a que obedece a
narrativa de Greenberg, que é
de certa forma um manifesto da pintura
modernista, são comuns a outras
narrativas do século XX, mesmo
aquelas que são excluídas
dos limites da arte traçados
por Greenberg. É o caso da
arte regulada pelo manifesto Dada,
pelos manifestos do Surrealismo, do
Futurismo, e outros. Todos eles obedecem
à estrutura quase canónica
do manifesto comunista: aqueles que
estão connosco estão
no caminho certo e encontrarão
a essência do homem, a verdade,
aqueles que não nos seguem
são aberrações
da história que ela própria
se encarregará de eliminar.
Danto
atribui a Giorgio Vasari (1511-1574)
a narrativa que antecedeu o modernismo.
Também esta tem uma estrutura
semelhante às já descritas.
Esta narrativa entende a arte como
imitação da realidade
e o seu progresso como a realização
de obras de arte cada vez mais próximas
da realidade. O início da utilização
da perspectiva representou um importante
passo nesta direcção.
Apesar de Vasari não conhecer
a arte que se fez em grande parte
do século dezanove, por exemplo,
não quer dizer que a sua narrativa
não se lhe aplique, dado que,
como já foi dito, uma narrativa
é um plano daquilo que foi
e daquilo que deve ser a arte, é
uma história que se conta acerca
do modo como a arte deve desenvolver
a sua essência. Esta narrativa
termina apenas quando a arte deixa
de ser feita segundo os princípios
delineados por ela, quando aquilo
que parecia ser a essência da
arte passa a ser entendido apenas
como um aspecto contingente. E quando
termina uma narrativa é fácil
colocar outra no seu lugar, mostrando
que a história da arte foi
contada até aí de uma
maneira incorrecta e "desfocada".
A arte Pop e o princípio
do fim
Segundo
Danto, a era pós-histórica
inicia-se nos anos sessenta com a
aparecimento da arte Pop. Os artistas
começam, então, a interessar-se
pelos objectos do quotidiano e a trazê-los
para dentro das próprias obras.
O exemplo que mais marcou Danto foi
Brillo Box de Andy Warhol. Apesar
de ser feito de madeira e não
de cartão, Brillo Box poderia
facilmente confundir-se com as caixas
de cartão onde vinham as embalagens
de detergente, as caixas "reais".
Mas a obra é tão real
quanto a caixa de detergente, é
um objecto eventualmente indiscernível
do original. O impacto que Brillo
Box causou em Danto foi tal que a
questão da indiscernibilidade
de idênticos na arte inspirou
grande parte da sua obra, nomeadamente
o seu artigo mais influente, "The
Artworld".
Não
bastará, no entanto, esta característica
de grande parte da arte Pop para nos
fazer perceber que pode ter esta a
ver com o fim da arte. Aliás,
Duchamp havia já trazido os
objectos mais comuns para dentro da
própria arte e nem por isso
Danto considera que o fim da arte
se inicia aí. Há que
notar que, entre as obras de Duchamp
e as obras da arte Pop, parece existir
uma diferença importante: enquanto
que A Fonte de Duchamp se apresenta
claramente como um desafio, ou até
um protesto, Brillo Box não
é um protesto e se calhar nem
sequer é um desafio. Os artistas
da arte Pop estão reconciliados
com o que está à sua
volta e provavelmente nem sequer estão
muito interessados em destruir seja
o que for. Não deve entender-se
daqui que não existe qualquer
tipo de rebeldia na produção
destas obras. É óbvio
que existe, mas talvez ela seja mais
uma afirmação do que
um protesto. É a liberdade
que inspira estas obras, é
o desejo de poder fazer da arte um
palco para a diversidade das pessoas
e das suas experiências. Os
artistas amam a civilização
que conhecem e o lugar comum (Commonplace).
Não são anti-modernos,
mas sim pós-modernos. A reconciliação
que se realiza entre o artista e aquilo
que o rodeia verifica-se também
entre o artista e os vários
tipos de arte. Este deixa de ser exclusivamente
pintor, escultor ou escritor para
poder ser todas estas coisas, mesmo
que o seja simultaneamente. Andy Warhol,
por exemplo, conseguiu uma boa aproximação
ao ideal de reconciliação
marxista, em que o homem pode pescar
de manhã, guardar o gado à
tarde e escrever crítica à
noite. E talvez este tenha sido o
primeiro momento em que os artistas
venceram a dilaceração
kantiana entre natureza e razão.
Talvez este bem-estar tenha sido um
dos golpes mais profundos na vida
do modernismo. A revolução
total tornou-se desnecessária
porque os seus objectivos foram alcançados
com naturalidade - ou pelo menos com
a naturalidade possível do
Flower Power.
Com
a arte Pop as obras tornam-se impuras
(no sentido da narrativa de Greenberg):
misturam-se estilos e tipos de arte,
cores, formas e materiais. A arte
sai da sua redoma: as pinturas deixam
de aparecer só em quadros,
a escultura faz-se de gesso, de plástico
ou até de lixo, as misérias
tornam-se estéticas. A desordem
instala-se. Tudo é permitido.
A proliferação de estilos
revela a inexistência de um
critério para distinguir a
arte do que não é arte.
Deixa de ser possível ensinar
o que é a arte através
da exemplificação porque
deixam de existir traços comuns
entre as obras. A partir daqui só
a filosofia pode tentar mostrar-nos
qual a essência da arte e que
significa o momento em que ela se
encontra.
Deve
notar-se que Danto assinala uma diferença
entre os conceitos de pós-modernismo
e de era pós-histórica.
O pós-modernismo pode, a limite,
identificar-se com um estilo, ou uma
corrente artística, caracterizada
pelo carácter heterogéneo
das obras, pela repulsa pelos princípios
da lógica mais comum, e pela
deliberada espontaneidade, se é
que uma espontaneidade deliberada
pode ser espontaneidade. Estas obras
pertencem obviamente ao momento pós-histórico,
mas não o esgotam. É
perfeitamente possível que
continuem a existir pinturas realistas
ou tipicamente modernistas na era
pós-histórica, só
que estas não terão
nem exclusividade nem maioria. Na
era pós-histórica as
obras não têm de ser
desta ou daquela maneira; não
há limites e por isso não
há exclusões. Nada fica
de fora dos limites da história,
porque a história não
tem limites.
Isto
não significa que todas as
obras, consideradas individualmente,
tenham o mesmo valor. O que acontece
é que a qualidade deixa de
ser uma questão de estilos
para passar a ser uma questão
de obras. A crítica de arte
continua, por isso, a fazer sentido
mesmo depois da era pós-histórica.
A
propósito da crítica
de arte Danto parece revelar por vezes
alguma ingenuidade. Diz-nos como se
fosse óbvio que o papel do
crítico é entender o
significado da obra e seu modo de
apresentação. Ora, saber
qual o significado de uma obra é
exactamente uma das coisas mais difíceis
de conseguir no que diz respeito à
arte. Em "The Artworld"
Danto dá-nos, de facto, indicações
sobre o modo como isto pode ser feito:
"Sem
a teoria provavelmente não
o veríamos [Brillo Box] como
arte, e de forma a podermos vê-lo
como parte do mundo da arte, deveremos
ter tido contacto com uma grande quantidade
de teoria artística e de história
recente da pintura de Nova Iorque.
Não poderia ter sido arte há
cinquenta anos atrás.[...]
O mundo tem de estar preparado para
certas coisas e o mesmo acontece com
o mundo da arte. É o papel
das teorias artísticas, agora
e sempre, tornar o mundo da arte,
e a arte, possíveis."
("The Artworld", The Journal
of Philosophy, LXI, 1964)
Em
After The End Of Art, mostra através
de um exemplo os princípios
gerais da crítica já
indicados:
"Primeiro
o quadro funciona por si mesmo. Ele
é vermelho. É quadrado
e não muito grande. Está
colocado convenientemente à
altura dos olhos numa parede com bastante
espaço livre à sua volta.
[...] O objecto está pendurado
na parede como se fosse uma pintura.
De facto ele está pintado,
ele é uma pintura. Que tipo
de referências faz como pintura?
[...] o suporte de madeira vem da
Renascença, [...] a superfície
colorida de uma só cor pertence
à tradição da
pintura monocromática, a forma
quadrada é neutra e moderna,
o tamanho é humano, não
sendo nem grande nem pequeno, a única
pintura é um exemplar do trabalho
do artista." (Robert Nickas e
Xavier Douroux, Red, Brussels: Galerie
Isy Brachot,1990, citado em After
the End of Art, p. 168)
O
que Danto quer exactamente dizer quando
indica o papel do crítico tornar-se-á
um pouco mais claro adiante, quando
considerarmos o que é a essência
da arte. Todavia, não nos será
dito como o crítico avalia,
de facto, as obras particulares. Quando
se refere à crítica,
Danto parece esquecer que é
também a função
do crítico atribuir um valor
a cada obra, e não apenas mostrar
as relações que estas
podem ter com a arte já existente,
o seu conteúdo ou o seu modo
de apresentação. É
compreensível que o faça,
uma vez que a tese do fim da arte
implica a inexistência de critérios
específicos de avaliação,
como existiam com o modernismo ou
com a arte mimética. Mas como
crítico e como filósofo
não seria de esperar que o
fizesse...
O Fim da Arte
Uma
das teses mais difíceis e enigmáticas
acerca do fim da arte é a da
afirmação da natureza
filosófica das obras da era
pós-histórica. Diz-se
que elas se tornam auto-conscientes.
Mas esta auto-consciência não
poderá significar que a arte
se torna objecto para si mesma, tal
como acontece com a pintura modernista
(destinada a mostrar o que é
a pintura) porque esta é uma
característica da arte modernista.
Se significa que a arte serve para
fazer pensar acerca da própria
arte e da sua natureza, teremos de
saber em que se distingue uma obra
de arte de um texto filosófico.
A
ideia de um desenvolvimento tripartido
que culmina num momento de auto-consciência
é claramente hegeliana. O Espírito
reconhece-se nesse momento e percebe
as suas manifestações,
a sua história, torna-se consciente
de si mesmo quando entende que todos
os seus momentos são necessários
e que a sua essência histórica
chegou agora a bom termo. O momento
pós-histórico da arte
é comparável à
realização do Espírito
Absoluto. A arte sabe agora qual é
a sua essência, compreende a
sua história e percebe que
todos os "estádios de
evolução" foram
necessários. Não há
nada de problemático nos momentos
anteriores da história da arte
porque também eles manifestam
a essência da arte. Com o fim
da arte chega também ao fim
qualquer revolução,
porque as revoluções
justificam-se enquanto meios para
atingir a plenitude que, neste momento,
foi já atingida. Tal como Hegel
se julga o profeta do fim da história,
Danto apresenta-se em After the End
of Art como aquele cuja clarividência
permitiu anunciar o fim da arte, tornando
a arte consciente de si mesma.
O
que é exactamente a essência
da arte, é algo difícil
de perceber nas palavras de Danto.
A Fonte e Brillo Box não provam
que não exista uma essência
na arte, provam sim que aqueles que
até agora tentaram dizer o
que ela é estavam errados.
Para Danto, a essência da arte
é histórica e Hegel
foi o único que a compreendeu.
Segundo Hegel a apreciação
das obras de arte deve fazer-se atendendo
a dois aspectos já aqui mencionados:
1) O conteúdo da arte, 2) o
meio da apresentação.
Do modo como ambos se relacionam resulta
a própria obra. Se um dado
conteúdo for apresentado de
duas maneiras teremos duas obras e
não uma. Se um artista nos
quiser dizer alguma coisa acerca da
contingência da existência
humana, por exemplo, poderá
fazê-lo através do drama
ou da comédia. Mas a escolha
de um ou de outro condicionará
também a mensagem a transmitir.
Podemos entender até que um
conteúdo específico
requer o meio de apresentação
adequado a ele, que as coisas que
um artista quer dizer só podem
ser ditas de uma certa maneira, recorrendo
a um certo meio de apresentação.
Só na conjugação
dos dois existe propriamente a obra.
Danto aceita que estas duas condições
não são conjuntamente
suficientes para termos uma obra de
arte. A definição de
arte só parcialmente deve ser
feita a partir delas. No entanto,
se retomarmos o que Danto nos diz
em "The Artworld" poderemos
perceber um pouco melhor o que é
a essência da arte.
De
acordo com o estado da arte num determinado
momento histórico, algumas
obras são possíveis
enquanto que outras são impossíveis.
Por estado da arte entende-se o conhecimento
da história da arte que têm
as pessoas que usualmente se relacionam
com as obras, bem como o conjunto
de teorias estéticas que estas
dominam. Reconhecer um objecto como
obra de arte será, torná-lo
possível à luz destes
dois elementos. Um objecto só
se torna uma obra de arte quando o
contexto o permite.
É
exactamente este contexto que determina
a maneira como se relacionam o conteúdo
da obra e o modo de apresentação.
Em qualquer momento histórico
os artistas têm coisas a dizer
que, obviamente se relacionam com
o modo como vivem o seu momento histórico.
No entanto, nem todos os modos de
apresentação (aliás,
como nem todos os conteúdos)
estão disponíveis à
partida. Eles surgem na história
e passam a fazer parte do mundo da
arte, tal como Danto o entende, a
partir do momento em que podem ser
entendidos à luz da história
da arte e das teorias estéticas
disponíveis. Veja-se, por exemplo,
o que aconteceu com os impressionistas.
O modo de apresentação
que propunham era o único que
se adequava ao que queriam dizer.
Se o dissessem de outro modo ele seria
alterado. Embora o mundo da arte não
estivesse preparado para reconhecer
as obras dos impressionistas como
arte, em breve se criaram os instrumentos
para o fazer. À medida que
as obras se tornavam mais familiares,
foi possível entendê-las
como uma continuação
do esforço de representação
há muito iniciado, trazendo
também agora para a arte alguma
referência à percepção
humana. As obras dos impressionistas
passam assim a fazer parte do mundo
da arte.
Poder-se-á
concluir, então, que ser historicamente
determinada é a essência
da arte. O erro de Greenberg, tal
como o de todos aqueles que identificaram
um estilo determinado com a essência
da arte, foi o de não perceberem
que aquela era a arte necessária
num momento específico da história
e não a arte necessária
em si. O que parecia uma necessidade
era, afinal uma contingência.
Parece ser exactamente isto o que
Hegel tem em mente quando nos explica
a arte simbólica ou a arte
clássica como momentos transitórios
mas indispensáveis ao desenvolvimento,
a caminho da consciencialização
da arte com o Romantismo.
No
momento pós-histórico,
a arte torna-se consciente porque
os artistas perceberam já que
uma obra é um conteúdo
veiculado por um modo de apresentação.
Ambos são historicamente determinados.
A conjugação dos dois
só resultará numa obra
de arte quando o mundo da arte a reconhecer
como tal. Os artistas podem perceber
a história da arte como uma
sucessão de manifestações
da sua essência, e ao fazê-lo
realizam a compreensão num
todo daquilo que o entendimento percebia
anteriormente como contraditório.
O fim da história é
também o fim da arte. O Espírito
auto-reconheceu-se nas suas manifestações
finitas.
Uma
das características do momento
pós-histórico, que deriva
exactamente dessa auto-consciencialização
da arte, é a proliferação
de estilos. Os artistas têm
hoje ao seu dispor mais meios de apresentação
do que nunca, e através deles
pode veicular-se um número
infinitamente maior de mensagens.
Reconhecendo que não há
"o modo como a arte tem de ser",
os artistas fazem dela o que querem.
Todavia, a arte também é
hoje o que o mundo da arte e o momento
histórico permitem que ela
seja. A diferença é
que estes permitem muito mais do que
anteriormente, porque perceberam a
essência da arte.
A
possibilidade de usar os estilos dos
períodos históricos
anteriores, não equivale a
dizer que eles têm a mesma função
que tinham quando surgiram. Um modo
de apresentação serve
um determinado conteúdo, adequa-se
a ele, mas não a outros. Podemos
desenhar como os homens das cavernas
ou criar música barroca, mas
não nos podemos relacionar
com eles como se vivêssemos
no momento histórico em que
surgiram. Isso não inviabiliza
que os possamos incluir em obras contemporâneas,
caso esta inclusão nos permita
construir um modo de apresentação
que mais convém ao conteúdo
que queremos transmitir. De certa
forma, talvez possamos concluir que
a proliferação de modos
de apresentação sensíveis
serve a emancipação
do conteúdo, tal como ela se
verifica, segundo Hegel, do simbolismo
até ao romantismo. A arte conceptual
seria, assim, uma das expressões
mais filosóficas da arte, um
momento em que a arte se apresenta
em conceitos e já não
em formas sensíveis. A auto-consciencialização
e a essência estariam então
realizadas e nada de novo poderia
existir no futuro que não fosse
o cumprimento desta essência
e desta auto consciência.
As Dificuldades de After the End
Of Art
Uma
das questões que foi deixada
por explicar em After the End of Art
foi a de saber o que é exactamente
esse conteúdo que os artistas
transmitem e o modo como lhe podemos
aceder. Ele não poderá
ser exclusivamente de natureza histórica,
dado que se calhar nem todas as obras
espelham o seu tempo, a vida do artista
ou o que o artista pensa dela. Seria
fácil encontrar obras que tanto
poderiam pertencer a um século
como a outro, a um artista como a
outro. Se Hegel nos diz que é
o Espírito que se manifesta
na história - na arte, na religião
e na filosofia - já Danto não
é claro quanto ao que se manifesta
nas obras de arte. Talvez Danto esteja
a pensar na "Arte" (um conceito
parecido com o de Espírito)
que se manifesta nas obras finitas,
dado que estas parecem ser o meio
pelo qual uma outra coisa se revela,
mesmo que esta outra coisa também
sejam elas próprias (tal como
os povos manifestam o Espírito
e são o Espírito, mas
não esgotam o Espírito).
Mas isto certamente não é
claro.
Se
pretendermos, como sugere Danto, encontrar
o conteúdo das obras recorrendo
ao mundo da arte, ou seja às
informações da história
da arte e às teorias estéticas,
estaremos a comprometer-nos com uma
arte para minorias, uma arte apenas
acessível aos conhecedores
de arte, e completamente estranha
ao público pouco informado.
Contudo, o século XX parece
ter sido aquele em que a arte desceu
à rua e se tornou acessível
às massas. Certamente, e apesar
de ser um objecto do quotidiano, Brillo
Box não faz parte das obras
que a maioria das pessoas está
disposta a aceitar como arte, mas
parece inequívoco que hoje
o público da arte é
bem mais vasto do que anteriormente
e que o estatuto de obra de arte é
reconhecido hoje a uma maior diversidade
de obras. Dever-se-á este facto
à proliferação
de estilos? Terão as massas
sido informadas em matéria
de história da arte? No que
respeita às teorias estéticas
não me parece que o tenham
sido... Que aconteceu à arte
ou que aconteceu ao público
para que esta mudança se tenha
verificado?
A
definição de arte proposta
por Danto terá todos os problemas
das definições "externalistas"
da arte. Fica por explicar por que
dois críticos com exactamente
as mesmas informações
acerca da história da arte
e das teorias estéticas podem
destacar aspectos diferentes numa
mesma obra, ou mesmo avaliá-la
de maneiras radicalmente distintas,
tendo ela sempre as mesmas propriedades
formais. Em resumo podemos dizer que
a questão da interpretação
se coloca não só para
o público em geral, mas também
para o público especializado
que são os críticos.
A sua posição é
ambígua em After the End of
Art. Se os críticos têm
de reconhecer um objecto como uma
obra de arte, poderemos facilmente
imaginar que por vezes façam
um esforço pouco honesto para
que uma obra do seu interesse seja
reconhecida como tal. Por outro lado,
não é também
absurdo supor que existam obras já
realizadas que nenhum crítico
ainda teve oportunidade de apreciar
e reconhecer. Não serão
estas já obras de arte? Parece
um pouco "injusto" ou inapropriado
que uma obra não possa ser
reconhecida como tal apenas porque
no mundo da arte não existem
estruturas para isso, passando muitas
vezes a sê-lo apenas porque
um crítico assim o decide...
Para
além disso, a função
daqueles que conhecem o mundo da arte
(que não são apenas
os críticos) levanta problemas
de linguagem. Que poder têm
as palavras daqueles que instituem
um objecto como uma obra de arte?
Que relação se estabelece
entre alguém que reconhece
um objecto como obra de arte e um
público que aceita esse reconhecimento?
Ou seja, que tipo de aceitação
implícita esperam os críticos
quando transformam um objecto numa
obra de arte, apenas com as suas palavras?
Quando
lemos After The End Of Art, não
podemos deixar de ter a sensação
de uma certa localização
das palavras de Danto. A arte que
mudou foi arte feita em Nova Iorque
depois dos anos sessenta. Serão
as obras que Danto caracteriza como
as obras livres da era pós-histórica
reveladoras do estado geral da arte?
Poderemos concluir a partir delas
uma transformação global
na arte? Poderemos aceitar o fim da
arte, como Danto o expõe? Não
será o estado da arte actual
revelador da prosperidade económica
que se verifica na Europa e Estados
Unidos nas últimas décadas?
Se esta prosperidade regredir, se
por qualquer outro motivo os artistas
voltarem a sentir a dilaceração
(provocada, por exemplo, pelo aumento
excessivo do consumo) não voltará
a arte a ser revolucionária?
Se podemos aceitar estas possibilidades
é porque o fim da arte não
é assim tão óbvio,
ou pelo menos tão necessário
quanto Danto sugere...
Talvez
a maior dificuldade de After The End
of Art seja a possibilidade de entender
a tese do fim da arte como mais uma
narrativa, com aspectos muito semelhantes
aos das narrativas anteriores: a arte
é explicada a partir de uma
suposta essência que se desenrola
ao longo da história, atinge
um fim ou ponto de realização
máxima e do seu percurso algumas
manifestações são
excluídas, porque ficam fora
dos limites da história. No
caso da narrativa de Danto, ficariam
fora dos limites da história
todas as obras que depois dos anos
sessenta fossem realizadas sem que
os artistas tivessem conhecimento
da essência da arte, e obviamente
todas as que não fossem reconhecidas
pelo mundo da arte. Mas se a tese
do "fim da arte" for mais
uma narrativa, então a arte
pode não ter chegado ao fim...
Paula
Mateus
BIBLIOGRAFIA
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Inc, 1997
Danto,
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(primeira publicação
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1960.)
Janson,
H., História da Arte, trad.
de J. Ferreira de Almeida e M. Santos,
Lisboa, Fundação Caloute
Gulbenkian, 1992.
Fonte:
http://www.cfh.ufsc.br/~wfil/danto.htm